A fracassada integração regional da Cúpula das Américas

Ilustração por Connectas

Este artigo foi originalmente publicado por Carlos Gutiérrez no veículo de mídia latino-americano Connectas. Uma versão editada é republicada na Global Voices sob uma parceria de conteúdo.

Esse é um “momento crucial em nosso hemisfério, um momento onde estamos enfrentando vários desafios ao sistema democrático” na América Latina. Com essa frase, durante uma entrevista para o canal de notícias NTN24, em 2 de maio, o secretário adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental dos Estados Unidos, Brian A. Nichols, provocou uma forte reação nos líderes do continente. Ele se referiu ao fato de países como Cuba, Nicarágua e “o regime Maduro” não respeitarem “a estrutura democrática das Américas”, razão pela qual não seriam convidados para a Cúpula das Américas (de 6 a 10 de junho), em Los Angeles, na Califórnia.

A Cúpula das Américas, iniciada em 1994, são reuniões entre chefes de Estado e de Governo do hemisfério ocidental para discutir preocupações, valores e políticas em comum, é organizada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). O país anfitrião (neste caso, os Estados Unidos) distribui os convites.

O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador (“AMLO”), foi o primeiro a reagir, afirmando que não participaria da Cúpula: “Se há países excluídos, se nem todos são convidados, o México será representado, porém, eu não irei”. Ao ser questionado se a declaração era um protesto, o presidente afirmou categoricamente que o motivo era “porque eu não quero que a mesma política continue na América. Na verdade, eu quero garantir independência, soberania e demonstrar fraternidade universal. Não somos a favor de confrontos”.

 

Daquele momento em diante, a preparação para a Cúpula, que neste ano tem o slogan “Construindo um futuro sustentável, resiliente e equitativo”, tornou-se uma dor de cabeça para o governo norte-americano. Rapidamente, líderes de outras nações também expressaram a intenção de não comparecer se Cuba, Venezuela e Nicarágua não fossem convidados. Foi o caso dos presidentes da Argentina, Alberto Fernández; da Bolívia, Luis Arce; de Honduras, Xiomara Castro; da Guatemala, Alejandro Giammattei e do Brasil, Jair Bolsonaro.

Essa situação, praticamente uma cisma nas relações entre a América Latina e os Estados Unidos, trouxe à tona o próprio motivo da existência da Cúpula, que tem dentre seus princípios a busca pela integração continental.

O presidente cubano Migual Díaz-Canel Bermúdez tuitou:

Sabemos que o governo dos Estados Unidos projetou, desde o início, uma Cúpula das Américas que não seria inclusiva.

Era sua intenção excluir vários países, dentre eles #Cuba, apesar do forte apelo regional para o fim dessas exclusões. (1/4)

Para alguns especialistas, a Cúpula das Américas reflete a falta de integração dos países do continente e a crise democrática que afeta diversos deles. Também põe em evidência a predominância dos Estados Unidos na região. Por exemplo, Anatoly Kurmanaev e Jack Nicas apontam, em um artigo para o jornal The New York Times, que a reunião deveria “destacar a visão da administração de Joe Biden” mas, na realidade, “poderia mostrar a diminuição da influência dos Estados Unidos para conseguir o avanço de seus objetivos na região”.

Para Andrea Sanfeliz, diretora de desenvolvimento institucional do Instituto Mexicano para Competitividade (IMCO), a atual administração estadunidense é “uma liderança enfraquecida, aflita e com pouco direcionamento”. Ela diz que, na verdade, poderíamos estar vendo “a preocupação dos Estados Unidos com o crescimento do populismo na América Latina”.

Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, frequentemente citado como um populista, tuitou:

Quem exclui, destrói.

Ao excluir países irmãos como Cuba, Venezuela e Nicarágua da Cúpula das Américas, os Estados Unidos destroem os alicerces da solidariedade, da cooperação e do respeito pela soberania que fundamentam a Carta da Organização dos Estados Americanos. Os Estados Unidos dividem os países latino-americanos.

Nos últimos anos, regimes autoritários começaram a ressurgir na Venezuela e Nicarágua, apesar de Cuba já possuir um governo com essas características, aponta Mario Torrico, pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO-Mexico), no livro “Giro a la derecha. Un nuevo ciclo político en América Latina” (“Uma virada à direita. Um novo ciclo político na América Latina”, em tradução livre). Entretanto, ele acrescenta, em países como Honduras e Bolívia “a democracia se deteriorou” e “os líderes com discurso abertamente anti-democrático emergiram com sucesso”. Mais especificamente, ele se refere a Jair Bolsonaro, do Brasil, e a Nayib Bukele, de El Salvador. Xavier Rodríguez-Franco, cientista político venezuelano e latino-americanista radicado nos Estados Unidos, concorda que, sob o prisma político, a região está enfrentando uma “lamentável regressão democrática em vários de nossos países”.

Mario descreve em seu livro que a “ameaça autoritária” na América Latina”surge em um período em que ocorre a falta de confiança da população não apenas nos políticos e nos partidos, mas também na diminuição do apoio à democracia diante de problemas recorrentes que não são solucionados, como a insegurança, a precária situação econômica das famílias e a corrupção”.

Estamos vivendo o momento de maior desunião na América Latina em décadas, diz Rodriguez-Franco. Segundo sua análise, “a força integracionista dos primeiros 15 anos do século 21 está em seu período mais fatídico e amargo”. Os acordos de integração regionais e sub-regionais da América Central, do Caribe e da América do Sul, como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), a Comunidade Andina ou a Comunidade do Caribe, são essencialmente estruturas vazias, sem conteúdo político, vazias em termos regulatórios e com pouquíssima capacidade de interferência na estrutura regulatória comercial interamericana.

Para o jornalista Francesco Manetto, do jornal espanhol El País, a desordem que ocorre no continente não é algo novo. No entanto, ele considera que as declarações do presidente mexicano López Obrador despertaram uma reação em diversos países além de Cuba, Nicarágua e Venezuela. Do ponto de vista simbólico, ele explica, “os Estados Unidos ainda carregam o peso de um passado onde intervinham diretamente”. Portanto, “talvez estejamos nos deparando com uma nova política internacional estadunidense com o resto da região”.

O episódio de negar o convite a Cuba, Venezuela e Nicarágua aponta para um futuro com risco de polarização no continente.

As nações que formam a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA-TCP) – que inclui Venezuela, Nicarágua, Bolívia e alguns países caribenhos – deixaram isso claro em sua própria conferência, em Havana, no dia 27 de maio. A secretária executiva da ALBA-TCP, Sacha Llorenti, afirmou que, no evento, os líderes repudiaram “o tratamento discriminatório e de exclusão” da potência do hemisfério norte e ratificaram o “seu comprometimento para reforçar a ALBA-TCP como um instrumento de união dos nossos povos, baseado nos princípios de solidariedade, justiça social, cooperação e complementariedade econômica”. Eles também se pronunciaram a favor de uma “integração regional genuína, liderada pela Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e com os postulados da Proclamação da América Latina e Caribe como uma zona de paz”.

Com seu posicionamento excludente, Washington parece se esquecer de que, no passado, não apenas coexistia com as piores ditaduras latino-americanas, mas também as promovia, o que contribuiu para o aparecimento de fortes correntes antiamericanas no continente.

O México tem o papel mais complexo dentro deste cenário. Não é simples, por ser uma nação “articuladora”, ou “amortecedora”, como definiu Andrea Sanfeliz. Por um lado, faz fronteira com os Estados Unidos e, por outro, é uma das nações mais importantes da América Latina.

Ainda assim, com a crise na Cúpula das Américas, López Obrador mostrou ter uma grande influência na região. “Não sei o quanto desse ato de rebelião, entre aspas, contra os Estados Unidos, será favorável ao México, nem quais serão as consequências diretas de sua participação na conferência”, disse Andrea. O presidente aguardou até o último minuto antes de tornar pública a sua decisão de não comparecer à Cúpula.

Um ponto ficou claro: a integração pan-americana está em ruínas, bem como as possibilidades de uma discussão profunda sobre os problemas da região para chegar a acordos que beneficiem todas as nações das Américas. Por todos esses motivos, no fim das contas são os cidadãos do continente que acabam perdendo.

Toda semana, a plataforma de jornalismo latino-americano CONNECTAS publica análises dos acontecimentos atuais nas Américas. Caso tenha interesse em ler mais informações assim, clique neste link.

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