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O colonialismo deve ser questionado também no âmbito jurídico, afirma advogada colombiana

Categorias: América Latina, Colômbia, Direitos Humanos, Governança, Indígenas, Lei, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Green Voices

Ilustração da Global Voices.

O mês de agosto é celebrado entre os povos indígenas na região de Abya Yala, conhecida hoje como as Américas, como o mês da Pacha Mama [1], ou Mãe Terra. Em um contexto de crises mundiais climáticas, ambientais e sociais, parece oportuno destacar narrativas diferentes das predominantes quando se trata de nosso relacionamento com o meio ambiente. Estão sendo realizados debates na América Latina sobre como a natureza deve ser considerada em uma esfera jurídica: Ela é objeto ou sujeito da lei? Ela é um recurso natural ou um assunto coletivo de interesse público [2]? Ela tem valor próprio ou o valor pode variar de acordo com seu uso por seres humanos?

Fernanda Sánchez Jaramillo, colombiana, é uma das pessoas que encoraja a discussão. Ela é jornalista, advogada com mestrado em relações internacionais, candidata a doutorado em Direito e pesquisadora na consagrada Universidade do Rosário em Bogotá. É também colaboradora [3] da Global Voices, sempre com foco nos direitos humanos. Seu plano é seguir os passos [4] de seu pai, que foi um líder social e organizador do movimento de reforma agrária colombiano.

Sánchez Jaramillo luta para que o sistema judiciário na Colômbia, e em todo o mundo, se distancie [5] de concepções “Eurocêntricas” e se abra para outras maneiras de encarar a vida e a justiça. No início do ano, ela escreveu um artigo acadêmico intitulado: “A visão cósmica da mãe terra quando “fala” e um discurso jurídico sobre ‘natureza’” [6], em parceria com Willian Jairo Mavisoy Muchavisoy. No artigo, os autores compartilham suas pesquisas e reflexões sobre o panorama dos povos indígenas awá e camsá, do sul da Colômbia, e sobre como estas perspectivas podem contribuir para as leis colombianas e sistema judiciário do país.

Por exemplo, o povo awá chama a mãe terra de Katsa Su (“Grande Casa”), um conceito que incorpora todos os “relacionamentos estabelecidos com ela e com os outros seres que compartilham de sua existência”. Desta maneira, o povo awá “demonstra que existem maneiras de interagir e viver em harmonia que não são vinculadas à colonização da mãe terra e às ameaças feitas a ela, tratando-a como um objeto de consumo (recursos naturais, patrimônio comum, capital, serviços de ecossistemas, materiais orgânicos) e assim quebrando a camada original entre humanos e não humanos (montanhas, animais, vegetais, estrelas)”, explicam Sánchez Jaramillo e Mavisoy Muchavisoy em seu artigo.

A entrevista a seguir é baseada no trabalho investigativo de Sánchez Jaramillo.

Melissa Vida (MV): Qual é a motivação para suas várias empreitadas?

Fernanda Sánchez Jaramillo (FSJ): My commitment to the social purpose of my two professions, journalism and law, as well as the need to promote knowledge, places, and people that have been traditionally excluded. I am also motivated by an immense love and passion for the knowledge that I found not only in books, but in the beings I met and the experiences I had during my many years of career. And also by looking at the world with curiosity, respect, and responsibility. I think I try to follow, to some extent, my father's commitment to communities and to justice.

Fernanda Sánchez Jaramillo (FSJ): Meu comprometimento é com o propósito social das minhas duas profissões, jornalista e advogada, bem como com a necessidade de promover conhecimento, locais e pessoas tradicionalmente excluídos. Sou motivada também por uma imensa paixão e amor pelo conhecimento que adquiro não somente em livros, mas em pessoas que conheço e nas experiências durante muitos anos de carreira. Também vejo o mundo com curiosidade, respeito e responsabilidade. Acho que tento seguir, em algum nível, o compromisso de meu pai com comunidades e justiça.

MV: Qual é o foco da pesquisa do seu doutorado?

FSJ: My Ph.D. thesis is about the potential connection between nature as a subject of law and the protection of Katsa Su, Big House, of the Awá people in Nariño [a department in southeastern Colombia]. It is a deep dive into a question that surfaced when I was working on my legal article, which will be published, and which led me to delve into what it means to be a subject in the legal sphere, and what it means to be a being for the Awá. It follows the work I did on the animals and their rights, since in both cases I study the possibility that other living beings are considered as rights holders [7]. I am passionate about the rights of mother earth, animals and native peoples, and the acknowledgement of other subjectivities.

FSJ: Minha tese de doutorado é sobre a potencial conexão entre a natureza como sujeito da lei e a proteção da Katsa Su, Grande Casa, do povo awá em Narino, no sudeste colombiano. É um mergulho profundo em uma questão que emergiu quando eu estava trabalhando com um artigo jurídico, que será publicado, e que me levou a examinar o que significa ser sujeito na esfera judiciária, e o que significa ser um ser vivo para o povo awá. A pesquisa segue a mesma linha de um trabalho que fiz sobre animais e seus direitos, já que em ambos os casos eu estudo a possibilidade de outros seres vivos serem considerados detentores de direitos [7]. Sou apaixonada por direitos da mãe terra, animais e povos originários e, sobre outros conhecimentos subjetivos.

MV: Por que este tópico é importante e relevante no contexto colombiano de direitos humanos e ambientais?

FSJ: It is important because it attempts to effectively protect nature by focusing on nature's rights, from various fronts, which environmental law has not achieved despite the many existing norms in a country like Colombia. With regard to human rights, this issue is relevant because the Special Jurisdiction for Peace [8] recognized in 2019 that both Katsa Su and the Awá people were victims [of the armed conflict in Colombia that began in the 1960s], and it is necessary to analyze whether the decision has had a positive impact on the Awá people and their land since then.

FSJ: É importante porque é uma tentativa efetiva de proteger a natureza focando nos direitos da natureza, a partir de várias frentes, o que a lei ambiental não conquistou apesar de existirem muitas normas vigentes em um país como a Colômbia. A respeito dos direitos humanos, esta questão é relevante porque o mecanismo de justiça colombiano, Justiça Especial para a Paz, [8] reconheceu em 2019 que a região de Katsa Su e o povo awá foram vítimas [do conflito armado na Colômbia que começou nos anos 1960], e é necessário analisar se esse reconhecimento teve um impacto positivo no povo awá e em suas terras desde então.

MV: O que é “colonialismo legal”?

FSJ: Legal colonialism has its roots in Eurocentric thought and in the myths of modern law, as highlighted by law historian Paolo Grossi. The Colombian legal system is part of what is known as the continental law system. It has inherited its institutions and its sources from it, and even our civil code was “copied” from the Napoleonic Code [9]. We have received the laws rather than produced them. The colonialism of legal discourse is marked by binary thinking, which excludes and separates. For example, there is a predominant dichotomy between who is the object and who is the subject, which are key concepts in my academic research. It is also reflected in how socio-environmental issues [10] are handled.

O colonialismo legal tem suas raízes no pensamento eurocêntrico e em mitos do Direito Moderno, como destacado pelo historiador de Direito, Paolo Grossi. O sistema judiciário colombiano é parte do que é conhecido como família do direito civil, do qual nosso sistema herdou suas instituições e fontes, e até mesmo nosso código civil foi “copiado” do Código Napoleônico [11]. Nós recebemos as leis ao contrário de as ter produzido. O discurso do colonialismo legal é marcado pelo pensamento de oposição binária, que exclui e separa. Por exemplo, existe uma dicotomia predominante entre quem é o objeto e quem é o sujeito, que são conceitos chave na minha pesquisa acadêmica. O discurso também reflete sobre como questões socioambientais [10] são administradas.

MV: Qual a diferença entre como os povos awá e camsá enxergam seu habitat e como isto é visto pelo Ocidente? 

FSJ: The main difference lies in the fact that for these peoples everything that lives is “people.” That is to say, that the dichotomy imposed by modernity and colonialism does not exist for them. They view themselves as part of a whole, and the beings with whom they share their home are considered people, who can feel, who can bleed, who can help, but who can also punish if they are disobeyed or disrespected. They have lived in communion with these beings for centuries and they continue to live in harmony [12] with them. They see their surroundings as a mother, not as a natural resource to be exploited at their convenience, and they practice reciprocity.

FSJ: A principal diferença está no fato de que para estes povos originários, tudo que está vivo é “gente”, ou seja, a dicotomia imposta pela modernidade e colonialismo não existe para eles. Eles se enxergam como parte de um todo, os seres com quem compartilham sua casa são considerados pessoas, pessoas que podem sentir, que podem sangrar, que podem ajudar, mas que também podem punir se forem desobedecidas ou desrespeitadas. Eles têm vivido em comunhão com estes seres por séculos e vão continuar vivendo em harmonia [12] com eles. Eles enxergam tudo que os cerca como uma mãe, não como um recurso natural a ser explorado a sua mera conveniência. Além disso, eles praticam a reciprocidade.

MV: Qual impacto estas perspectivas podem ter na maneira como o mundo é percebido?

FSJ: The impact they have had is big. Thomas Berry [13], a pioneer in land rights defense, was inspired by the thinking of Indigenous peoples; the Wild Law Manifesto. [Lawyer] Cormac Cullinan [14] also echoes many ideas that exist among indigenous peoples not only from Abya Yala, but from all over the world. Nature's rights are inspired by the thinking and traditions of Indigenous peoples [15]. As such, they have been influential in creating other ways of being in the world, but they clash against the power of transnational capitalism that seeks to maintain the status quo and keep nature for sale [16].

FSJ: É um grande impacto. Thomas Berry [17], pioneiro na defesa de direitos agrários, foi inspirado pelo pensamento de povos indígenas. No livro “Wild Law: A Manifesto for Earth Justice”, [o advogado] Cormac Cullinan [14] também repete muitas ideias que fazem parte do pensamento indígena não só dos povos de Abya Yala, mas de povos originários de todo o mundo. Os direitos da natureza são inspirados por pensamentos e tradições de povos indígenas [15]. Assim, eles têm influenciado na criação de outras maneiras de estar no mundo, mas batem de frente com o poder transnacional do capitalismo que procura manter o status quo e a natureza à venda. [16]

MV: Como você gostaria de ver o futuro do sistema judiciário colombiano?

FSJ: Not only in Colombia, but in the world. I believe that we need a legal system that takes into account the land that we share with multiple beings, such as rivers, forests, other animals, and that includes in the legal analysis the knowledge of the ancestral peoples that have been excluded throughout time because they were deemed non-scientific. Law is a social and cultural construct that cannot be kept unchanged. It must respond to the needs of its time; we cannot turn to only nineteenth-century law to understand the world or to organize it. I would like a system where justice is done, where laws and knowledge produced elsewhere are incorporated, as well as an intercultural legal narrative [18].

FSJ: Não somente na Colômbia, mas no mundo todo. Eu acredito que precisamos de um sistema judiciário que considere a terra que compartilhamos com diversos seres, como rios, florestas, outros animais, e isso inclui uma análise legal do conhecimento ancestral de pessoas que têm sido excluídas ao longo dos anos por serem consideradas não científicas. Direito é uma construção social e cultural que não pode ser mantida imutável, deve responder às necessidades de seu tempo; não podemos consultar somente leis do século 19 para entender o mundo e organizá-lo. Eu quero um sistema judiciário em que a justiça seja feita, em que leis e conhecimentos produzidos em outros lugares também sejam incorporados como uma possibilidade de narrativa intercultural jurídica [18].