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Como acabar com a violência contra as mulheres em tempos de paz e guerra

Categorias: Direitos Humanos, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero

Protesto contra Dominic Strauss-Kahn, também conhecido como DSK, na Cambridge Union Society [1]” DSK é um economista e político francês acusado de crimes sexuais. Crédito da foto divinenephron [2] é licenciado sob CC BY 2.0. [3].

Aviso de conteúdo: este artigo contém menção de estupro, violência sexual, violência contra a mulher, genocídio e outros tópicos que os leitores podem achar perturbadores.

No recente Festival de Cinema de Cannes [4], na França, uma mulher gritou: “Parem de nos estuprar!”. Seu corpo pintado de azul e amarelo – as cores da bandeira ucraniana – enquanto uma multidão de fotógrafos corriam e se empurravam para tirar a foto perfeita. Ela estava tentando chamar a atenção do público para a violência sexual desenfreada na Ucrânia praticada por soldados russos, mas ela poderia estar falando sobre zonas de conflito em épocas e locais diferentes: hoje no Sudão do Sul [5], Tigré [6] e Iêmen [7]; durante o genocídio de yazidis [8] no território iraquiano ocupado pelo Estado Islâmico em meados da década de 2010; nas contínuas campanhas de estupro na República Democrática do Congo [9]e, anteriormente, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, para citar apenas alguns exemplos.

Entendendo a violência sexual em situações de conflito de guerra

A violência sexual é, sem dúvida, a arma de guerra mais antiga. Desde os registros históricos de invasores que usavam o estupro para pilhar, saquear e ocupar territórios até o uso sistemático da violência sexual como ferramenta de genocídio [10] e limpeza étnica, essas terríveis práticas têm perdurado ao longo do tempo. Esse tipo de violência é onipresente e ocorre de forma contínua em tempos de paz e guerra. Tanto na guerra quanto na paz, é uma forma de dominação e agressão exercida pelo patriarcado sobre os corpos das mulheres, que desconhece fronteiras e afeta todas as mulheres. A violência sexual ocorre em ambientes propícios, possibilitado por atitudes sociais e culturais que normalizam a discriminação de gênero. Algumas mulheres são particularmente vulneráveis devido aos seus posicionamentos únicos em termos de casta, religião, habilidade, indigeneidade, etnia, cor, raça, classe, idade e condição migratória. As mulheres que fazem parte de comunidades historicamente oprimidas [11] são desproporcionalmente propensas a sofrer violência.

A violência sexual em situações de conflito é uma estratégia empregada de forma cuidadosa para enfraquecer psicologicamente as sociedades cujas mulheres são alvo. Qualquer agente que utilize a violência sexual como estratégia de guerra está ciente da estreita relação entre a igualdade de gênero, a não violência e o estabelecimento da paz sustentável, e é precisamente isso o que se deseja enfraquecer. Como diz o provérbio do povo índigena Cheyenne [12]:”Uma nação não é derrotada até que os corações de suas mulheres estejam no chão. Depois disso, acabou. Não importa o quanto seus guerreiros são corajosos ou como suas armas são fortes.”

Em conflitos armados, as mulheres são alvos deliberados com a intenção específica de causar danos às sociedades as quais elas pertencem, ou de forma oportunista prejudicar, fora de uma campanha, sem medo de sanções porque a ruptura dos setores de segurança e justiça proporciona um ambiente propício. A devastação causada pela guerra significa que as mulheres têm menos meios para buscar reparação, caso seja possível. E ainda assim, pouco parece ter sido feito para abordar esse tipo de violência.

As lacunas no sistema jurídico

Em 2000, o Conselho de Segurança da ONU adotou a agenda Mulheres, Paz e Segurança, [13] mediante uma resolução que exigia atenção especial para tratar da questão da violência sexual em conflitos. Hoje, não existe nas Nações Unidas um instrumento legalmente vinculante específico sobre a violência contra mulheres [14]. Isso abre o caminho para um estado de impunidade, que é invariavelmente instrumentalizado para realizar esses crimes.

Em 2015, no dia 19 de junho, a ONU declarou [15]o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Sexual em Conflitos. Isto foi feito para aumentar a conscientização sobre a violência sexual em conflitos, honrar vítimas e sobreviventes de violência sexual em todo o mundo, prestar homenagem a todos que corajosamente passaram suas vidas defendendo a erradicação desses crimes, bem como aos que perderam suas vidas em decorrência da violência sexual. Apesar desses esforços, a violência sexual em conflitos de guerra continua inabalável.

A ausência de um tratado vinculante específico para acabar com a violência contra mulheres e meninas no mundo todo é um grande problema. Hoje, as experiências vividas pelas mulheres em conflitos armados continuam a ser apagadas, colocadas de lado nos processos de paz e enterradas nas apressadas tentativas de paz por meio de anistias que sacrificam a justiça.

Uma estratégia para acabar com a violência sexual em conflitos de guerra

A mentalidade e as atitudes que favorecem a violência sexual durante a guerra estão enraizadas na mentalidade e nas atitudes que prevalecem em tempos de paz. Considera-se que uma mulher representa a tríade patriarcal que comanda sua vida, como disse a jornalista egípcio-americana Mona Eltahawy [16]: o Estado, as ruas e sua casa. Mulheres e meninas são criadas sob a suposição (às vezes internalizada por elas também) de que seus corpos são veículos de honra e vergonha, e que a salvaguarda de seus corpos é fundamental para a aceitação social. Se não existissem conceitos predominantes que vinculassem os corpos das mulheres a noções de honra social e vergonha em tempos de paz, a violência sexual e de gênero não se manteria como estratégia nas guerras.

Uma maneira de resolver isso é estabelecer um tratado global e vinculante para acabar com a violência contra as mulheres. Um tratado desta natureza exigiria a implantação de mecanismos legais em nível doméstico, a prestação de serviços aos sobreviventes e a facilitação da educação preventiva. Um tratado estabeleceria as bases para um padrão mínimo de proteção para mulheres e meninas contra a violência, comprometendo as nações de forma igualitária. As reformas legislativas em âmbito estatal fariam com que os sistemas legais individuais se equiparassem com a norma global, e assim promoveriam normas de prevenção e reparação em ações locais.

Um tratado para eliminar a violência pode abrir caminho para um futuro no qual a violência contra qualquer mulher, em qualquer lugar do mundo, seja reconhecida como inaceitável e acionável. Em última análise, um futuro feminista é aquele que está desprovido de qualquer forma de troca militarizada. Enquanto perseguimos esse sonho, devemos ser claros sobre a contenção da violência contra as mulheres em tempos de paz e guerra. Um tratado global seria de grande valia para garantir que eles “parem de nos estuprar!”