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A história esquecida das mulheres que mudaram a trajetória da computação na América Latina

Categorias: América Latina, Argentina, Ativismo Digital, História, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Tecnologia

“Computador Clementina” (1962). Fotografia do Programa de História da FCEN – Universidade de Buenos Aires, com permissão de uso para fins de estudo, pesquisa e docência. Editado pela Global Voices. Fonte [1].

Poucas pessoas sabem que as mulheres argentinas tiveram um papel significativo na história da computação latino-americana. Nos década de 1960, foi criada a primeira linguagem de programação da Argentina, chamada Compilador del Instituto de Cálculo (“Compiladora do Instituto de Cálculo”, a ComIC). Essa é uma história sobre apropriação tecnológica feita por programadores, matemáticos e pedagogos em um contexto histórico repleto de transformações políticas e tecnológicas.

Uma linguagem de programação é um conjunto de “regras gramaticais” e instruções para um computador. Assim, de certa forma, as mulheres da época ensinaram o primeiro computador científico da Argentina “a falar”.

Apenas alguns anos depois que as mulheres foram autorizadas a votar na Argentina, e num contexto tumultuado que viu nascer várias ditaduras, um grupo de estudantes recém-graduadas da primeira geração da área da Computação Científica da Universidade de Buenos Aires [2] construiu a ComIC para complementar o computador nacional batizado de “Clementina [3]“. Na época, a computação era considerada um serviço público.

Geralmente, esses episódios não são reconhecidos como parte da história da computação, e o papel das mulheres foi apagado ou esquecido, embora elas fossem parte fundamental disso. A programadora uruguaia Gaba, que pediu para ser identificada por seu apelido por ser sua identidade pública, enfatiza à Global Voices que todos temos histórias de tecnologia e é importante recuperá-las.

Recovering history with our technology, in this case history in Argentina and women in the development of technology, is also a part of recovering our own history.

Recuperar a história com nossa tecnologia, neste caso, a história da Argentina e de mulheres no desenvolvimento da tecnologia, faz, também, parte de recuperar nossa própria história.

Na ocasião, a computação não era considerada uma área mais masculina, ao contrário de hoje, onde as mulheres são minoria em CTEM [4]. A pesquisadora Sasha Costanza-Chock relatou em seu livro Design Justice:

Low diversity in technology has not always existed. Initially computers were people doing calculations, mostly women. When technology became relevant, men took over the industry.

A baixa diversidade na tecnologia nem sempre existiu. Inicialmente, os computadores eram pessoas que faziam cálculos, principalmente mulheres. Quando a tecnologia se tornou relevante, os homens dominaram a indústria.

As linguagens de programação são marcadas por seu contexto histórico e a ComIC não é exceção. O programador e carpinteiro mexicano, Federico Mena Quintero nos contou:

The history of programming languages is not only about how we give instructions to the computer, but how we conceive the computer's capabilities. Because what we write in a programming language is not exactly what the computer can do, [it goes beyond].

A história das linguagens de programação não se trata apenas de como damos instruções ao computador, mas como concebemos suas capacidades. Porque o que escrevemos numa linguagem de programação não é exatamente o que o computador pode fazer, [vai além].

Gaba tem sua própria definição a partir de sua experiência trabalhando para o Tor Project [5], uma organização que defende a liberdade na internet com redes abertas e software de código aberto.

[A programming language is] a way of approaching and structuring the design on how to do things. Each programming language has its own way of structuring or organizing how to tell things to the computer. It's a way of structuring how you explain to someone else how to do something.

[Uma linguagem de programação é] uma forma de abordar e estruturar o design sobre como fazer as coisas. Cada linguagem de programação tem sua própria maneira de estruturar ou organizar como dizer coisas ao computador. É uma maneira de estruturar como você explica a outra pessoa como fazer algo.

Naquela época, a computação era considerada um serviço público, pois as universidades administravam os poucos computadores disponíveis na América Latina para fins científicos e acadêmicos e para as necessidades dos governos. Portanto, essa linguagem de programação foi desenvolvida para o primeiro computador científico da Argentina, também conhecido como Clementina, instalado no Instituto de Cálculo [6] da Universidade de Buenos Aires, o qual foi usado para resolver problemas que abrangem desde o estudo dos rios da região mediante modelos matemáticos até o processo do Censo Nacional de 1960.

Na ocasião, as linguagens de programação eram escritas de maneira personalizada para cada computador e não para uso generalizado em vários modelos de computador. Assim, a história do computador Clementina é necessária para contar a gênese da criação da ComIC.

Oh, My Darling, Clementine

O primeiro computador científico da Argentina foi batizado de Clementina, nome retirado da popular canção norte-americana Oh My Darling, Clementine [7], que veio com o computador de modelo Mercury como um programa de computador de amostra. Clementina atuou entre 1961 e 1971 em órgãos governamentais na Argentina.

Um dos destaques do trabalho do grupo de mulheres com o programa Clementina foi o Censo Nacional de 1960. Essa primeira tarefa levou 30 minutos, segundo o que uma das líderes do projeto, a matemática Rebeca Guber, disse [8] na televisão. Ela mencionou que, nos três primeiros anos, o computador atendeu todo o estado argentino porque era o único. Foi sua melhor época, pois passou dos primeiros 30 minutos da tarefa do Censo Nacional para funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana.

Nas palavras de Manuel Sadosky, que conduziu as negociações para a aquisição do computador, citado no livro Manuel Sandosky, el Sabio de la Tribu (“Manuel Sadosky, o Sábio da Tribo”, em tradução livre):

For the first time, a computer was used for data development and evaluation, which saved a lot of time. Before, it took about ten years just to process the data.

Pela primeira vez, um computador foi usado no desenvolvimento e análise de dados, o que economizou muito tempo. Antes, levava-se cerca de dez anos apenas para processá-los.

Além disso, o grupo de mulheres criou a linguagem de programação ComIC, especialmente para a Clementina, já que antes o computador funcionava com a linguagem Autocode. Autocode refere-se a um conjunto de linguagens de programação desenvolvidas entre 1950 e 1960. Noemí Susana Silvia García, uma das programadoras, disse [9]:

This group needed a new more user-friendly language than Autocode and the new language project, called COMIC (Compiler Institute Calculus Compiler), was developed and implemented in its entirety by the group led by Professor Wilfred Durán and integrated by Clarisa Cortes, Cristina Zoltán, Liana Lew and myself.

Esse grupo precisava de uma nova linguagem mais amigável que o Autocode e o projeto da nova linguagem, chamada COMIC (Compilador do Instituto de Cálculo), foi desenvolvida e implementada em sua totalidade pelo grupo liderado pelo professor Wilfred Durán e integrado por Clarisa Cortes, Cristina Zoltán, Liana Lew e eu.

Clementina funcionou bem até 1966, quando a Polícia Federal Argentina expulsou, de forma violenta, estudantes e professores de cinco faculdades acadêmicas da Universidade de Buenos Aires, no que ficou conhecido como La Noche de los Bastones Largos [10](A Noite dos Bastões Longos). Esse evento marcou o fim do trabalho de pesquisa e o subsequente declínio de Clementina, apesar dos esforços técnicos para manter o computador operando. As faculdades acadêmicas haviam sido ocupadas por estudantes, professores e graduados que se opuseram à intervenção política do governo militar do general Juan Carlos Organía nos assuntos universitários.

Após a expulsão, houve uma renúncia massiva. De uma equipe de 70 pessoas, restaram apenas sete técnicos, resumiu Guber. Muitos da equipe principal e da fundação do projeto sob o guarda-chuva de Clementina foram exilados. Nas palavras de Victoria Bajar, a primeira programadora graduada pelo programa de Computação Científica:

 There was a discontinuity, but [the work] was sown elsewhere. And in those other parts it blended with the experiences of those other places.

Houve uma descontinuidade, mas [o trabalho] foi disseminado para outras partes. E, nessas outras partes, combinou-se com as experiências desses outros lugares.

Gaba finaliza se perguntando por que essa parte da história da tecnologia foi apagada e como podemos recuperá-la.

h [It's important to] bring back that history where the development of technology is not about isolated people in a garage…. That we develop technology in community, we develop technology with others and not totally isolated. That in the South and in other places that are not ‘first world’ technology is also developed.

[É importante] trazer de volta essa história onde o desenvolvimento da tecnologia não se trata apenas de pessoas isoladas numa garagem… Que desenvolvemos tecnologia em comunidade, com outras pessoas e não totalmente isolados. Que, no sul e em outros lugares que não são “primeiros mundos” a tecnologia também é desenvolvida.