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Polícia chinesa detém mulher de quimono japonês, provocando indignação em redes sociais

Categorias: Leste da Ásia, China, Japão, Arte e Cultura, Censorship, Direitos Humanos, História, Juventude, Lei, Mídia Cidadã

Foto tirada de Xiao Ya em 10 de agosto de 2022. Captura de tela de uma publicação agora censurada no site Weibo.

Neste verão, a guerra cultural chinesa contra o Japão atingiu um novo patamar depois de uma série de controvérsias relacionadas ao país, como o cancelamento do festival de verão Matsuri [1] em várias cidades. O último episódio ocorreu em 10 de agosto de 2022, quando um policial da cidade de Sucheu, na província de Jiangsu, prendeu uma mulher por ela estar vestindo um tradicional quimono japonês enquanto fotografava na rua Huaihai [2], um distrito gastronômico japonês.

A mulher foi acusada de estar “procurando briga e causando problemas”, alegação comumente usada para reprimir protestos.

Como previsto, nacionalistas on-line apoiaram a ação do policial e condenaram a jovem por ofender o povo chinês, ainda assim muitos outros se posicionaram contra a xenofobia e o abuso de poder do policial. Depois da retaliação on-line, em 19 de agosto, o policial de Sucheu devolveu o quimono confiscado para a mulher.

O incidente do quimono

Manya Koetse, editora-chefe do What's on Weibo, [3] um blogue sobre tendências nas redes sociais, repostou no Twitter o vídeo da cena da mulher sendo presa:

Uma jovem chinesa foi apreendida pela polícia local de Sucheu na última quarta-feira por estar vestindo um quimono. ‘Se você estivesse vestindo um Hanfu (tradicional vestido chinês), eu nunca teria que dizer isso, mas se você vestir um quimono, como uma chinesa. Você ainda é chinesa'!

A mulher, sob o pseudônimo Xiao Ya, estava fantasiada [6] de Ushio Kofune, uma personagem fictícia da popular animação japonesa “Summer Time Rendering [7].”

Como mostrado no vídeo durante a sessão de fotos, um agitado policial aborda o fotógrafo e ela dizendo: “Eu não diria nada se você estivesse vestindo um Hanfu chinês, diria? Mas um quimono japonês? Como você, uma chinesa, se atreve? Você é chinesa? Você é chinesa”! Ele grita com a mulher, apesar da tentativa dela de explicar a sessão de fotos.

Ainda no vídeo, o policial diz que a infração dela foi “procurar briga e causar problemas”, mas não elabora uma explicação antes de usar a força para escoltar a mulher até a delegacia onde foi detida.

Em 12 de agosto, Xiao Ya contou primeiro a seus amigos sobre o incidente com o policial [8] no Qzone, uma popular plataforma de rede social. Depois, a publicação foi repostada no site Weibo e viralizou.

Ela revelou que assim que o policial a levou para a delegacia, seu telefone foi confiscado e teve seu conteúdo inspecionado, incluindo fotos e conversas on-line. A polícia também apagou seu vídeo com a fantasia, confiscou o quimono e pediu para que ela escrevesse uma carta de 500 palavras com uma autocrítica. O interrogatório policial durou cinco horas e ela foi orientada a não publicar nada on-line sobre o incidente. Ela também acredita que a polícia tenha entrado em contato com sua escola de fotografia para garantir que ela recebesse uma “educação” apropriada.

Em uma entrevista ao jornal Beijing Youth Daily (agora censurada), ela revelou que em sua redação de 500 palavras, foi orientada a admitir que vestir um quimono era um “ato perigoso”. No entanto, ela argumentou na entrevista que a subcultura de ACG [9](abreviação de “Anime, Comic and Games”) não está em desacordo com o patriotismo chinês:

我不光喜歡二次元文化,也喜歡中國的傳統文化。2018年的暑假,我和家人、朋友一起去日本旅遊,我特意帶了漢服,在京都和大阪街頭穿漢服…當我向別人介紹漢服的時候內心很自豪,其實在我眼裡,漢服與和服都是很好看的衣服。我們二次元這個群體也很愛國。

Além da subcultura ACG, eu também gosto da cultura tradicional chinesa. Durante minhas férias de verão em 2018, eu viajei para o Japão com minha família e amigos e levei um conjunto Hanfu [vestimenta típica da dinastia chinesa Han] que eu usei nas ruas de Quioto e Osaka… Eu senti orgulho ao explicar sobre minha roupa típica lá. Para mim, Hanfu e quimono são ambos muito bonitos. Nós, amantes de ACG somos muito patriotas.

Em 23 de agosto, seu vídeo, sua conta pessoal na plataforma Qzone, a republicação no site Weibo e sua entrevista com o jornal Beijing Youth Daily foram todos censurados nas redes sociais.

Sentimento antijaponês emerge na China

À medida que o nacionalismo chinês emerge, jovens que gostam de cultura japonesa se veem sob uma imensa pressão, tendo seus interesses frequentemente distorcidos e politizados. Este ano, espaços particulares, como hotéis e shopping centers de muitas cidades, cancelaram os festivais Matsuri de verão [10] seguindo pedidos de boicote [11] de nacionalistas chineses.

Nacionalistas chineses têm espalhado on-line teorias conspiratórias afirmando que o incidente do quimono está relacionado ao 15 de agosto, data de aniversário da rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial e do fim da Segunda Guerra Sino-Japonesa [12].

A fantasia de Xiao Ya e seu relato foram distorcidos como um ato político com intuito de prejudicar a vitória chinesa contra a invasão japonesa. Veja abaixo uma típica reação [13] nacionalista no site Weibo:

她为什么要八月十日穿,八月十四日发,让这个事情15日发酵带节奏。其心可诛。查下她的家族吧。说不定是个汉奸家族。 ​

Por que ela usou [o quimono] no dia 10 de agosto e publicou no dia 14 de agosto? Para que tivesse um impacto no dia 15 de agosto. Ela agiu de má-fé. Veja sua família, provavelmente tem um histórico de traidores. 

Meios de comunicação chineses controlados pelo governo, geralmente lembram esta data como o símbolo da vitória chinesa sobre a invasão japonesa em 1945 com a ajuda da resistência do partido comunista chinês.

Para alguns nacionalistas, o uso de um quimono é visto como um ato que “fere os sentimentos do povo chinês”. Veja um comentário [14]no Weibo:

作为施害国家的民族服装,还在我们的特定日期穿着,招摇过市,伤害我们民族感情,我们就是不允许!!!

[Quimono] é a roupa típica de uma país agressor e [ela] escolheu vestir em público e em uma data especial. Isto fere nosso sentimento nacional, e não vamos permitir isso!!!

Recentemente, amantes de cultura japonesa são chamados de Jingri (精日), literalmente traduzido como Japão espiritualizado, um termo depreciativo na China usado para descrever pessoas sem descendência japonesa que apoiam a ideologia japonesa militar e imperial. Xiao Ya está enfrentando uma campanha de difamação [15] e foi chamada de Jingri por influenciadores nacionalistas, incluindo o usuário do Weibo @raffaelloliu [16], por exibir seu quimono nas ruas chinesas.

Indignação pública sobre abuso policial

Apesar das críticas, desta vez, os nacionalistas não foram bem-sucedidos em dominar o sentimento público. Muitos internautas chineses têm compartilhado fotos de heróis nacionais chineses usando quimonos para combater o aumento de narrativas xenofóbicas, como destacado pelo escritor chinês @GaoFalin:

Usar um quimono é ‘procurar briga e causar problemas?!’

As personalidades históricas nas fotos são Lu Xun, importante escritor moderno chinês (1883–1936); Qiu Jin [19], chinesa feminista revolucionária (1875–1907); Zhang Taiyan [20],  etimologista, filósofo e revolucionário (1869–1936); Chiang Kai-shek [21], líder da República da China (1887–1975); Li Dazhao [22],  cofundador do partido comunista chinês (1889–1927); e Guo Moruo [23], líder do partido comunista chinês (1892–1978).

Muitos internautas criticaram o abuso de poder do policial durante o incidente do quimono. Um usuário do Weibo resumiu [24] as razões por trás da indignação pública:

民众对于苏州和服事件愤怒的三大原因,个个都很现实:

①愤怒于个人权利被随意践踏,日式风情街,穿和服拍个照片,不违反任何法律法规,就如同穿比基尼在海滩游泳一样;

②愤怒于公权力被随意滥用,今天能因为你穿和服定你寻衅滋事,明天就能因为你开三菱车定你寻衅滋事,后天你在家看个奥特曼可能都会被带走;

③愤怒于狭隘的民族主义者如此泛滥,其实民族主义走向一种极端,就有可能成了军国主义,爱国的前提一定是合法、理性。

Existem três razões por trás da indignação pública:

  1. Violação dos direitos do cidadão. O incidente ocorreu em uma rua com decoração japonesa. Tirar fotos usando um quimono não é violação de nenhuma lei, é como usar um biquíni na praia;
  2. Abuso de poder. Hoje, você é acusado de estar procurando briga por vestir um quimono, amanhã será acusado de estar procurando briga por dirigir um Mitsubishi e, no outro dia pode ser preso por estar assistindo [a série japonesa] Ultraman em casa.
  3. Surgimento de nacionalismo limitador. Nacionalismo extremo pode levar ao militarismo. A premissa de patriotismo deve ser racional e legítima. 

Depois das reações negativas, a polícia devolveu o quimono para Xiao Ya e as autoridades responsáveis por censura apagaram conteúdos relacionados ao incidente que viralizaram.