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“Também estamos participando desta guerra”, diz a comunidade LGBTQ+ da Ucrânia

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Ucrânia, Ativismo Digital, Direitos LGBT, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Pride 2022: Community resistance, Russia invades Ukraine

Ivan Gonzyk (Crédito da foto: Ivan Gonzyk / Instagram). Usada sob permissão.

Este artigo da jornalista Maryna Bakyeva [1] foi publicado [2] pela primeira vez na Geneva Solutions. Uma versão editada é republicada aqui como parte de um acordo de compartilhamento de conteúdo com a Global Voices.

Os representantes LGBTQ+ dentro do exército ucraniano raramente são retratados. Em 2018, Viktor Pylypenko, um homossexual assumido e veterano do Batalhão Voluntário de Donbas, decidiu mudar isso formando as Forças Armadas LGBT, uma associação de militares, veteranos e voluntários que lutam pela igualdade de direitos. Este artigo explora como sua ideia surgiu, e também conta as histórias de outros dois soldados da comunidade LGBTQ+ a quem a associação deu apoio.

Projeto We were here

Desde 2014, cerca de 330.000 ucranianos participaram da operação militar do governo ucraniano contra militantes liderados pela Rússia no leste do país, mas não há dados públicos sobre quantos deles são membros da comunidade LGBTQ+.

Foi isso que motivou o We Were Here [3], um projeto fotográfico procedente de Kiev e que mostra membros das forças ucranianas de diversas orientações sexuais e de gênero. As fotos foram tiradas por Anton Shebetko, um artista e fotógrafo ucraniano que vive em Amsterdã.

“O projeto ‘We were Here’ tem como objetivo conhecer de perto as pessoas que tanto são reconhecidas como heróis contemporâneos da sociedade ucraniana como também são ignoradas pela maioria de seus compatriotas”, disse [4] Shebetko.

A maioria das pessoas fotografadas tem seus rostos cobertos. Um dos soldados, Viktor Pylypenko, que se assumiu durante a exposição, é conhecido [5]como o primeiro combatente ucraniano da guerra contra a Rússia a se declarar homosexual publicamente.

Esse momento também marcou o início da criação das Forças Armadas LGBT [6], pois inspirou Pylypenko a criar a associação.  A entidade vem compartilhando histórias de soldados LGBTQ+ em sua página no Instagram [7] para conscientizar a comunidade e perfis de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais, queer e de outras diversas identidades  dentro das forças armadas. Estas são as histórias de duas pessoas que aparecem naquela página.

De modelo de vivo para desenho até agente de ligação

Illia [8] Leontiev, 24 anos, serve nas forças de defesa territorial de Kyiv. Ele queria se alistar no exército mesmo antes da guerra. Em 24 de fevereiro, Leontiev planejava trabalhar como modelo de desenho vivo em uma universidade até que o som das sirenes o acordou às 4 da manhã.

“Eu não podia acreditar que isso estava realmente acontecendo”, disse. A primeira reação que ele teve foi entrar em contato com sua família e verificar se estavam bem. “Então, preparei as malas e comecei a pensar no que fazer a seguir”, lembrou.

Leontiev acabou trabalhando como agente de ligação nas forças de defesa territoriais. Sua missão é consertar redes, configurar antenas e programar walkie-talkies.

“As forças de defesa territoriais são bem diferentes do exército e do que eu esperava. Pensei que teria muito treinamento físico e uma dieta equilibrada, mas não é assim. Foi muito assustador quando houve um bombardeio e um míssil caiu a 150 metros de distância”, disse Leontiev.

Antes da guerra, Leontiev frequentava uma boate da rua Kyrylivska, em Kyiv. O clube era conhecido por ser muito simpatizante com a comunidade LGBTQ+ e foi alvo de ataques de organizações de extrema-direita, que muitas vezes eram violentos e agressivos.

Por não gostar de confrontos, Leontiev tem escolhido cuidadosamente os assuntos e os colegas com quem conversa.

“Eu nunca enfrentei qualquer agressão: nem na defesa territorial, nem no dia a dia. Mas sei que algumas pessoas na defesa territorial não são simpatizantes da LGBTQ+”, disse ele.

Apesar de algumas experiências negativas enfrentadas por sua comunidade, Leontiev acredita que a Ucrânia está se tornando mais tolerante e há menos discriminação.

“É importante reconhecer que os representantes LGBTQ+ também estão participando da guerra”, ele afirma. “Defendemos nosso país exatamente da mesma forma que os outros.  Muita gente tem me apoiado, principalmente depois que eu me assumi. Então, as forças armadas LGBTQ+ tem um papel muito importante.”

Vice-chefe da unidade médica: “Só começei a me aceitar completamente depois de algum tempo”

Ivan [9] Gonzyk, 26, diz que está na hora de os ucranianos darem um passo decisivo para aceitar a comunidade LGBTQ+.

“Estamos prestes a sermos aceitos na União Europeia. Não estamos na Rússia. Aqui na Ucrânia, não somos um país homofóbico”, disse Gonzyk.”Todos se unem neste momento difícil: independentemente de serem queer ou heterossexuais. Eles se voluntariam juntos, eles se juntam às forças armadas da Ucrânia. Isso deve nos unir e acabar com todo o mal-entendido.”

Foi assim que ele acabou trabalhando como médico militar na Zona de Operação Antiterrorista – zona ATO – a área onde o governo ucraniano realizou uma operação militar contra militantes liderados pela Rússia – em Bakhmut, na região de Donetsk.

Gonzyk se juntou à  força de defesa territorial.”Minha responsabilidade é direcionar soldados para o hospital, ensinar medicina tática, fornecer medicamentos aos soldados e coordenar o trabalho de outros médicos militares”, disse ele.

No entanto, Gonzyk não revelou sua orientação sexual imediatamente. “Eu não mencionei isso”, disse ele.”Só comecei a me aceitar completamente um pouco mais tarde. Quando essa aceitação total aconteceu, entendi o que era confortável para mim e como me apresentar à sociedade. Minha vida neste mundo se tornou muito melhor”.

Casais do mesmo sexo enfrentam muitas dificuldades legais na Ucrânia. Eles são impedidos de se casar, ter e adotar filhos, compartilhar bens, acessar consultas médicas, participar de processos fúnebres, e não podem ser nomeados no testamento de seu parceiro.

Neste sentido, a vida na comunidade LGBTQ+ não é melhor na Rússia. Existe uma lei de “propaganda gay” em vigor no país destinada a proteger as crianças de informações que defendem a negação dos valores familiares tradicionais” — efetivamente negando-lhes o direito à informação sobre gênero ou diversidade sexual — e as pessoas LGBTQ+ na Chechênia estão sendo assediadas e mortas. Gonzyk afirma que não sente pena dos russos.

“Depois do que fizeram com a nossa terra e mesmo depois de verem um representante LGBTQ+ em seu exército, não tenho compaixão por eles, mesmo em relação às suas leis anti-LGBTQ+”, ele declarou.

“Eles escolheram o seu governo e continuam dançando conforme a música deles. Nosso papel principal é tirar esse lixo do território ucraniano e impedi-los de criar suas leis em nossa terra. Quando estiverem em suas próprias terras, poderão fazer o que quiserem”, acrescentou Gonzyk.

A comunidade LGBTQ+ ainda é marginalizada na sociedade ucraniana

Embora a diversidade sexual na Ucrânia não seja proibida (é legal [10] desde a independência em 1991), há muito tempo a comunidade LGBTQ+  enfrenta estigma e marginalização. Só no último mês, os ucranianos testemunharam discursos de ódio contra a comunidade LGBTQ+ de, pelo menos, duas figuras públicas.

No início deste mês, Irina Fedishin, cantora ucraniana e membro do júri da Eurovision, disse [11] que havia muitos membros da comunidade LGBTQ+ entre os participantes do festival, por isso foi difícil para ela assistir ao show, e chamou os representantes LGBTQ+ de “pecadores”.

O outro caso ocorreu anteriormente com o prefeito da cidade ucraniana Ivano-Frankivsk.  Ao discursar na Marcha pela Vida e Valores Familiares no início de maio, Ruslan Martsinkiv disse [12] que “um homem homossexual não pode ser patriota, apenas um cristão pode ser patriota”. As falas dessas duas figuras foram criticadas publicamente.

Zi Fáamelu, uma musicista trans que foi forçada a se mudar da Ucrânia para a Alemanha, fez uma declaração no Instagram: “embora minha história seja conhecida em todo o mundo, da Itália ao Japão, da Turquia ao Brasil, não quero ser lembrada como vítima de um crime de ódio. Eu sou Zi Fáamelu, um ser humano, uma filha, uma artista, e estou pronta para o próximo capítulo da minha jornada. Eu escolho a alegria”, ela declarou [13] no Instagram.