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Compreendendo os efeitos danosos da propaganda russa contra a OTAN e o Kosovo

Categorias: Europa Oriental e Central, Kosovo, Rússia, Sérvia, Ativismo Digital, Fotografia, Guerra & Conflito, História, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Política, Relações Internacionais, The Bridge, Russia invades Ukraine
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Mustafa Xaja, do Kosovo, em 1999 e 2021.  Imagens feitas a partir da captura de tela de uma fotografia famosa tirada durante a Guerra do Kosovo e do vídeo de uma entrevista da TV T7.

“A intervenção da OTAN na guerra do Kosovo não foi justa”. Esta é a narrativa que a propaganda russa e sérvia quer construir.

Isto foi novamente enfatizado pelo presidente russo Vladimir Putin quando ele se referiu à intervenção da OTAN na Guerra do Kosovo [2] após a reunião de 15 de fevereiro com o chanceler alemão Olaf Scholz em Moscou. Nessa reunião, de acordo com um artigo no site da EuroNews [3], o “líder russo insistiu em não querer uma guerra com a Ucrânia, depois de semanas de tensões alimentadas por um destacamento maciço de tropas russas”.

A elaboração desta narrativa tornou-se ainda mais relevante à medida que a guerra russa contra a Ucrânia se intensificou em 28 de fevereiro.

Por meio de várias manipulações, a campanha de propaganda russa e sérvia procura fortalecer esse ponto de vista e alterar a verdade sobre a Guerra do Kosovo de 1998-1999 [4] como lhes convém. Tal desinformação também é difundida na vizinha Montenegro [5], bem como na Bósnia-Herzegovina [6]. A fim de deter a catástrofe humanitária que estava se desenvolvendo no Kosovo na época, a OTAN interveio e iniciou uma operação aérea conhecida como Operação Força Aliada [7] em março de 1999.

Desde então, a propaganda sérvia e russa tenta periodicamente forçar uma narrativa que levanta dúvidas sobre a intervenção da OTAN. Isso inclui, mas não se limita ao abuso de imagens de vítimas de limpeza étnica, apresentando-as erroneamente como vítimas do Ocidente, ou seja, a intervenção da OTAN que, na verdade, impediu essa limpeza étnica e o derramamento de sangue nos Bálcãs.

Isso, em geral, tem como objetivo justificar a agressão russa à Ucrânia, ou justificar as guerras lideradas pelo regime do líder autoritário sérvio Slobodan Milošević [8] na Croácia, Bósnia e Kosovo. Um exemplo recente é a negação do ministro das Relações Exteriores russo Sergei Lavrov [9] quanto ao Massacre de Racak de 1999, como parte de uma narrativa de desinformação destinada a relativizar o massacre de Bucha de mais de 1.000 cidadãos da Ucrânia por ocupantes russos durante o mês de março.

Esta tendência não é nova. Em 2019, a diretora do Centro de Estudos Euro-Atlânticos de Belgrado, Jelena Milić advertiu [10] que o Kremlin, a mídia russa patrocinada pelo Estado Sputnik e seus procuradores espalharam sistematicamente desinformação sobre os eventos relacionados com a intervenção da OTAN.

O analista Daniel Sutner advertiu sobre este tipo de narrativas em 2020 em um artigo sobre desinformação nos Balcãs Ocidentais [11], publicado pelo site da OTAN:

Kremlin-sponsored media content in the Serbian language is produced, republished and disseminated widely throughout the region. It is consumed by millions in societies with inherent fragilities and internal divisions, in a region which traditionally has a positive attitude towards Russia and where perceptions are still influenced by the ethnic conflicts in the 1990s and NATO’s Kosovo Air Campaign [12] in March 1999. Unlike Eastern-flank EU and NATO member states, the region lacks negative historical experiences with Moscow and shares a common Orthodox religion.

O conteúdo de mídia patrocinado pelo Kremlin na língua sérvia é produzido, republicado e amplamente divulgado em toda a região. Ele é consumido por milhões em sociedades com fragilidades inerentes e divisões internas, em uma região que tradicionalmente tem uma atitude positiva em relação à Rússia e onde as percepções ainda são influenciadas pelos conflitos étnicos dos anos 1990 e pela Campanha Aérea da OTAN no Kosovo [12], em março de 1999. Ao contrário dos países membros da UE e da OTAN, a região carece de experiências históricas negativas com Moscou e compartilha uma religião ortodoxa comum.

Um caso particular de desinformação relacionada ao Kosovo baseia-se na exploração de fotos outrora famosas do Kosovo, apresentadas em artigos anteriores [13].

Um exemplo mostra outra manipulação que, mais uma vez, tem suas origens na Guerra do Kosovo e na intervenção da OTAN em março de 1999 [12]. Uma criança albanesa do Kosovo, de dois anos de idade, que foi morta pelo exército sérvio é apresentada como vítima de um bombardeio da OTAN, em um texto publicado no site russo College36 [14].

Captura de tela do site russo COLLEGE36.RU, com uma descrição manipulada.

Para desconstruir essa desinformação, precisávamos verificar a foto e, usando uma busca em uma das plataformas ou ferramentas que permitem a verificação da foto, “Google Lente [15]“, “Yandex Imagens [16]” ou “TinEye [17]“, conseguimos entender a verdade sobre aquela foto.

Na verdade, a foto não é de uma criança sérvia, supostamente vítima do bombardeio da OTAN. Esta foto, tirada em 1998 pelo vencedor do Prêmio Pulitzer, Yannis Behrakis, e publicada originalmente pela Reuters [18], mostra na verdade um pai de etnia albanesa do Kosovo colocando em um caixão o corpo do seu filho, que foi morto pelas forças sérvias.

Verificação da fotografia mediante o uso do TinEye.

Manipulações como esta não são feitas apenas pela mídia ou pelo Estado russo, de Putin [19] a declarações públicas de altos funcionários do Ministério das Relações Exteriores russo até tuítes por contas oficiais das embaixadas russas em todo o mundo (incluindo a África do Sul [13]). Isto também é feito através de outros canais de comunicação, seja em sites de redes sociais ou mesmo por escritores russos estabelecidos que tenham publicado livros de prosa ou poesia. Foi o caso da manipulação do contexto de uma fotografia do albanês Mustafa Xaja, de uma etnia do Kosovo.

Descrição manipulada de uma fotografia sem atribuição: ‘Vítimas do bombardeio da Sérvia de 1999′. Captura de tela da página Kosovo i Metohija no Facebook.

Em 2012, uma página sérvia no Facebook chamada Kosovo i Metohija [20] republicou uma foto da Reuters com a legenda “Vítimas do bombardeio de 1999 na Sérvia”. A mesma foto com as mesmas informações enganosas foi usada dois anos depois por uma escritora de Moscou, Nadezhda Miroshnichenko [21] em seu perfil no V Kontakte (VK), uma plataforma de rede social russa similar ao Facebook, usada por milhões de falantes do idioma russo. Entretanto, a verdade sobre esta imagem é diferente da propaganda que está sendo promovida por estas duas fontes de mídia.

“O albanês Mustafa Xaja, da cidade de Mitrovica, no Kosovo, mostra fotos de seus dois filhos que ele teme terem sido mortos por sérvios durante a guerra no Kosovo em 1999″, a legenda [22] da foto de Peter Turnley diz, publicada originalmente em 1999 [23]. Até mesmo o homem da foto, prova isso, 22 anos depois, quando ele foi entrevistado no programa matinal da T7 [24], uma estação de TV com sede no Kosovo.

Como no caso do funeral da criança e de outros membros de sua família, a história de Mustafa Xaja e a foto dele são facilmente verificáveis com uma das plataformas de busca de imagens acima mencionadas.

Apresentar casos como estes com a possibilidade de abuso atual ou subsequente pela diplomacia russa ou sérvia com um efeito desorientador e desinformador é danoso, para não dizer perigoso, para o estado do Kosovo e sua imagem.

Particularmente danoso e perigoso é a disseminação dessa desinformação em países onde não há muito conhecimento sobre o caso do Kosovo. Um exemplo disso é um tuíte no perfil oficial da embaixada russa na África do Sul [13], que publicou uma foto alterada do refugiado albanês, Sherifa Luta, fugindo das forças sérvias e a representou erroneamente como um sobrevivente sérvio do bombardeio da OTAN.

Joan Donovan, diretor de pesquisa do Centro Shorenstein de Harvard, chama esta tática de desinformação de “guerra de informação de baixo nível [25]“.

Na nova onda de desinformação russa, após a nova situação criada pela invasão em larga escala para ocupação da Ucrânia, o nome do Kosovo pode ser usado de forma enganosa e maliciosa novamente e, talvez, na disseminação de narrativas tendenciosas e falsas que deturpam a história recente. As instituições do Kosovo deveriam, portanto, mobilizar-se e reagir a falsas narrativas; caso contrário, corremos o risco de deixar que a verdade seja embaçada e minada, enquanto enganos e mentiras proliferam.


 

Imagem cortesia de Giovana Fleck.

Para mais informações sobre este tema, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [26].