Cresce sentimento antimuçulmano em toda a Índia, instigado por grupos hindus de ultradireita

Manifestação durante o Rama Navami em Howrah, Bengala Ocidental, Índia. Imagem da Wikipedia de Biswarup Ganguly.

Manifestação durante o Rama Navami em Howrah, Bengala Ocidental, Índia. Imagem da Wikimedia Commons por Biswarup Ganguly. (CC BY-SA 4.0)

Houve relatos de confrontos públicos entre grupos supremacistas hindus de direita e a comunidade muçulmana minoritária em dois festivais hindus recentes em toda a Índia, no intervalo de uma semana.

Os primeiros confrontos ocorreram no festival Rama Navami em 10 de abril, nos estados de Bengala, Jarcanda, Gujarate, Madhya Pradesh, Karnataka e Bihar. Embates adicionais ocorreram no sábado, 16 de abril, no festival Hanuman Jayanti de Kurnool, em Haridwar e na região de Jahangirpuri, em Nova Delhi, capital da Índia.

O Rama Navami é um festival hindu importante, tradicionalmente seguido com jejum, que culmina no nono dia, e representa o nascimento do Senhor Rama, uma das divindades hindus mais relevantes. Os devotos oferecem orações e rituais nos templos, cantam canções devocionais e conduzem rituais e procissões em carruagens nas casas e na comunidade. Porém, há um histórico centenário de procissões violentas e o uso dessas comemorações hindus como oportunidades para inflamar os hindus, instigar o ódio e afirmar a supremacia hindu.

Os relatos sugerem que nos confrontos mais recentes, procissões barulhentas do Rama Navami foram conduzidas até os bairros muçulmanos por um grupo de homens hindus vestindo mantos cor de açafrão, carregando pedaços de pau e espadas, e tocando canções antimuçulmanas provocativas do lado de fora das casas e mesquitas muçulmanas. Vídeos que viralizaram nas redes sociais confirmaram tais relatos.

É importante observar que certos bairros na Índia são identificados como “áreas muçulmanas” porque os muçulmanos são forçados a viver em guetos, pois os proprietários e corretores de imóveis evitam alugar ou vender casas para muçulmanos. Durante décadas a segregação foi praticada de forma secreta, mas, após a chegada ao poder do Partido do Povo Indiano (BJP), de Narendra Modi, líderes do BJP fizeram apelos explícitos para boicotar os muçulmanos, alegando que estavam realizando uma “jihad por propriedades” (supostamente forçando as pessoas a venderem as propriedades). Por outro lado, surgiram vários relatos nos estados de Gujarate e Uttar Pradesh sobre muçulmanos sendo forçados a vender suas casas e se mudarem, e sobre uma política de não alugar e não vender sendo praticada em Mumbai e outras cidades.

O BJP, partido nacionalista hindu de direita, governa o poder federal da Índia desde 2014 com uma esmagadora maioria.

Em muitas ocasiões, os líderes e legisladores do BJP foram vistos fazendo discursos ou cantando canções antimuçulmanas incendiárias. Em Hyderabad, T Raja Singh, membro do partido BJP, da assembleia legislativa, cantou uma música e gritou slogans promovendo a supremacia hindu. O discurso de ódio antimuçulmano que Kapil Mishra, líder do BJP, fez em 10 de abril, tornou-se um vídeo viral, na mesma época das violências que ocorreram em Khargone, no estado de Madhya Pradesh, em que pelo menos uma pessoa morreu.

O Hanuman Jayanti celebra o nascimento da divindade hindu, o Senhor Hanuman. Assim como o Rama Navami, é tradicionalmente comemorado visitando templos para fazer oferendas e orações, com banquetes comunitários e recitação de orações e hinos em casa ou na comunidade. No entanto, o “Hanuman Jayanti Shobha Yatra”, que ocorreu em certas regiões este ano, é um evento aparentemente novo, com poucos registros históricos no domínio público sobre suas origens.

Houve relatos de pedradas nas yatras (peregrinações), supostamente pela comunidade muçulmana, nos três locais depois que grupos extremistas hindus levaram a yatra para perto das mesquitas durante o Azan, o chamado muçulmano à oração. Na área de Jahangirpuri, em Delhi, ocorreram três yatras ao longo do dia e a violência explodiu na terceira. Segundo a polícia, a terceira yatra ocorreu sem permissão.

Grupos hindus e muçulmanos culparam uns aos outros por provocar a violência na região de Jahangirpuri. Até o momento, a polícia de Delhi fez 23 prisões, tanto da comunidades hindu quanto da muçulmana, e também registrou casos contra os grupos extremistas hindus Vishwa Hindu Parishad (VHP) e Bajrang Dal. Ambos são conhecidos por seus antecedentes criminais e foram chamados de “organizações militantes religiosas” pela CIA.

A onda de violência no Rama Navami e no Hanuman Jayanti foi precedida por uma série de ações, por atores estatais e não estatais, que visaram aprofundar a divisão religiosa na Índia e relegar os muçulmanos ao status de cidadãos de segunda classe, uma visão criada por MS Golwalkar, que idealizou e fundou o Rashtriya Swayam Sevak (RSS), pai da ideologia do partido BJP que está no poder.

Cerca de 14% da população da Índia é muçulmana, tornando-a a terceira maior população muçulmana do mundo. Os hindus são a maioria, compreendendo cerca de 80% da população. As duas comunidades convivem em harmonia há cerca de 1.000 anos, embora com confrontos esporádicos. A Índia muitas vezes se orgulha de sua rica cultura eclética e única em diversidade no cenário mundial, aspectos que estão ameaçados por causa do crescente nacionalismo hindu de direita do partido no poder, o RSS e milhares de grupos supremacistas hindus vinculados.

No início deste mês, em Meerut, Uttar Pradesh, um carrinho de comida de um muçulmano foi vandalizado por um grupo chamado “Sangeet Som Sena” (o exército de Sangeet Som, líder do BJP), alegando que o homem estava vendendo carne durante o período de jejum do Rama Navami. A vítima, no entanto, disse que estava vendendo biryani vegetariano. Em outubro de 2021, açougues foram fechados à força por uma organização chamada “Hindu Sena” (exército de hindus), uma das organizações hindus de direita, na área de Najafgarh, em Delhi.

Este mês, um prefeito de Delhi passou uma ordem verbal para fechar os açougues durante os nove dias do Rama Navami para atender aos “sentimentos hindus”, embora não haja uma lei no país que permita isso, e plataformas on-line de entrega de comida, restaurantes e todos os bares foram autorizados a vender carne, o que fizeram. A referida proibição não foi passada por escrito e ninguém viu a comunicação oficial, mas os açougues no sul de Delhi permaneceram fechados por medo e pela dúvida.

Em um autodenominado “Dharam Sansad” (parlamento religioso) realizado em dezembro de 2021 em Haridwar, Uttarakhand, o líder religioso hindu Yati Narsinghanand fez chamadas explícitas ao genocídio muçulmano. Quatro outros líderes religiosos hindus foram citados no relatório First Information Report (FIR) relacionado ao caso, que ficou conhecido como Haridwar Hate Speech. O apelo descarado à violência abalou a nação, levando à prisão de Narsinghanand. No entanto, antes de um mês ele saiu sob fiança, perto das eleições para a assembleia de Uttar Pradesh, e repetiu o discurso de ódio em Una, Himachal Pradesh, outro estado que terá eleições em novembro deste ano, violando as condições da fiança. O discurso de ódio antimuçulmano tende a ajudar nos panfletos do nacionalismo hindu de extrema direita do BJP durante as campanhas eleitorais.

Bajrang Muni, outro líder religioso hindu, foi preso em 2 abril após fazer ameaças de estupro a mulheres muçulmanas.

Durante meses, também houve campanhas antimuçulmanas visando quase todos os aspectos de suas vidas, como o comércio e negócios tradicionais, direito de se sustentar, estilo alimentar, oportunidades de emprego, trajes religiosos usados pelas muçulmanas, direito à oração ou à escolha de um parceiro romântico. Até mesmo o idioma urdu foi atacado porque acredita-se que sua origem esteja no povo muçulmano. A maior parte dessa propaganda antimuçulmana foi executada por nacionalistas hindus de direita nos principais canais de TV da mídia, redes sociais e nas ruas com apoio tácito ou explícito de funcionários do governo, incluindo o judiciário.

O ódio antimuçulmano as imposições forçadas de símbolos religiosos hindus, práticas e restrições alimentares ao restante da Índia, ao mesmo tempo que se opõem a práticas e símbolos muçulmanos e ataques violentos como o linchamento de muçulmanos pela multidão, tornaram-se rotina na Índia desde que o governo Modi chegou ao poder.

Esses sentimentos antimuçulmanos são modelados pelo projeto de nacionalismo hindu do RSS, que vê a Índia como uma nação para os hindus e, outras comunidades, principalmente muçulmanas e cristãs, têm direitos secundários. O RSS não aceitava o secularismo adotado pelos líderes do Congresso Nacional Indiano como Jawaharlal Nehru e Mahatma Gandhi na época da recém-conquistada independência da Índia do império britânico.

Depois que o governo Modi chegou ao poder, vários projetos estimados pelo RSS para a construção de uma “nação hindu” se concretizaram, como a revogação do Artigo 370, um estatuto especial para áreas dominadas por muçulmanos da Caxemira para proteção demográfica e cultural, e uma proibição nacional à carne bovina. Há também a Lei de Emenda à Cidadania (CAA) que, pela primeira vez, adiciona fatores religiosos à cidadania indiana e proíbe especificamente os muçulmanos dos países vizinhos Paquistão, Bangladesh e Afeganistão que entraram na Índia antes de 31 de dezembro de 2014, de obter a cidadania indiana pela via rápida, embora os hindus (e também os sikhs, jainistas, budistas e cristãos) desses países recebam instantaneamente a cidadania.

Além disso, em uma tentativa de destruir completamente a cultura indiana eclética, até mesmo a representação do inofensivo amor entre hindus e muçulmanos em anúncios de TV e cinema foi atacada. Um dos canais de notícias de TV mais populares da Índia, o Zee News, vendia uma “tabela de jihad” rotulando cada atividade de um muçulmano como alguma forma de jihad (guerra santa), propaganda que se espalha para milhões através das redes sociais.

A Índia parece estar em um estado contínuo de conflito armado entre o grupo dominante e as minorias religiosas auxiliadas e instigadas pela organização supremacista hindu RSS, fundada na década de 1930 e diretamente inspirada no partido nazista, e pelo seu braço político, o BJP, que está atualmente governando a Índia pelo oitavo ano consecutivo.

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