Guerra na Ucrânia muda relação entre internet e geopolítica

Imagem cortesia de Flora Weil, Alexandra Smorodinova e Danya Orlovsky.

No início dos anos 1990, Nicholas Negroponte, fundador do instituto de pesquisa, MIT Media Lab, anunciou que a internet iria “nivelar organizações, globalizar a sociedade, descentralizar controles e contribuir para a harmonia entre pessoas”. Trinta anos depois, esta premonição não poderia estar mais longe da verdade. Embora a internet tenha nos levado à globalização, inovação e participação sem precedentes em setores antes inacessíveis, nas últimas duas décadas, os esforços lentos e persistentes por parte de governos de todo o mundo fizeram com que as tecnologias privadas se integrassem nos regimes nacionais de regulamentação e segurança.  

A invasão russa na Ucrânia marca o próximo ponto de inflexão ao se afastar dos sonhos do século 20 de uma internet libertária e igualitária. A guerra acelerou três tendências significativas na dinâmica geopolítica da internet, tornando qualquer reversão maior, inimaginável. Primeiro, a guerra acelerou a proeminência sem precedentes de protagonistas civis agindo como autoridades de guerra. Segundo, enfatizou a importância das redes de informações nos conflitos físicos. Terceiro, acelerou a fragmentação mundial entre Estados Unidos, Europa, Rússia e China, juntamente com as plataformas tecnológicas.

Em uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) em junho, um executivo do Google previu que as operações russas na Ucrânia seriam uma indicação do novo status quo mundial: “Esta guerra é a nossa bola de cristal sobre o que estar por vir “.

A proliferação de protagonistas não estatais na guerra estatal

Na maior parte da História Moderna, as guerras têm como característica principal o domínio de territórios nacionais. Ivan Sigal argumentou que, desde os anos 1970, “existe um crescimento de conflitos interestaduais e civis não declarados, envolvendo combatentes não estatais e irregulares, com conflitos ocorrendo em meio à vida civil, onde a maioria das vítimas não são combatentes”.

Embora os protagonistas não estatais tenham participado em conflitos passados— o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) surgiu durante a Guerra da Crimeia nos anos de 1850 e o terrorismo moderno tem suas raízes em rebeliões anticolonialistas de século 19— nos últimos 20 anos, particularmente, a presença de ONGs, organizações internacionais e grupos terroristas se apossaram violentamente do monopólio do Estado. Joseph Nye e Robert Keohane descreveram as relações internacionais deste mundo emergente como uma “complexa interdependência”.

Interdependência, porque durante as guerras do Iraque, Afeganistão e Mali, os governos travaram guerras nacionais contra organizações autônomas armadas, espectadoras de uma ampla gama de observadores independentes, e com apoio periférico de centenas de ONGs em tentativas de paz. Complexo, porque a linha entre agressor e pacificador tornou-se tênue. A internet fez com que os conflitos globais sejam ainda mais complexos, anárquicos e interdependentes, devido à vasta e sem precedente quantidade de intervenções disponíveis.

Antes mesmo da invasão russa na Ucrânia, uma comunidade de pesquisadores descentralizada já alertava sobre a movimentação incomum das tropas russas nas fronteiras ucranianas. A proliferação de satélites, redes sociais, dados públicos de voos e técnicas de mapeamento, disponibilizaram um novo mundo de relatórios de código aberto capazes de identificar padrões de guerra antes mesmo de as armas começarem a atirar.

A crescente interdependência das redes globais e o descontrolado acesso a elas de qualquer parte do mundo, indicam que podemos travar uma guerra no leste europeu a partir de um apartamento em Berlim ou de um café em Shenzhen. Em fevereiro, o governo ucraniano fez um apelo mundial a grupos de hackers para que ajudassem na defesa de importantes infraestruturas. Desde então, um grupo não identificado de “hackers justiceiros” tem interrompido canais de noticiários russos, sites do governo russo e redes de abastecimento militar. Simultaneamente, grupos não identificados de hackers começaram a atacar “autoridades estrangeiras de governos da Organização do Tratado do Norte (NATO), organizações humanitárias, laboratórios de ideias, grupos de Tecnologia da Informação (TI) e fornecedores de energia”. Agências da inteligência ocidental atribuíram os ataques a grupos aliados ao governo russo, mas devido a própria natureza da internet é impossível atribuir com precisão tais ataques.

Por fim, a guerra gerou um novo significado para as plataformas de tecnologia. Uma empresa da Microsoft em Seattle, a Threat Intelligence Center, tem sido bem-sucedida em prever ataques pesados nas redes militares e governamentais de Kiev. Google e Meta baniram meios de comunicação russos, se defenderam contra a maior operação de influência estrangeira de Moscou e deram preferência as vozes ucranianas. Uma empresa de reconhecimento facial americana, a Clearview AI, doou seu software para o Ministério da Defesa da Ucrânia para que identifique soldados abatidos.

Enquanto as plataformas de tecnologia enfrentam, na Europa e nos Estados Unidos, processos jurídicos antimonopólio, a guerra na Ucrânia tem sido usada como um conveniente e novo argumento contra novas ações antimonopólio: prejudicar plataformas tecnológicas poderia contribuir com a propaganda russa.

A crescente importância das redes de tecnologia

A telecomunicação é parte vital de operações militares desde a Primeira Guerra Mundial. O desenvolvimento da própria internet foi justificado nos anos 196o como uma necessária precaução para manter as comunicações durante uma guerra nuclear. Mas ao longo da última década, movimentos específicos destacaram a crescente importância de conexões na nuvem às realidades físicas. A plataforma Unfreedom Monitor da Global Voices destaca o surgimento nunca visto de iniciativas de censura na internet em todo o mundo.

A invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, é o último e talvez mais importante exemplo sobre o uso da internet como arma em um conflito físico.

Um dia antes de as tropas russas entrarem na Ucrânia, modems da rede de internet de satélites, KA-SAT da Viasat, foram desativados em massa. Outros ataques cibernéticos em sites do governo e em operadores de infraestrutura tentaram sem sucesso paralisar os centros de controle e comando ucranianos.

Resumindo, a guerra na Ucrânia é o exemplo mais recente em que o controle das telecomunicações tem ao mesmo tempo direcionado movimentos militares e servido como justificativa para anexação de territórios. Em 2015, antes da anexação da Crimeia, forças russas ocuparam os principais escritórios de provedores de internet da península, cortaram todas as conexões para a Ucrânia, construíram um cabo submarino de fibra óptica e redirecionaram o tráfego de internet para a operadora Miranda Media em Moscou. Isso garantiu que o tráfego local de internet fosse monitorado pelo Roskomnadzor, o regulador das Comunicações, Tecnologia da Informação e Meios de Comunicação da Rússia, e submeteu os moradores da Crimeia às normas de expressão, publicação e internet russas.

Mapa cortesia de Kevin Limonier.

Moscou segue a mesma estratégia em uma escala sem precedentes na ocupação de novos territórios. Os escritórios de provedores de internet dentro de Kherson e das cidades ocupadas recentemente no leste ucraniano, foram redirecionadas para redes russas, assegurando o controle russo de informação sobre as regiões e preparando as bases para futuros plebiscitos de separação. Isto se tornou uma preocupação tão grande que os ucranianos têm destruído infraestruturas de telecomunicação ao sobrevoar as cidades ocupadas.

Segurança e controle de canais nacionais de telecomunicação estão se tornando especialmente vitais para nações menores que dependem de provedores estrangeiros para a inteligência militar, como as imagens por satélite. Volodymyr Usov, ex-presidente da Agência Espacial Nacional da Ucrânia, destacou em junho, “​​toda nação que se proclama independente… precisa ter sua própria constelação [de imagens]”. Usov frisou que parcerias não são suficientes: “É preciso ter acesso autônomo às imagens por satélite”. A Ucrânia está considerando desenvolver sua própria tecnologia de lançamento de satélites para proteção da infraestrutura de comunicação de intervenções terrestres.

A rápida fragmentação geopolítica e sua infraestrutura

O envolvimento de protagonistas não estatais e a crescente importância militar das telecomunicações estão levando a uma acelerada balcanização da internet junto às linhas nacionais.

A guerra na Ucrânia estabeleceu uma cortina ainda mais explícita entre os regimes nacionais de internet. Com o deplorável método olho por olho a Rússia proibiu a maioria das empresas de tecnologia e mídias ocidentais. Ao mesmo tempo, a Ucrânia e o Ocidente baniram sites russos governamentais. Moscou tentou proibir as redes TOR e VPN, que têm a capacidade de iludir os censores do governo. Em uma decisão final sobre a soberania da internet, a Rússia tem trabalhado para indiciar seus cidadãos por publicar declarações negativas sobre a guerra mesmo se estiverem morando em outro país. Os limites nacionais não terminam mais nas fronteiras, estão agora estendidos às esferas midiáticas de qualquer localização geográfica com conexão de internet.

A guerra na Ucrânia traçou uma linha ainda mais marcante entre as realidades financeiras, informativas e infraestruturais fragmentadas da Europa e Estados Unidos, enfrentadas pela Rússia e China. Está ocorrendo um movimento de não alinhamento infraestrutural, conforme a lógica senil da Guerra Fria. No século 21, a escolha para a maior parte do mundo não é entre comunismo e capitalismo, mas sim qual rede da cadeia de suprimentos deverá penetrar em seus países.


Imagem cortesia de Giovana Fleck.

Para mais informações sobre este assunto, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia.

 

 

 

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