Os denunciantes, sejam eles pintados como heróis ou vilões, entraram na cultura dominante global, graças a figuras como Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden e a atenção da mídia ou do cinema que receberam. Mas o que é a vida real dos denunciantes e o que os motiva a sacrificar suas vidas privadas, carreiras e, às vezes, a própria vida para expor o abuso de poder?
Para encontrar algumas respostas, a Global Voices (GV) conversou com Tatiana Bazzichelli, escritora, acadêmica, ativista e fundadora do Disruption Network Lab, uma plataforma que defende a convergência dos direitos humanos, da tecnologia e das artes. Bazzichelli editou recentemente “Whistleblowing for Change” (que pode ser baixado gratuitamente aqui) uma antologia de entrevistas e textos de denunciantes e investigadores da Europa, Turquia e EUA. Uma vez que o termo denunciante se tornou tão pesado, a primeira pergunta que a GV fez foi sobre sua definição:
Whistleblowing is a term that is difficult to translate in many languages. In some countries, the translation is even misleading, because it focuses on the negative effects of it, and tends to stigmatise such an act as something deplorable. Whistleblowers are people who report wrongdoing, cases of corruption, misconduct in the workplace, but also serious forms of political and social abuse, revealing information of public interest that needs to be disclosed. Whistleblowers denounce behaviours that they consider illegal or abusive, perpetrated by the systems of which they are part, or whose internal logics they know well. In a broad sense, whistleblowing is a practice of informing the public about unknown facts that need to be revealed. The book “Whistleblowing for Change“ investigates whistleblowing as a developing political practice that has the capacity to provoke social change through thirty personal stories written by whistleblowers, journalists, activists, artists, researchers and critical thinkers.
Denúncia é um termo difícil de traduzir em muitas línguas. Em alguns países, a tradução é até enganosa, porque se concentra nos efeitos negativos dela e tende a estigmatizar o ato como algo deplorável. Denunciantes são pessoas que denunciam irregularidades, casos de corrupção, má conduta no local de trabalho, mas também formas graves de abuso político e social, revelando informações de interesse público que precisam ser divulgadas. Os denunciantes relatam comportamentos que consideram ilegais ou abusivos, perpetrados pelos sistemas dos quais fazem parte, ou cujas lógicas internas conhecem bem. Em sentido amplo, a denúncia é uma prática de informar o público sobre fatos desconhecidos que precisam ser revelados. O livro ‘Whistleblowing for Change’ investiga a denúncia como uma prática política em desenvolvimento que tem a capacidade de provocar mudanças sociais por meio de trinta histórias pessoais escritas por denunciantes, jornalistas, ativistas, artistas, investigadores e pensadores críticos.
Devido ao preço pessoal extremamente alto que a maioria dos denunciantes tem que pagar, a GV perguntou a Bazzichelli quais poderiam ser as motivações para se denunciar publicamente uma injustiça:
The best people to answer to this question would be the whistleblowers themselves, because blowing the whistle is an act that is both public and personal. However, the understanding that I got from meeting many whistleblowers is that they are seeking for justice. I see whistleblowing as a mindset that motivates people to report behaviour that is harmful to society. It is impossible to my point of view to understand the deeper meaning of whistleblowing without getting to know the people who are personally involved. Blowing the whistle changes the lives of everyone involved in this process, and many whistleblowers wish to help change the lives of all of us for the better. Unfortunately, this is not always the case.
As melhores pessoas para responder a esta pergunta seriam os próprios denunciantes, porque fazer uma denúncia é um ato público e pessoal. No entanto, o entendimento que obtive ao conhecer muitos denunciantes é que eles estão buscando justiça. Vejo a denúncia como uma mentalidade que motiva as pessoas a relatar comportamentos prejudiciais à sociedade. É impossível, do meu ponto de vista, compreender o significado mais profundo da denúncia de irregularidades sem conhecer as pessoas que estão pessoalmente envolvidas. Fazer uma denúncia muda a vida de todos os envolvidos neste processo, e muitos denunciantes desejam ajudar a mudar a vida de todos nós para melhor. Infelizmente, nem sempre é o caso.
É verdade que as consequências para delatar são dramáticas e podem ser letais: muitas vezes incluem morte social, detenção, discurso de ódio, rejeição por parte da família e colegas, penas pesadas e tempo de prisão, desemprego de longa duração, problemas de saúde e, em alguns casos, sequestro, tortura e morte. Como explica Bazzichelli:
In many social and cultural contexts, whistleblowing is still targeted as a form of treason. The consequence is that whistleblowers are persecuted, ignored, isolated, and strong measures are implemented against them. The idea of producing “evidence” and revealing information of public interest from within the systems is not always seen as something positive. There is an ingrained discriminatory practice embedded in many workplaces and institutions, which sees the person who uncovers illegal activities and illicit deals as a traitor. This provokes a climate of intimidation, bullying and fewer people are inclined to support whistleblowers, feel close to them, or follow their steps. I believe we should do the opposite. We need to demystify the act of blowing the whistle, better inform the public on its meaning, and show that this courageous choice is helping society to become more just.
Em muitos contextos sociais e culturais, a denúncia ainda é tratada como uma forma de traição. A consequência é que os denunciantes são perseguidos, ignorados, isolados e são implementadas medidas firmes contra eles. A ideia de produzir ‘evidências’ e revelar informações de interesse público a partir de dentro dos sistemas nem sempre é vista como algo positivo. Há uma prática discriminatória enraizada embutida em muitos locais de trabalho e instituições, que vê a pessoa que revela atividades ilegais e negócios ilícitos como um traidor. Isso provoca um clima de intimidação, perseguição e menos pessoas estão inclinadas a apoiar denunciantes, sentir-se perto deles ou seguir seus passos. Penso que devemos fazer o oposto. Precisamos desmistificar o ato de fazer uma denúncia, informar melhor o público sobre seu significado e mostrar que essa escolha corajosa está ajudando a sociedade a se tornar mais justa.
Neste contexto tão difícil, podem os filmes, ativismo e depoimentos mudar a narrativa sobre denunciantes serem considerados traidores? Bazzichelli propõe uma resposta matizada:
I would like to mention the work of great film directors such as Sonia Kennebeck, that directed the film “United States vs. Reality Winner” — the story of 25-year-old NSA contractor and whistleblower Reality Winner — and the film “National Bird,” that focused on the US drone programme through the personal perspectives of whistleblowers and survivors of drone strikes in Afghanistan; or the Italian film “Never Whistle Alone” by Marco Ferrari, that gives an insight into the phenomenon of retaliation that whistleblowers experience in the workplaces after speaking out. Of course, we all know the films of Laura Poitras, and her 2014 Academy Award winning documentary “Citizenfour” about the story of Edward Snowden and his exposure of NSA mass surveillance — we speak extensively about the motivations behind her film in the interview for our book. However, the journalistic organisation that mostly challenged the infamous narrative about whistleblowers being traitors to my point of view has been WikiLeaks and the network around it. WikiLeaks has revolutionised journalism since its foundation in 2006. Thanks to Julian Assange and his team, major war crimes and global misgovernance have been revealed.
Gostaria de mencionar o trabalho de grandes diretores de cinema, como Sonia Kennebeck, que dirigiu o filme ‘United States vs. Reality Winner‘ — a história de um empreiteiro de 25 anos da NSA e denunciante Reality Winner — e o filme ‘National Bird‘, que falava sobre o programa de drones dos EUA através das perspectivas pessoais de denunciantes e sobreviventes de ataques de drones no Afeganistão; ou o filme italiano ‘Never Whistle Alone‘ de Marco Ferrari, que dá uma visão sobre o fenômeno da retaliação que os denunciantes sofrem nos locais de trabalho depois de se manifestarem. Claro, todos nós conhecemos os filmes de Laura Poitras, e seu documentário vencedor do Oscar 2014 ‘Citizenfour‘, sobre a história de Edward Snowden e sua exposição da vigilância em massa da NSA — falamos extensivamente sobre as motivações por trás de seu filme na entrevista para o nosso livro. No entanto, a organização jornalística que mais desafiou a infame narrativa sobre denunciantes serem traidores do meu ponto de vista tem sido o WikiLeaks e a rede à sua volta. O WikiLeaks revolucionou o jornalismo desde a sua fundação em 2006. Graças a Julian Assange e sua equipe, grandes crimes de guerra e desgoverno global foram revelados.
Ela também parece concordar que a denúncia deve ser tratada como um direito civil:
Whistleblowers help to expose systems of power and injustice, and often pay a high price for revealing the truth. If we would understand whistleblowing as an act of civic consciousness, then there would be less persecution for them and a more just society. I propose to conceptually expand this act to a set of practices at the cultural, political, technological, and artistic levels. It is our responsibility to work raising public awareness of whistleblowing and opposing the persecution of truth-tellers and whistleblowers. Collectively, we should support those who have decided to fight for the good of society. This is the reason why the book features contributions not only from whistleblowers, such as Brandon Bryant, John Kiriakou, Lisa Ling, Cian Westmoreland and Daniel Hale, but also from people who have been close to the experience of whistleblowers, such as Billie Winner-Davis (Reality Winner's mother), Laura Poitras, Frederik Obermaier and Bastian Obermayer, Annie Machon, Simona Levi, Suelette Dreyfus and Naomi Colvin, and other writers and activists working to expose wrongdoing and forms of social injustice, such as Barrett Brown, Lauri Love and Daryl Davis, to name a few.
Os denunciantes ajudam a expor sistemas de poder e injustiça e, muitas vezes, pagam um preço alto por revelar a verdade. Se entendêssemos a denúncia como um ato de consciência cívica, então haveria menos perseguição para eles e uma sociedade mais justa. Proponho expandir conceitualmente esse ato para um conjunto de práticas nos níveis cultural, político, tecnológico e artístico. É nossa responsabilidade trabalhar para aumentar a conscientização do público sobre denúncias e se opor à perseguição de quem diz a verdade e quem denuncia. Coletivamente, devemos apoiar aqueles que decidiram lutar pelo bem da sociedade. Esta é a razão pela qual o livro apresenta contribuições não apenas de denunciantes, como Brandon Bryant, John Kiriakou, Lisa Ling, Cian Westmoreland e Daniel Hale, mas também de pessoas que estiveram perto da experiência de denunciantes, como Billie Winner-Davis (mãe de Reality Winner), Laura Poitras, Frederik Obermaier e Bastian Obermayer, Annie Machon, Simona Levi, Suelette Dreyfus e Naomi Colvin, e outros escritores e ativistas que trabalham para expor irregularidades e formas de injustiça social, como Barrett Brown, Lauri Love e Daryl Davis, são alguns exemplos.
Para mudar a narrativa de traição, a denúncia também pode ser abordada como uma forma de rompimento, como argumenta Bazzichelli no livro. Aqui está como ela chegou a conectar esses dois conceitos:
The idea of the book is to link whistleblowing to disruptive practices, as an intervention that challenges closed systems from within and changes the regular state of things to provoke change. In 2011 I wrote a book about the need to re-appropriate the concept of disruption from business culture, to apply it on art and activism to imagine a different political opposition that comes from within the systems that we are trying to confront. In recent years, the idea of disruption has been re-appropriated by populists, but with very different means — to enhance more power and provoke chaos, to spread fake news and misinformation, rather than dismantle power logics as a cause of oppression to society. It is an endless feedback look. We need to re-appropriate disruption once again. I believe that whistleblowers are those from whom to be inspired.
A ideia do livro é conectar a denúncia a práticas de disruptivas, como uma intervenção que desafia sistemas fechados a partir de dentro e muda o estado regular das coisas para provocar mudanças. Em 2011, escrevi um livro sobre a necessidade de reapropriar o conceito de disrupção da cultura empresarial, aplicá-lo à arte e ao ativismo para imaginar uma oposição política diferente que vem de dentro dos sistemas que estamos tentando confrontar. Nos últimos anos, a ideia de rompimento foi reapropriada pelos populistas, mas com meios muito diferentes — para aumentar o poder e provocar o caos, para espalhar notícias falsas e desinformação, em vez de desmantelar as lógicas de poder como causa de opressão à sociedade. É um circuito de retorno sem fim. Precisamos nos reapropriar do rompimento outra vez. Acredito que os denunciantes são quem podem nos inspirar.