Em junho de 2022, cerca de um mês antes do início da 44ª Olimpíada de Xadrez, em Chennai, na Índia, a Federação Enxadrista do Cazaquistão (FEC) foi abalada por um a série de alegações envolvendo, direta e indiretamente, uma jovem jogadora de xadrez e alguns homens de diversas idades: dois oficiais seniores da federação, o ministro de cultura e esporte, e até mesmo o presidente do país. O confronto se tornou um redemoinho de intrigas e acusações, causando indignação popular e revelando os bastidores de relações nebulosas entre esportes profissionais e políticas de governo.
Um país cujos líderes políticos e estruturas governamentais têm como hábito envolver atletas de elite na propaganda política do regime, o Cazaquistão é conhecido por dar enormes prêmios em dinheiro para atletas bem-sucedidos com o orçamento do estado, pagando, por exemplo, a maior quantia do mundo por uma medalha de ouro na Olimpíada de Inverno de PyeongChang, em 2018, a quinta maior na Olimpíada de Verão de Tóquio e a terceira mais alta na Olimpíada de Inverno de Beijing, perdendo apenas para Singapura e Hong Kong. Contudo, quatro dos sete medalhistas de ouro na Olimpíada de Verão de Londres, em 2012, recebidos com cerimonias solenes e pomposas pelo então presidente Nursultan Nazarbayev, em 17 de agosto de 2012, tiveram suas medalhas retiradas oficialmente por conta de violações por doping. Estranhamente, em uma atitude do Ministério de Cultura e Esporte, não foi exigido que devolvessem o prêmio em dinheiro nem os muitos outros presentes do Estado apesar da grave má-conduta. Uma delas, a levantadora de peso Ilya Ilyin, que depois perderia suas medalhas de ouro das Olimpíadas de 2008 e 2012, até mesmo fez parte do conselho político do partido governista Nur-Utan em 2013, o órgão mais representativo do partido. Atualmente, a corrupção em organizações esportivas chegou a um ponto que até mesmo parlamentares governistas admitem que “o esporte do Cazaquistão está preso a escândalos de corrupção, enquanto os atletas sofrem com extorsões e humilhações por parte dos oficiais e funcionários de organizações esportivas“.
Já o atual escândalo, a mestra de 18 anos, Bibisara Assaubayeva, atual campeã do Campeonato Mundial Feminino de Xadrez Blitz e vice-campeã do Campeonato Mundial Feminino de Xadrez Rápido, revelou em uma postagem no Instagram em 21 de junho que ela, juntamente com as outras mulheres da equipe nacional, foram levadas pelo presidente e pelo vice-presidente da FEC para uma reunião com Aida Balayeva, um dos líderes da Administração do Presidente da República do Cazaquistão. Segundo ela, a reunião serviu como um ensaio para o encontro com o presidente do Cazaquistão, que aconteceria no dia seguinte; e, como ela descobriu, nessa reunião a equipe feminina teria que pedir 3 bilhões de KZT (cerca de 6,8 milhões de dólares americanos) para as necessidades da federação enxadrista. Surpreendentemente, os dois homens – o presidente recém-eleito da federação, Galim Khussainov, e o vice-presidente, Darmen Sadvakassov – foram advertidos pela anfitriã, sra. Balayeva, pelo comportamento inapropriado “diante de mulheres.”
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Conforme Assaubayeva se recorda, a própria ideia da reunião parecia estranha, já que ninguém da equipe masculina foi convidado, nem o técnico da equipe nacional, de forma que apenas os dois líderes da federação e a equipe feminina estavam presentes.
Ela escreveu:
Сегодня же до самой последней минуты я была уверена, что нас ведут на встречу к министру за олимпийскими напутствиями, а оказалось Дармен Садвакасов и его начальник нас привели просить 3 миллиарда тенге для бюрократов Казахстанской шахматной Федерации.
Очевидно, что сегодня была генеральная репетиция, руководство КФШ готовит его премьерный показ ЗАВТРА на встрече с Президентом страны, Касым-Жомарт Кемелевичем.
Мне стыдно и поэтому я прошу прощения. Я спортсмен, и хочу им оставаться.
Мне очень стыдно за себя, что я стала участницей этого постыдного спектакля.
Hoje, estava certa até o último instante que iríamos encontrar o ministro para receber seus votos de boa-sorte antes da Olimpíada, mas, no fim, Darmen Sadvakassov e seu chefe nos trouxeram para pedir 3 bilhões de tenge para os burocratas da Federação Enxadrista do Cazaquistão.
Obviamente, hoje foi um ensaio geral, como se os líderes da FEC estivessem se preparando para a estreia de AMANHÃ no encontro com o presidente do país, Kassym-Jomart Kemelevitch.
Estou envergonhada e peço perdão. Sou uma esportista e quero continuar sendo.
Estou com vergonha de mim mesma por ter tomado parte nesse teatro infeliz.
Como a postagem foi feita antes da reunião com o presidente do Cazaquistão, ambos os chefes da FEC e o ministro de cultura e esporte responderam rapidamente para negar as alegações, e, de qualquer forma, a soma não foi mencionada no palácio presidencial, embora a equipe masculina e o técnico não tenham aparecido. “Reunião com o chefe de estado, mas, infelizmente, sem a equipe masculina e sem o técnico”, ela escreveu na legenda do vídeo da reunião.
Dauren Abayev, Ministro da Cultura e Esporte, que também é um dos líderes da Administração presidencial, tinha certeza para declarar que ninguém “pediu dinheiro” na reunião, acrescentando “eu não estava presente na reunião quando isso foi discutido”. Entretanto isso não impediu que o ministro, que é bem conhecido por seus comentários sexistas e suas insinuações sexuais públicas, afirmasse que Assaubayeva agiu de forma “emotiva“. Em uma entrevista coletiva extraordinária, Kgussainov, presidente da FEC, tentou justificar o fato de que “os números mencionados na postagem não eram verdadeiros” sugerindo que “Bibisara ainda é uma criança. Tem apenas 18 anos. Então, provavelmente, não entendeu sobre o que estávamos falando”. Além disso, Zhansaya Abdumalik, uma colega da equipe feminina, que também estava presente na reunião, disse na coletiva de imprensa que Assaubayeva pode ter se confundido com o orçamento da Federação Enxadrista do Cazaquistão, que estava sendo discutido.
Bibisara Assaubayeva, que, no início da carreira, estava entre as muitas enxadristas perseguidas com cartas pornográficas por mais de uma década, já venceu na justiça russa acusações de falta de fairplay feitas pelo mestre Evgeny Solozhenkin, o proeminente jovem técnico russo, e recebeu indenização. Sua resposta aos ataques e alegações dos três homens e da colega jogadora, que, por sinal, é membro do conselho municipal do partido governista em Almaty, foi clara e sagaz. Ela escreveu em uma postagem do Instagram.
Могу лишь добавить – я гроссмейстер, совершеннолетний спортсмен с ясным умом и твёрдой памятью. Я никогда ничего не путаю, не домысливаю. И шагов никаких на эмоциях не совершаю, как предположил господин министр спорта.
Só posso acrescentar que sou uma esportista adulta e experiente com uma mente clara e uma memória que guarda informações. Nunca confundo coisas, nunca presumo nada. E não faço movimentos emotivos, como o senhor ministro supôs.
Depois de acrescentar que “é errado, antiético e imoral tentar roubar o tempo do presidente da república e o dinheiro do orçamento do país com pedidos criminosamente maliciosos e sem sentido”, ela sugeriu que os “ofendidos” procurem a justiça nos tribunais. Além disso, no que se refere a mentiras, ela garantiu aos dois homens, Khussainov e Sadvakassov, que encontrará um tempo vago em seu treinamento para passar pelo detector de mentiras com eles, se oferecendo para pagar pelos três.
Não é de se surpreender que, até agora, nenhum dos dois tenham expressado o desejo de passar por um teste de polígrafo.