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Transpondo sátiras: duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Categorias: Europa Oriental e Central, Eslováquia, Rússia, Ucrânia, Arte e Cultura, Etnia e Raça, História, Humor, Língua, Literatura, Mídia Cidadã, Relações Internacionais, Russia invades Ukraine

Texto de Majling, original em eslovaco, com os nomes modificados de Dostojevzski (Dostoiévski), Tolsztoi (Tolstói) e Toorgenef (Turguêniev). Foto de Filip Noubel, usada com permissão.

Para tradutores literários, nada é mais desafiador, e talvez mais inspirador, do que textos de humor, pois necessitam de uma tradução dupla: linguística e cultural. A Global Voices pediu para duas tradutoras que trabalharam com a obra “Ruzká klazika [1]“, do escritor eslovaco Daniel Majling, um livro de sátiras sobre literatura clássica russa, contarem sobre suas estratégias para essa delicada transposição.

Podemos descrever a coletânea de contos de Majling como pastiche, um termo que se refere à imitação artística [2], e que também indica mescla de elementos. De fato, em seu livro, Majling faz referências a autores clássicos russos, mas distorce os nomes e os coloca em situações grotescas cheias de humor ácido. Além das ironias, o livro tem o subtítulo “Zostavil a preložil Daniel Majling”, que significa “organizado e traduzido por Daniel Majling”, como se o texto eslovaco original fosse em si uma tradução, semelhante a apresentação de Cervantes no clássico Dom Quixote [3].

Retrato de Weronika Gogola, foto usada com permissão.

Weronika Gogola é uma premiada escritora polonesa [4] de Bratislava, que também traduz do ucraniano e eslovaco para o polonês. Sua tradução do livro de Majling será publicada no fim do ano na Polônia. Ela explicou a estratégia para transposição de humor, que muitas vezes depende de substituições e alusões veladas:

In some parts of the text the humor in the Polish translation was less blunt, in others it was more so than in the original. I was lucky to meet Majling in person and could talk about certain issues, so I also allowed myself a few witty notes when some minor inaccuracies appeared in the original text. Majling himself suggested that, in such footnotes, I could ironically comment on his inability in certain domains.

The tone of the book allows a certain kind of freedom, what can be called the  “Majling effect.” Such an opportunity is rare in the work of a translator — but to be clear, I discussed all those issues with the author.

Em algumas partes do texto o humor na tradução polonesa foi menos ácido, em outras mais do que no original. Eu tive sorte de conhecer Majling pessoalmente e pude conversar sobre alguns temas, e também inseri algumas notas no caso de pequenas imprecisões no texto original. O próprio Majling sugeriu, que nessas notas, eu comentasse ironicamente a inabilidade dele com certos assuntos.

O tom do livro permite uma certa liberdade, o que podemos chamar de “efeito Majling”. Uma oportunidade assim é rara no trabalho de tradução — mas para ser clara, eu discuti todas essas questões com o autor.

Retrato de Julia Sherwood, foto usada com permissão.

Para Julia Sherwood, uma veterana em traduções da literatura eslovaca [5], juntamente com seu marido Peter, a tradução parcial do início do livro foi uma oportunidade de ser criativa na tradução de nomes, além de outros aspectos:

Each of the stories in “Ruzká klazika” parodies the style of a particular Russian writer, so the translation needs to achieve the same effect. The introduction of the book [6] did not pose particular difficulties, nor did the story “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town”, which is a pastiche of a folktale — and I hope that we succeeded in bringing this across. Coming up with an English version of a character’s name was tricky but enjoyable — Majling’s “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” became in our translation “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin.” The twisted spellings weren’t so much of an issue, except for the book’s title: We settled on “Rushian Clashics,” but other versions are also possible — you called it “Roosyan Klassiks” in the Global Voices article, and I have also seen it translated as “The Ruzzian Clazzics.” One day, if an English-language publisher is found for the complete book, the title may end up being something different again.

Cada história de “Ruzká klazika” (o título é uma variação de ‘Clássicos Russos’ com letras trocadas) é uma paródia do estilo de um escritor russo, então a tradução precisa atingir o mesmo efeito. A introdução do livro [6] não foi difícil de traduzir, nem a história “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town” (O renascimento da fé ortodoxa em nossa cidade), que é um pastiche de um conto folclórico, e eu espero termos conseguido fazer a tradução funcionar. Fazer uma versão em inglês dos nomes de personagens foi complicado, mas divertido; o personagem “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” se tornou “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin” (o vagabundo Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin). As letras trocadas não foram um problema, exceto no título do livro: Nós colocamos como “Rushian Clashics”, mas outras versões são possíveis. Vocês colocaram como “Roosyan Klassiks” em um artigo da Global Voices, e eu também vi a tradução “The Ruzzian Clazzics”. Um dia, se uma editora de língua inglesa for publicar o livro completo, o título pode ficar diferente novamente.

Uma escolha incomum: literaturas menos conhecidas

Traduzir um texto é apenas metade do trabalho para a maioria dos tradutores literários que trabalham com as chamadas “línguas menores”; línguas raramente traduzidas e com literaturas geralmente desconsideradas por editoras, como é o caso ainda da literatura eslovaca [7]. Nesses casos, tradutores atuam como agentes literários e promotores de reinos literários menos conhecidos e menos valorizados, como explica Gogola:

In the case of “small literatures,” as a rule, the translator takes the initiative by himself. This was also my case — I was delighted with Majling’s book, especially its unbridled humor and freedom that Majling allowed himself. 

No caso de “literaturas menores”, a regra é que os tradutores tomem a iniciativa sozinhos. Isso também aconteceu no meu caso. Fiquei maravilhada com o livro de Majling, com seu humor rasgado e a liberdade que ele se permitiu.

Porém, Sherwood, que também tem um podcast em inglês sobre literatura eslovaca [8], acredita que as atitudes estão mudando no mundo editorial global anglófono:

It's true that compared with  Czech, Polish or Hungarian literature, Slovak writers are much less known but, thankfully, this has started to change in recent years.  Works by such contemporary Slovak authors as Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková and Uršuľa Kovalyk have been translated into English. Slovak authors have also been gaining more and more international recognition: for example, Monika Kompaníková’s “Piata loď “(Boat Number Five [9]), translated by Janet Livingstone, was one of the finalists of the 2022 EBRD Literature Prize. [10] In fact, “Boat Number Five” was one of the first two books in the Slovak List [11] launched by Seagull Books, a splendid small press based in Kolkata but with worldwide distribution and a great track record in publishing translated literature. 

É verdade que, comparado com a literatura tcheca, polonesa ou húngara, escritores eslovacos são muito menos conhecidos, mas, felizmente, isso começou a mudar recentemente. Obras de autores eslovacos contemporâneos como Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková e Uršuľa Kovalyk, têm sido traduzidos para o inglês. Autores eslovacos também têm recebido mais reconhecimento internacional, por exemplo, “Piata loď “(Boat Number Five [9] – Barco número cinco), de Monika Kompaníková, traduzido por Janet Livingstone, foi uma das finalistas do concurso literário EBRD Literature Prize [10] em 2022. De fato, “Boat Number Five” foi um dos dois primeiros livros da série de literatura eslovaca [11] lançada pela editora Seagull Books, uma esplêndida pequena editora de Calcutá com distribuição mundial que publica muita literatura traduzida.

No fim, na verdade, a motivação da maioria dos tradutores literários é a paixão por um texto, e a decisão de traduzir e promover, mesmo que a publicação demore muitos anos. Quando perguntada sobre porque escolheu Majling, Gogola admite: “Definitivamente porque Majling é imprevisível. Quando você começa a ler, não consegue adivinhar o que vai acontecer no fim da história, é o que faz você realmente gostar do texto”.

Sherwood, que compartilha esse entusiasmo, também relaciona o livro com o novo contexto da invasão russa na Ucrânia [12]:

What I most enjoy about the book is its irreverence and playfulness. In recent months, in light of the war in Ukraine, many people have rejected Russian culture in general and Russian literature in particular. While this emotional response is understandable, certainly on the part of Ukrainians, to me it goes too far, and I was pleased to see in your interview with Daniel Majling that he also sees it this way. On the other hand, Russian literature has often been put on a pedestal and treated as something sacrosanct, and that’s why I find Majling’s irreverent approach very refreshing. In a way, it is quite in the spirit of Russian literature — after all, apart from the writers of the solemn and weighty tomes there have always been authors with a lighter touch and a sense of the absurd. Even the great Pushkin is known to have penned a rather dirty poem.

O que eu mais gosto no livro é a irreverência e diversão. Nos últimos meses, diante da guerra na Ucrânia, muitas pessoas rejeitaram a cultura russa em geral e a literatura russa em particular. Ainda que essa resposta emocional seja compreensível, certamente por parte dos ucranianos, para mim foi longe demais, e fico feliz de ver em sua entrevista com Daniel Majling, que ele também pensa assim. Por outro lado, a literatura russa é frequentemente colocada em um pedestal e tratada como algo sacrossanto, e por isso a abordagem irreverente de Majling é tão refrescante. De certa forma, faz parte do espírito da literatura russa, pois, tirando os escritores dos livros pesados e solenes, sempre houve autores com um toque mais leve e senso do absurdo. Até mesmo o grande Pushkin é conhecido por ter escrito um poema sujo.

Gogola também fala do contexto atual na sua última resposta, sobre a questão das “literaturas menores”:

Perhaps Majling's book is a good pretext to redefine the place of Russian culture in our European world. Laughing at certain things can help us to “ventilate” our anger at Russia's attack on Ukraine. This does not mean that we should stop reading Russian classics, but we should also remember that the status of the Ukrainian language was never obvious: Ukrainians had to prove for decades they have their own language and literature. Supporting literature in small languages helps them survive. Unfortunately, Russia's policy has ruled out such an approach since the beginning of its empire. Symbolically, then, as readers, we can oppose Russia by reading the literature of “small nations.’.

Talvez o livro de Majling seja um bom pretexto para redefinir o lugar da cultura russa no mundo europeu. Rir de algumas coisas pode nos ajudar a “ventilar” nossa angústia com o ataque russo à Ucrânia. Isso não significa que devemos parar de ler clássicos russos, mas precisamos lembrar que o status da língua ucraniana sempre foi incerto: os ucranianos precisaram provar por décadas que possuem uma língua e literatura próprias. Apoiar a literatura em línguas menores ajuda à sua sobrevivência. Infelizmente, a política russa impediu esse tipo de abordagem desde o período imperial. Simbolicamente, então, como leitores, nós podemos nos opor à Rússia pela leitura da literatura das “nações menores”.



 

Imagem cortesia de Giovana Fleck.

Para mais informações sobre o assunto, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [12].