Uma decisão da Justiça Federal do estado do Acre [3], do dia 3 de junho de 2022, determinou que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua, no próximo Censo Demográfico, questões referentes a orientação sexual e identidade de gênero da população do Brasil. Porém, ela acabou suspensa por uma corte superior cerca de 20 dias depois [4].
A decisão atendia a um pedido do Ministério Público Federal do estado da região norte, mas poderia passar a valer para todo o país [5]. Segundo o canal de notícias Globo News, a ação apresentada diz que a ausência destas perguntas “configura um real impedimento para a formulação de políticas públicas que atendam as necessidades da população LGBTQIA+”.
O IBGE diz [6] que só irá se manifestar sobre a suspensão depois que a Advocacia Geral da União tiver examinado a mesma.
A questão coloca em debate no Brasil a necessidade de inclusão e, ao mesmo tempo, a chance de adiamento da pesquisa [7] sobre o cenário da população brasileira por falta de recursos na operação. O último censo foi realizado em 2010.
Uma proposta semelhante já havia sido apresentada no ano passado pelo senador Fabiano Contarato — homossexual [8] assumido, ele mesmo já foi alvo de ataques homofóbicos [9]. O projeto de lei cita a invisibilidade da população LGBTQIA+ como parte do problema da falta de políticas do poder público para enfrentar a violência contra esse público.
“Sem dados completos, inequívocos, atuais e tratados estatisticamente, continuaremos mantendo apagadas as identidades desses indivíduos e nos recusando a reconhecer que existe um problema público de exclusão social e produtiva de uma parcela considerável da população brasileira”, diz o projeto de lei [10] apresentado pelo senador.
No site do Senado [11], 291 pessoas se colocaram a favor da proposta, enquanto 218 se manifestaram contrárias, até 28 de junho.
Decisão judicial
Na ação, o IBGE citou um processo anterior, que teve decisão da Justiça federal no sentido contrário: pela não inclusão dos campos de identidade de gênero e orientação sexual no levantamento.
O juiz federal Herley da Luz Brasil, porém, afastou a interferência da decisão anterior na atual e avaliou que, se há quatro anos o IBGE não possuía metodologia de referência para viabilizar o pedido, como explica o site Conjur [12], isso mudou:
Ocorre que, já no ano de 2021, a Inglaterra e o País de Gales criaram e aplicaram metodologias próprias em seus censos, aptas a quantificarem a população LGBTQIA+.
(…) em 2022 temos diversos exemplos internacionais de Estados que incluíram quesitos relativos à matéria em seus censos, a saber, Reino Unido, Canadá, Escócia e Nova Zelândia, o que demonstra que é possível a indagação da população sobre o tema.
O juiz diz ainda que “caso seja necessário, é bem mais provável ser menos prejudicial adiar-se o Censo por alguns dias do que se passarem mais 10 anos sem esses dados”.
Na ação, o MPF [13] se manifestou dizendo:
O censo demográfico do IBGE ignora totalmente a identidade de gênero e a orientação sexual em seus questionários. Trata-se de uma verdadeira limitação em sua metodologia censitária, que, além de excluir importante parte da população brasileira do retrato real que deve ser demonstrado pela pesquisa, também restringe o alcance das políticas públicas que efetivam os seus direitos fundamentais.
O desembargador federal José Amilcar Machado, que suspendeu a decisão, afirmou que se baseou “aspectos gerenciais e temporais”, segundo o site G1 [4], já que o início do Censo está próximo e “sua não ocorrência acarretaria mais males do que benefícios à população”. Ele ressalta, no entanto, que é “imprescindível” ter as questões nos próximos censos.
Visão da comunidade LGBTQIA+
Há 13 anos no topo da lista de países que mais matam pessoas trans no mundo, conforme relatório publicado pela Transgender Europe (TGEU), [14] o Brasil se consolidou como um dos países que mais registra casos de violência contra pessoas LGBTQIA+.
O Censo — que já vinha sendo adiado [15] nos últimos anos por questões como a pandemia do COVID-19 e orçamento — é a principal pesquisa responsável por definir os rumos e as medidas que o Governo Federal deve tomar frente às necessidades da população.
Erika Hilton [16], presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, primeira vereadora trans na maior metrópole da América Latina e ativista dos direitos LGBTQIA+, comentou em suas redes sociais à época da decisão:
VITÓRIA PELA VISIBILIDADE E GARANTIA DE DIREITOS 🏳️🌈👇🏽
A Justiça determinou que o IBGE precisa reconhecer existências e realizar perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual!#LGBT [17] #Gay [18] #Trans [19] #Lesbica [20] #Bissexual [21] #Travesti [22] #lgbtpride [23] #Orgulho [24] #GenteÉPraBrilhar [25] pic.twitter.com/BKD1SLSF9P [26]
— ERIKA HILTON 🏳️⚧️ ☀️ 🚩 (@ErikakHilton) June 3, 2022 [27]
Ativistas, como a vereadora do Rio de Janeiro Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, criticaram a derrubada da decisão no dia 27:
Mais um absurdo às vésperas do dia do Orgulho LGBTQIA+. Foi suspensa a liminar que obrigava o IBGE a incluir perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no Censo 2022. Um retrocesso que só serve pra nos invisibilizar e evitar políticas públicas específicas pra lgbts.
— Monica Benicio (@monica_benicio) June 27, 2022 [28]
A ANTRA [29] (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) chamou a resistência do IBGE em adotar as medidas de “LGBTIfobia institucional”:
LGBTIFOBIA INSTITUCIONAL:
Exatamente como fez em 2016 e 2018 quando foi interpelado por nós e pela DPU.>> IBGE diz que não consegue incluir questão sobre orientação sexual e ameaça cancelar o Censo @estadao [30]: https://t.co/6yf9dKbP8t [31]
— ANTRA Brasil (@AntraBrasil) June 10, 2022 [32]
O lado do IBGE
Cerca de uma semana depois da decisão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística afirmou [33] que:
A menos de dois meses do início da operação do Censo Demográfico 2022, não é possível incluir no questionário pergunta sobre “orientação sexual/identidade de gênero” com técnica e metodologia responsáveis e adequadas — muito menos com os cuidados e o respeito que o tema e a sociedade merecem.
O instituto alega que adicionar novas questões demandaria alterar a metodologia utilizada e ocasionaria um aumento de recursos federais que ultrapassariam o orçamento — de cerca de R$ 2,3 bilhões (US$ 450 milhões) — previsto para o Censo 2022.
O IBGE diz ainda que “um Censo não pode ser levado a campo partindo de um questionário não estudado, não testado e com equipe não devidamente treinada”.
Há pessoas LGBTQIA+ que também não concordam com a decisão judicial, colocando entre os pontos contra o fato de que nem sempre as pessoas assumiram para a família ou publicamente sua orientação sexual ou identidade de gênero:
Porque o Censo não é a melhor estratégia para obter dados sobre a população LGBTQ+ no Brasil. Segue o fio. https://t.co/Arg1Psp3aZ [34]
— Fer Fortes 🏳️🌈 (@fortesdelena) June 6, 2022 [35]
O IBGE ainda defendeu que questões sobre a comunidade LGBTQIA+ podem ser abordadas em outras pesquisas, com diferentes metodologias e objetivos, alegando que as questões são inseridas em levantamentos previstos para 2023, como Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde.
Dados hoje
Em maio, o IBGE divulgou [36] os resultados referentes ao primeiro levantamento da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) — um inquérito de saúde de base domiciliar — que incluiu uma questão relacionada à orientação sexual dos entrevistados.
Realizada em 2019, investigando o tema de forma experimental e por meio da autoidentificação pela primeira vez, a pesquisa concluiu que 2,9 milhões de adultos no Brasil se declararam homossexuais ou bissexuais — o país tem uma população estimada em 214 milhões de pessoas [37].
A pesquisa busca abarcar temas que envolvem a saúde da população e seus impactos no serviço público:
(1/3) 🏳️🌈O IBGE divulgou hoje um novo quesito da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019) sobre a orientação sexual da população adulta brasileira. Outras das nossas pesquisas estimaram uniões de casais de mesmo sexo, mas pela 1ª vez investigamos o tema pela autoidentificação. pic.twitter.com/uOrMq4fr6C [38]
— IBGE Comunica (@ibgecomunica) May 25, 2022 [39]
Em entrevista ao G1 [40], Lucas Costa Almeida Dias, procurador regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no Acre, pontuou:
A PNS se depara com as limitações de uma coleta direcionada a um tema específico (saúde) e é realizada em apenas 108 mil domicílios. Por outro lado, o censo demográfico inclui toda a população brasileira e poderá traçar um retrato fidedigno do perfil social, geográfico, econômico e cultural das pessoas LGBTQIA+ no Brasil, porque cobre pequenas áreas geográficas e grupos populacionais que poderiam ser perdidos ou deturpados em pesquisas menores, como a PNS.
A pesquisa do censo brasileiro tem previsão de início em agosto.