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Perto de novo Censo, brasileiros discutem inclusão de orientação sexual e gênero na pesquisa

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Direitos LGBT, Governança, Mídia Cidadã
Bandeiras LGBTQIA+ sendo estendidas | Image: Uso autorizado sob licença Unsplash

Bandeiras LGBTQIA+ na Parada de Londres, em 2019 | Foto: Daniel James [1]/Uso autorizado sob licença Unsplash [2]

Uma decisão da Justiça Federal do estado do Acre [3], do dia 3 de junho de 2022, determinou que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inclua, no próximo Censo Demográfico, questões referentes a orientação sexual e identidade de gênero da população do Brasil. Porém, ela acabou suspensa por uma corte superior cerca de 20 dias depois [4].

A decisão atendia a um pedido do Ministério Público Federal do estado da região norte, mas poderia passar a valer para todo o país [5]. Segundo o canal de notícias Globo News, a ação apresentada diz que a ausência destas perguntas “configura um real impedimento para a formulação de políticas públicas que atendam as necessidades da população LGBTQIA+”.

O IBGE diz [6] que só irá se manifestar sobre a suspensão depois que a Advocacia Geral da União tiver examinado a mesma.

A questão coloca em debate no Brasil a necessidade de inclusão e, ao mesmo tempo, a chance de adiamento da pesquisa [7] sobre o cenário da população brasileira por falta de recursos na operação. O último censo foi realizado em 2010.

Uma proposta semelhante já havia sido apresentada no ano passado pelo senador Fabiano Contarato — homossexual [8] assumido, ele mesmo já foi alvo de ataques homofóbicos [9]. O projeto de lei cita a invisibilidade da população LGBTQIA+ como parte do problema da falta de políticas do poder público para enfrentar a violência contra esse público.

“Sem dados completos, inequívocos, atuais e tratados estatisticamente, continuaremos mantendo apagadas as identidades desses indivíduos e nos recusando a reconhecer que existe um problema público de exclusão social e produtiva de uma parcela considerável da população brasileira”, diz o projeto de lei [10] apresentado pelo senador.

No site do Senado [11], 291 pessoas se colocaram a favor da proposta, enquanto 218 se manifestaram contrárias, até 28 de junho.

Decisão judicial

Na ação, o IBGE citou um processo anterior, que teve decisão da Justiça federal no sentido contrário: pela não inclusão dos campos de identidade de gênero e orientação sexual no levantamento.

O juiz federal Herley da Luz Brasil, porém, afastou a interferência da decisão anterior na atual e avaliou que, se há quatro anos o IBGE não possuía metodologia de referência para viabilizar o pedido, como explica o site Conjur [12], isso mudou:

Ocorre que, já no ano de 2021, a Inglaterra e o País de Gales criaram e aplicaram metodologias próprias em seus censos, aptas a quantificarem a população LGBTQIA+.

(…) em 2022 temos diversos exemplos internacionais de Estados que incluíram quesitos relativos à matéria em seus censos, a saber, Reino Unido, Canadá, Escócia e Nova Zelândia, o que demonstra que é possível a indagação da população sobre o tema.

O juiz diz ainda que “caso seja necessário, é bem mais provável ser menos prejudicial adiar-se o Censo por alguns dias do que se passarem mais 10 anos sem esses dados”.

Na ação, o MPF [13] se manifestou dizendo:

O censo demográfico do IBGE ignora totalmente a identidade de gênero e a orientação sexual em seus questionários. Trata-se de uma verdadeira limitação em sua metodologia censitária, que, além de excluir importante parte da população brasileira do retrato real que deve ser demonstrado pela pesquisa, também restringe o alcance das políticas públicas que efetivam os seus direitos fundamentais.

O desembargador federal José Amilcar Machado, que suspendeu a decisão, afirmou que se baseou “aspectos gerenciais e temporais”, segundo o site G1 [4], já que o início do Censo está próximo e “sua não ocorrência acarretaria mais males do que benefícios à população”. Ele ressalta, no entanto, que é “imprescindível” ter as questões nos próximos censos.

Visão da comunidade LGBTQIA+

Há 13 anos no topo da lista de países que mais matam pessoas trans no mundo, conforme relatório publicado pela Transgender Europe (TGEU), [14] o Brasil se consolidou como um dos países que mais registra casos de violência contra pessoas LGBTQIA+.

O Censo — que já vinha sendo adiado [15] nos últimos anos por questões como a pandemia do COVID-19 e orçamento — é a principal pesquisa responsável por definir os rumos e as medidas que o Governo Federal deve tomar frente às necessidades da população.

Erika Hilton [16], presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, primeira vereadora trans na maior metrópole da América Latina e ativista dos direitos LGBTQIA+, comentou em suas redes sociais à época da decisão:

Ativistas, como a vereadora do Rio de Janeiro Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, criticaram a derrubada da decisão no dia 27:

A ANTRA [29] (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) chamou a resistência do IBGE em adotar as medidas de “LGBTIfobia institucional”:

O lado do IBGE

Cerca de uma semana depois da decisão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística afirmou [33] que:

A menos de dois meses do início da operação do Censo Demográfico 2022, não é possível incluir no questionário pergunta sobre “orientação sexual/identidade de gênero” com técnica e metodologia responsáveis e adequadas —  muito menos com os cuidados e o respeito que o tema e a sociedade merecem.

O instituto alega que adicionar novas questões demandaria alterar a metodologia utilizada e ocasionaria um aumento de recursos federais que ultrapassariam o orçamento — de cerca de R$ 2,3 bilhões (US$ 450 milhões) — previsto para o Censo 2022.

O IBGE diz ainda que “um Censo não pode ser levado a campo partindo de um questionário não estudado, não testado e com equipe não devidamente treinada”.

Há pessoas LGBTQIA+ que também não concordam com a decisão judicial, colocando entre os pontos contra o fato de que nem sempre as pessoas assumiram para a família ou publicamente sua orientação sexual ou identidade de gênero:

O IBGE ainda defendeu que questões sobre a comunidade LGBTQIA+ podem ser abordadas em outras pesquisas, com diferentes metodologias e objetivos, alegando que as questões são inseridas em levantamentos previstos para 2023, como Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde.

Dados hoje

Em maio, o IBGE divulgou [36] os resultados referentes ao primeiro levantamento da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) — um inquérito de saúde de base domiciliar — que incluiu uma questão relacionada à orientação sexual dos entrevistados.

Realizada em 2019, investigando o tema de forma experimental e por meio da autoidentificação pela primeira vez, a pesquisa concluiu que 2,9 milhões de adultos no Brasil se declararam homossexuais ou bissexuais — o país tem uma população estimada em 214 milhões de pessoas [37].

A pesquisa busca abarcar temas que envolvem a saúde da população e seus impactos no serviço público:

Em entrevista ao G1 [40], Lucas Costa Almeida Dias, procurador regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no Acre, pontuou:

A PNS se depara com as limitações de uma coleta direcionada a um tema específico (saúde) e é realizada em apenas 108 mil domicílios. Por outro lado, o censo demográfico inclui toda a população brasileira e poderá traçar um retrato fidedigno do perfil social, geográfico, econômico e cultural das pessoas LGBTQIA+ no Brasil, porque cobre pequenas áreas geográficas e grupos populacionais que poderiam ser perdidos ou deturpados em pesquisas menores, como a PNS.

A pesquisa do censo brasileiro tem previsão de início em agosto.