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Duas controvérsias sobre o aborto expõem a hipocrisia dos defensores “pró-vida” no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Mulheres e Gênero, Saúde

Brasileiras protestam em frente ao Supremo Tribunal Federal usando figurinos que remetem à série de TV “The Handmaid's Tale” (O Conto da Aia), em 2018. | Imagem: Mídia Ninja/CC 2.0

As histórias de duas jovens [1] no Brasil que engravidaram e enfrentaram barreiras sistêmicas ao aborto, apesar das políticas que garantem o acesso legal aos procedimentos, recentemente expuseram contradições no discurso dos chamados defensores “pró-vida”.

Uma juíza [2] perguntou a uma das jovens, uma sobrevivente de estupro de 11 anos, se ela poderia “aguentar um pouco mais” e manter o bebê por mais algumas semanas, junto com outras perguntas, aparentemente para convencer a criança a continuar a gravidez. As gravações da audiência foram reveladas pela The Intercept, no dia 20 de junho [3].

Na audiência, a mãe da menina de 11 anos, que a levou ao hospital [4] para interromper a gravidez, foi questionada pela juíza [2] se ela entendia que, em caso de aborto, após o nascimento, o bebê ficaria chorando até morrer — semelhante aos comentários feitos pelo promotor público do caso à própria menina. Uma informação falsa sobre como funciona o procedimento [5].

A juíza também disse [3] à mãe da menina para que considerasse a adoção [2], sugerindo que o bebê poderia trazer alegria para uma outra família. Como disse, “A tristeza de hoje para você e sua filha é a felicidade de um casal”.

O caso gerou indignação pública, pois o aborto é garantido pela lei brasileira [6] em situações como essa. Nesse caso, apesar ter havido excessos por parte da juíza, a menina acabou recebendo o procedimento [7] no final de junho.

Contudo, mesmo após o aborto legal, o promotor público do caso pediu à polícia [8] que buscasse o feto no hospital para que fosse identificada a “causa da morte”, conforme relatado pela The Intercept. O governo federal também pediu para investigar a equipe médica, segundo o jornal Folha de S. Paulo [9].

A segunda história teve um desfecho diferente. No dia 25 de junho, a atriz brasileira Klara Castanho [10], de 21 anos, compartilhou uma carta [11] com seus milhões de seguidores no Instagram relatando sua experiência com violência sexual.

 

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Klara foi pressionada [13] a responder aos rumores de que teve um bebê e o colocou para adoção. Alguns dias antes, a YouTuber/atriz Antonia Fontenelle [14] publicou um vídeo cheio de críticas sugerindo que uma famosa atriz brasileira havia engravidado e colocado o bebê para adoção. Fontenelle nunca mencionou o nome de Klara, mas descreveu características que permitiram que as pessoas conectassem os pontos. A história tornou-se pública [14] e mais críticas e calúnias surgiram contra Klara.

Em sua declaração [11], Klara disse que foi estuprada em um lugar onde não tinha amigos nem família por perto e que um pedaço dela havia morrido a partir daquele momento. Ela acabou não denunciando o estuprador por medo, mas tomou uma pílula do dia seguinte na tentativa de deixar o ato violento para trás. Depois de algum tempo, ela sentiu dores de estômago e descobriu que estava grávida enquanto fazia uma tomografia.

O médico disse que ela era “obrigada a amar esse bebê” e a forçou a ouvir os batimentos cardíacos. Klara considerou suas opções e decidiu colocar o bebê para adoção, notificando todas as autoridades públicas responsáveis pelo processo.

Exposição na mídia

Legalmente, existem procedimentos destinados a proteger tanto a identidade da mãe quanto a do bebê [15] em casos assim. Ainda assim, uma enfermeira do hospital parecia ameaçar Klara, perguntando se ela poderia imaginar o que aconteceria se um certo colunista social descobrisse sobre a história. O caso está sendo investigado [16] pelo hospital e conselheiros profissionais.

A história foi de fato vazada para colunas de fofoca e eventualmente chegou a Fontenelle. Leo Dias [17], um dos colunistas, insinuou sobre a controvérsia em um programa de entrevistas, antes do caso se tornar público, e correu para publicar informações sobre o bebê logo após Klara ter publicado sua declaração. Metrópoles [18], a agência de notícias onde Leo publica sua coluna, apagou o artigo [19] algumas horas depois e emitiu um pedido de desculpas.

Lilian Tahan, diretora de redação do Metrópoles, escreveu em seu Twitter:

Após a carta aberta de Klara, Fontenelle, uma conhecida apoiadora de Jair Bolsonaro [21], que planeja concorrer para o Congresso [22] nas eleições de 2022, gravou um novo vídeo afirmando que não sabia sobre o estupro. Ela alegou que queria “ajudar Klara” a fazer seu agressor pagar pelo que ele fez, acrescentando que estupradores deveriam enfrentar a pena de morte.

Apesar dos ataques, Klara também recebeu uma onda de apoio de pessoas que condenaram a maneira como a mídia lidou com a história e expôs Klara contra a sua vontade. Alguns atores que trabalharam com ela no passado, como Paolla Oliveira, postaram mensagens de apoio no Instagram [23]:

Klara é uma mulher e com isso está sofrendo a perseguição, acusação e julgamento que a sociedade destina a nós mulheres.

Não é uma discussão sobre ter filhos ou sobre não ter filhos. É uma discussão sobre como se apropriam dos nossos corpos, mentes e espíritos. A ponto da empatia e sororidade não ser unanimidade entre nós. Mulheres que potencializam as vozes de nossos algozes.

Legislação brasileira

O aborto é considerado crime no Código Penal Brasileiro, mas é permitido [24] sob três exceções: se a vida da mulher estiver em risco, se a gravidez for resultado de estupro ou se o feto tiver um diagnóstico de anencefalia.

No início de junho, o Ministério da Saúde lançou um manual [25] onde alegou que, mesmo nos casos em que é permitido, o aborto seria considerado crime se a gravidez ultrapassasse 22 semanas, e os médicos poderiam ser investigados nesse caso.

Jota [25], uma agência especializada na cobertura das leis brasileiras, destaca que a legislação vigente não estabelece um limite de tempo para casos em que o procedimento é permitido e que, nesses casos, o sistema público de saúde deve garantir um aborto legal. Especialistas ouvidos pela Jota avaliaram que “o documento induz ao erro e coloca ainda mais pressão sobre os médicos”.

Um grupo de organizações criou uma campanha [26] pedindo às autoridades que retirassem o manual, afirmando:

Dentre inúmeros retrocessos, o manual prevê a investigação criminal de meninas e mulheres violentadas que acessam o serviço de aborto legal, orienta que haja uma idade gestacional limite para o procedimento e cria uma confusão jurídica ao afirmar que “todo aborto é ilegal, salvo nos casos em que há excludente de ilicitude”. Você entendeu? Pois é, nem a gente, e é disso mesmo que se trata, querem criar uma confusão generalizada para tornar ainda mais penosa a saga de meninas que tentam acessar o serviço legal.

O ministério realizou uma audiência pública para debater o manual no dia 28 de junho. Raphael Câmara, responsável pelo departamento por trás do documento, disse que o aborto não representa um grave problema de saúde pública.

“Precisamos discutir o que é um grave problema de saúde pública (…) Se você interpretar como tal qualquer doença que cause a morte, ok. Mas essa discussão tem que ser feita”, disse ele, segundo a agência de notícias G1 [27].

Um artigo publicado pela revista Piauí [28] mostra que, em 2019, o sistema público de saúde brasileiro registrou 195.000 internações devido a abortos, uma média diária de 535. Em cada 100 casos, aponta o artigo, apenas um foi garantido por lei, enquanto 99 foram abortos espontâneos ou tipos indeterminados de interrupção.