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Daniel Majling: em entrevista, o escritor eslovaco fala sobre literatura russa e a atual cultura do cancelamento

Categorias: Europa Oriental e Central, Eslováquia, Rússia, Arte e Cultura, Etnia e Raça, Guerra & Conflito, História, Língua, Literatura, Mídia Cidadã, Política, Relações Internacionais, RuNet Echo, Russia invades Ukraine

Capa da coletânea de contos de Daniel Majling intitulada Ruzká klazika. Reproduzida sob a autorização de Filip Noubel.

Desde o início da segunda invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, [1] começaram pedidos para proibir a cultura russa em vários países europeus. Essa é uma questão particularmente sensível na Europa Central e Oriental, dada a proximidade com a Ucrânia e com a Rússia, e a presença de longa data da cultura russa, já que o país impôs seu controle sobre a região até o final da década de 1980.  

A Global Voices entrevistou o escritor, dramaturgo e autor de quadrinhos eslovaco, Daniel Majling, para perguntar sua opinião sobre o assunto, já que seu país recebeu grandes grupos de ucranianos [2], embora seja um lugar habitado por uma população russa abastada há muito tempo [3]. Majling também é conhecido na Eslováquia e na República Tcheca por seu inusitado livro de 2017 chamado Ruzká klazika (Clássicos Rosados, em tradução livre), uma coletânea de contos disfarçada de tradução, na qual elabora episódios humorísticos e até mesmo grotescos de ficção, baseados em alguns dos mais famosos clássicos russos. O que ele faz é distorcer ligeiramente seus nomes, transformando, por exemplo, Turgenev em Toorgenef, ou Tolstoi em Tolsztoi, com muito humor e ironia. A obra foi eleita Livro do Ano e finalista do prêmio literário de maior prestígio da Eslováquia, o Anasoft Litera [4]. A primeira parte do livro está disponível em inglês com tradução de Julia e Peter Sherwood [5]

A entrevista foi feita em tcheco e eslovaco por e-mail e editada por questões de estilo e concisão.

Quando perguntado sobre os pedidos de cancelamento da cultura russa, Majling dá uma resposta sutil:

Pýtali sa ma na to v posledných týždňoch viacerí – čo s ruskou kultúrou teraz? Nemôžeme sa tváriť, že sa nič nestalo. Pravdu povediac, ani ja nemám ktovieakú chuť čítať Čechova a viem si predstaviť, že to, čo je u mňa len nechuť, môže byť u človeka z rozbombardovanej dediny doslova fyzický odpor. Nestalo sa to prvýkrát v histórii.  Časť otázky bojkotu ruskej kultúry je jasná – je tu „kultúra“, či skôr propaganda, ktorú bolo treba bojkotovať už dávno. Ani nejaká spolupráca so štátnymi kultúrnymi inštitúciami teraz asi nemá zmysel.  Na druhej strane je jasné, že bojkotovaním Sorokinových knižiek alebo Zvjagincevových filmov to Putinovi práve „nenandáme“.

Potom sú tu už menej jednoznačné veci, ktoré by bolo treba prediskutovať knižku po knižke. Napríklad Solženicyn – ten bol po návrate do Ruska všetko možné, len nie človek, s ktorým by som sa vedel hodnotovo stotožniť, a predsa si myslím, že Súostrovie Gulag by sme vo vlastnom záujme bojkotovať nemali.

Muitos me perguntaram isso nas últimas semanas: e agora, o que faremos com a cultura russa? Não podemos fingir que nada aconteceu. Sendo sincero, não tenho vontade nenhuma de ler Chekhov e posso imaginar que minha falta de desejo seja, para alguém que teve seu povoado bombardeado, literalmente o sentimento de repulsa física. Essa não é a primeira vez que isso acontece na história. Parte dessa questão do boicote à cultura russa é clara — é uma “cultura” ou uma forma de propaganda que deveria ter sido boicotada há muito tempo. Agora não faz sentido algum apoiar instituições culturais estatais. Por outro lado, claro que o boicote aos livros de Sorokin [6]ou aos filmes de Zvyagintsev [7] não é a maneira de “derrotarmos” Putin.

Há também situações mais complexas que necessitam de uma discussão específica para cada caso. Consideremos Solzhenitsyn [8]: depois de retornar à Rússia, ele era uma pessoa com a qual eu não me simpatizava no que diz respeito a valores e ainda assim eu não acho que boicotar seu Arquipélago Gulag [9] funcionaria a nosso favor.

Majling então faz uma análise comparativa em torno do discurso da cultura russa ao destrinchar o conceito de toxidade das nações:

Tá otázka bojkotu má ešte ďalšiu rovinu. Mám kamarátov, ktorí sa o Dostojevskom alebo Tolstom vyjadrujú ako o principiálne toxických autoroch, v ktorých je hlboko zakorenený „ruský“ postoj k životu –  neúcta k slobode jednotlivca, nekritická podriadenosť voči autoritám, podozrievavosť voči racionalite, fatalizmus, fascinácia iracionálnom atď. 

Ak by sme otvorili otázku bojkotu ruskej klasiky pre jej „principiálnu toxickosť“,  jedným dychom by sme museli začať debatu o toxickosti  a bojkote Célina, Danta, Hauptmanna, Shawa, Sartra, Marxa, Nietzscheho, Heideggera, Platóna – ten zoznam autorov  je veľmi dlhý. Nemyslím si, že Dostojevskij je toxickejší ako Nietzsche.

Postoj, že v samotnej kultúrnej DNA Rusov je niečo toxické, má podľa mňa nebezpečne blízko k  etnocentrizmu. Latentne to v sebe obsahuje predpoklad, že niektoré civilizácie v sebe majú predispozície pre demokraciu a iné nie. Aj ja som čítal Huntingtona, ale v čase, keď bol v Španielsku Franco,  v Taliansku Mussolini, v Nemecku Hitler, na Slovensku Tiso, v Maďarsku Horthy, v Chorvátsku Pavelič atď., mohol niekto  rovnako „legitímne“ písať o európskej neschopnosti žiť v demokracii a o toxickosti našej kultúry, ktorá bola dobrá len na to, aby zavliekla svet do dvoch svetových vojen a predtým ešte vykonala na iných kontinentoch niekoľko príšerných genocíd. A napriek tomu sme sa k nejakej vratkej a neustále ohrozovanej demokracii dopracovali. Treba si však uvedomiť, že dni tejto demokracie sú spočítané, ak ju dopredu takýmto mudrovaním obmedzíme len na pár krajín. Ak sa k nej nemajú šancu dopracovať Rusi, ktorí k nám majú spolu s Juhoameričanmi kultúrne, nábožensky aj historicky najbližšie, ak sa k nej nemajú šancu dopracovať Rusi, ktorých posledný cár bol bratrancom nemeckého cisára i anglického kráľa,  čo potom Číňania s ich kolektivizmom? Čo Arabi a Peržania s ich sklonmi k teokracii? Čo africké národy? Ak nemá demokracia budúcnosť v Rusku,  jej dni sú z demografických, ekonomických a ďalších príčin spočítané aj na Západe.

A questão do boicote tem outro aspecto. Tenho amigos que falam sobre Dostoiévski ou Tolstoi como sendo autores tóxicos que no fundo carregam em si uma atitude “russa” em relação à vida, definida como falta de respeito à liberdade do indivíduo, por submeter-se à autoridade sem nunca a questionar, desconfiando de qualquer coisa racional, fascinados pelo irracional etc. Se abrirmos essa questão do boicote aos clássicos russos por conta de sua “toxidade”, então também precisaremos iniciar um debate sobre a toxidade e o boicote de Céline, Dante, Hauptmann, Shaw, Sartre, Marx, Nietzsche, Heidegger, Platão — a lista de autores é longa. Eu não acho que Dostoiévski seja mais tóxico do que Nietzsche.

Para mim, o conceito de que há algo tóxico no próprio DNA cultural dos russos está perigosamente próximo do etnocentrismo. Isso deixa subentendido que certas civilizações carregam em si a predisposição para a democracia enquanto outras, não.  Porém, quando Franco liderava a Espanha, Mussolini a Itália, Hitler a Alemanha, Tiso [10] a Eslováquia, Horthy [11] a Hungria, e Pavelić [12] a Croácia, alguém poderia ter escrito “legitimamente” sobre a inabilidade europeia de viver democraticamente, assim como acerca da “toxidade” da nossa cultura que só serviu para arrastar o mundo para duas guerras mundiais e, antes disso, cometer genocídios terríveis em outros continentes. Apesar disso tudo, abrimos caminho para uma democracia instável e constantemente ameaçada. No entanto, precisamos lembrar que os dias da democracia estão contados se a limitarmos antecipadamente a apenas alguns países com tal pontificação. Se os russos, assim como os sul-americanos, que estão cultural, religiosa e historicamente próximos de nós, não têm chance de trabalhar a favor da democracia, se o povo russo, cujo último tzar era primo do imperador alemão e do rei da Inglaterra, não têm chance de trabalhar por isso, o que dizer dos chineses e seu coletivismo?   E os árabes e persas com inclinações para teocracia?  E as nações africanas? Se a democracia não tem futuro na Rússia, seus dias estão contados também no Ocidente por razões demográficas, econômicas, dentre outras. 

Sobre seu interesse específico pela literatura russa, Majling explica que isso se dá em parte por conta do período de 2009 a 2013 quando ele foi contratado para transformar alguns clássicos russos em peças teatrais, incluindo Anna Karenina [13], de Tolstoi, Crime e Castigo [14], de Dostoiévski, além de Os Irmãos Karamazov [15] e Almas Mortas [16], ambos de Gogol. Segundo ele:

Po štyroch rokoch intenzívnej práce s týmito textami som bol tým spôsobom písania a myslenia jednoducho nasiaknutý.  V divadlách strednej a východnej Európy má určite bohatšiu inscenačnú tradíciu Čechov než Ibsen, Dostojevskij než Balzac, a teda tu existuje aj väčšie všeobecné povedomie o príbehoch, témach, či konfliktoch, ktoré táto literatúra prináša.

Após quatro anos de intenso trabalho com esses textos, eu estava praticamente imerso nesse tipo de texto e pensamento. Nos teatros da Europa Central e Oriental, as peças de Tchekhov ou Dostoiévski são tradicionalmente preferidas às de Ibsen ou Balzac, portanto há maior familiaridade para com as histórias, temas ou conflitos trazidos por essa literatura.

De fato, os europeus da Europa Central têm uma visão específica sobre sua relação com a Rússia e o leste europeu. No final do seu livro, ao comparar a França e a Eslováquia, Majling escreve que “v rodovej občine totiž nemôžu vznikať romány” — “Em uma comunidade de base familir [como na Eslováquia] romances não podem surgir”. Ele explica tal citação:

Tá veta z konca knihy naráža na naozaj špecifickú situáciu malých národov. Na Slovensku každý náhodný spolucestujúci vo vlaku sa tu po krátkom rozhovore stáva bývalým milencom vašej terajšej spolužiačky alebo terajším zaťom vašej bývalej učiteľky. Tieto osobné vzťahy tu v dobrom aj v zlom skresľujú všetko – kultúru, politiku, ekonomiku. Nie sme súčasťou takého celku, od ktorého by sme aspoň sčasti mohli mať odstup. 
Čo sa slovenskej literatúry týka, bolo a stále tu je pár originálnych samorastov, ale tí v podstate nikoho nezaujímajú ani na Slovensku. Je tu však aj dosť početná skupina tých, ktorí sa tvária, že ich nová kniha nemá nič spoločné s titulom, ktorý vyšiel pred 25 rokmi kdesi v zahraničí. Ale to je pochopiteľné. Po prvé, je tu pomerne malá možnosť odhalenia, a po druhé,  je to súčasťou našej literárnej tradície. Naša národná veselohra Dobrodružstvo pri obžinkoch je v skutočnosti poľská hra Okrężne.

Essa frase no final do livro refere-se à situação muito específica das pequenas nações. Na Eslováquia, qualquer viajante em um trem se tornará, após uma breve conversa, o ex-amante da sua amiga de escola ou o cunhado do seu ex-professor. Esses laços pessoais moldam tudo para melhor e para pior: cultura, política, negócios. Não fazemos parte de um mundo do qual podemos estar, pelo menos parcialmente, distantes. Quanto à literatura eslovaca, havia e ainda há alguns dissidentes originais, mas basicamente ninguém presta atenção a eles, mesmo dentro da Eslováquia. Contudo, há um grupo bastante grande daqueles que fingem que seu novo livro não tem nada a ver com um livro que foi publicado há 25 anos no exterior. Mas isso é compreensível. Primeiro porque é bastante improvável que eles sejam descobertos. Em segundo lugar, isso faz parte de nossa tradição literária: nossa peça nacional Dobrodružstvo pri obžinkoch [17] [uma comédia clássica chamada Aventura no Dia de Ação de Graças [18], em tradução livre] é, na verdade, uma peça polonesa chamada Okrężne [19].

Segundo Majling, o que no final das contas realmente importa na literatura é que ela seja provocativa, como ele mesmo diz:

Veľa autorov sa snaží písať angažovane a použiť  literatúru ako zbraň v boji za dobro, čo zväčša so sebou obnáša aj ideologické šablóny, ako písať, resp. nepísať o svete. Ibaže podľa mňa je primárnou úlohou literatúry byť „toxickou“, nehoráznou, pohoršujúcou a  nezmyselnou. Literatúra je sviatkom bláznov, priestorom na to, aby sme všetko to, čomu úprimne veríme, obrátili na hlavu, spochybnili to, domysleli do tých najabsurdnejších extrémov. Počas sviatkov bláznov bolo umožnené parodovať a zosmiešňovať svetské aj duchovné piliere, na ktorých spoločnosť stála, súdobú morálku aj dobré mravy samotného autora. Ak je to v súčasnosti v literatúre problém, potom sme na tom so slobodou oveľa horšie ako v stredoveku.   

Muitos autores tentam ser escritores engajados e usam a literatura como arma na luta pelo bem, que carrega modelos ideológicos pré-fabricados sobre como escrever, ou como não escrever sobre o mundo. Exceto que para mim, a função primária da literatura é ser “tóxica”, ultrajante, ofensiva e sem sentido. A literatura é a celebração dos tolos, o espaço onde devemos colocar de cabeça para baixo tudo o que acreditamos, onde devemos questionar e levar tudo à sua conclusão mais absurda. A celebração dos tolos permitiu que os pilares seculares e religiosos sobre os quais a sociedade se apoiava fossem parodiados e ridicularizados. Se isso se torna problemático na literatura contemporânea, então estamos com menos liberdade do que estávamos na Idade Média.


 

Imagem cortesia de Giovana Fleck.

Para mais informações sobre o assunto, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [1].