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Guerra, palavras e preocupações na Ásia Central

Categorias: Ásia Central e Cáucaso, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Ucrânia, Uzbequistão, Etnia e Raça, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Relações Internacionais, Russia invades Ukraine

Coletiva de imprensa com o Ministro das Relações Exteriores do Quirguistão, Kyrgyz  Ruslan Kazakbayev (à esquerda) e o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov (à direita). Moscou, 5 de março de 2022. Captura de tela do canal do Ministério das Relações Exteriores da Rússia no YouTube [1].

A invasão da Ucrânia pela Rússia, [2] assim como a forma como ela se transformou em uma guerra, desvendou as bases da arquitetura econômica, política e estratégica da Ásia Central, forçando os governos e cidadãos a tomar uma posição e escolher lados desta nova “situação de perda-perda”. Junto com as interações econômicas, sociais e políticas de longa duração entre a Rússia e os estados pós-soviéticos da Ásia Central, três (Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão) são membros da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) [3], a aliança militar liderada pela Rússia, enquanto dois (Cazaquistão, Quirguistão) são membros de pleno direito da União Econômica Eurasiática (EAEU) [4]. Além disso, as remessas, predominantemente da Rússia, constituem quase um terço do PIB do Quirguistão [5], enquanto o Cazaquistão é o único Estado da Ásia Central a compartilhar fronteiras terrestres com a Rússia, sendo também o lar de mais de 18% da população de etnia russa [6].

Nestas circunstâncias, cada Estado respondeu de maneira diferente à guerra, ignorando-a completamente, incorporando seus interesses nacionais ou adaptando-se ao curso variável do confronto, ao mesmo tempo em que tenta resistir à pressão russa.

Como resumiu de forma inquietante o presidente do Gabinete de ministros do Quirguistão, Akylbek Japarov:

«Буду откровенен, от нас со всех сторон требуют какого-то определения, требуют озвучить поддержку какой-то стороне конфликта».

Eu serei honesto, todos os lados exigem alguma determinação. Exige a escolha de um dos lados deste conflito.

Respostas governamentais

Em 22 de fevereiro de 2022, após o reconhecimento russo das entidades separatistas [7] na Ucrânia oriental, o presidente do Quirguistão, Sadyr Japarov, comentou [8] que a Rússia talvez tenha sido obrigada a reconhecer a independência das duas regiões separatistas para proteger a população civil da região de Donbas, onde residem muitos cidadãos russos. Ele aprovou que o reconhecimento de qualquer Estado é um direito soberano de qualquer país.

Uma apologia semelhante foi feita por Mukhtar Tleuberdi, o ministro das Relações Exteriores do Cazaquistão, pois ele não só mencionou [9] o fracasso do Ocidente em responder devidamente às propostas de acordo russas aos EUA e à OTAN, como também inseriu “a crise humanitária nas repúblicas de Donetsk e Luhansk”. Ele, contudo, assegurou que “a questão do reconhecimento do Cazaquistão da República Popular de Donetsk e da República Popular de Luhansk estava fora de questão”.

Em 24 de fevereiro, dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, foi realizada a reunião do Conselho Intergovernamental Eurasiano (EIC) representando os chefes de governo da EAEU na capital cazaque, Nur-Sultan. A ampla cobertura [10] desse evento incluiu uma retórica padrão de integração e estatísticas econômicas, ignorando totalmente o “elefante na sala”.

Como era de se esperar, em meio ao bombardeio maciço das cidades ucranianas, todos os olhares estavam voltados para o primeiro-ministro russo Mikhail Mishustin que, juntamente com a reunião do EIC, teve reuniões individuais com o presidente Tokayev, cujo site oficial mencionou [11] medidas conjuntas para evitar a redução do volume de comércio em meio à escalada do conflito na Ucrânia e o lançamento de sanções antirrussas. Ele também se reuniu com Alikhan Smailov, o recém-nomeado primeiro-ministro cazaque. Entretanto, ao contrário do relatório oficial do Cazaquistão [12], que preferiu ignorar completamente o conflito e se concentrar em assuntos econômicos, as agências de notícias russas repetidas vezes transmitem a declaração ambígua de Mishustin [13]:

Страны Запада пытаются иногда и разобщить нас, и здесь своим присутствием в это сложное время мы говорим всем, что мы вместе.

Os países ocidentais tentam nos desunir de tempos em tempos e, estando aqui neste momento difícil, dizemos a todos que estamos juntos.

Primeiro-ministro russo Mikhail Mishustin visita igreja ortodoxa russa em Nur-Sultan, 25 de fevereiro de 2022. Captura de tela do canal do Semirechie no YouTube [14].

A tão esperada “união” e solidariedade com a Rússia que Mishustin tentou desesperadamente evocar em seu homólogo cazaque, foram logo sentidos em seu encontro com Akylbek Japarov, que lembrou uma citação épica do presidente do quirguizistanês [15]:

Мы были 200 лет с Россией и готовы еще 300 лет быть вместе с ней.

Estivemos juntos com a Rússia durante 200 anos e estamos prontos para estar com ela por mais 300 anos.

Compreensivelmente, o Gabinete do Quirguistão [16] optou por omitir esta citação em seu relatório. Curiosamente, o presidente do Quirguistão ficou conhecido por referências históricas à Rússia, já que também escreveu um artigo [17] sobre as relações quirguizes-russas com um título imponente “laços aliados” (Союзнические узы) em fevereiro de 2021, na véspera de sua primeira viagem internacional como presidente [18], passando, antes disso, por uma significativa quarentena [19] para se encontrar pessoalmente com o presidente russo Vladimir Putin. De forma enaltecida, mas não tão profética, o artigo elogiou a Rússia por “proporcionar a paz ao longo de suas fronteiras estatais”, e afirmou ambiguamente que a anexação russa dos quirguizes no século 19 facilitou o surgimento deste último como uma nação unificada.

O presidente do Quirguistão também teve uma conversa telefônica com Putin [20] em 26 de fevereiro, apenas dois dias após o início da guerra, na qual o gabinete do presidente apresentou como a “situação na Ucrânia”. Entretanto, o conteúdo de sua conversa foi “revelado” por inúmeros veículos de notícias russos, incluindo o site oficial do presidente russo [21] e a agência de notícias estatal RIA [22]. Segundo eles, ao reconhecer a responsabilidade de Kiev na destruição dos acordos de Minsk, o presidente do Quirguistão endossou “ações decisivas do lado russo na proteção da população civil de Donbass”. Este “endosso” à agressão militar russa na Ucrânia desencadeou uma resposta imediata, pois o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky relembrou ao seu embaixador no Quirguistão [23] que justificasse às autoridades quirguizes sobre a agressão da Rússia contra a Ucrânia.

Em 9 de março, no entanto, enquanto se dirigia ao Jogorku Kenesh [24], no Parlamento do Quirguistão, o presidente Japarov destacou sua posição sobre a guerra russo-ucraniana:

Албетте биз кичинекей эле өлкөбүз. Биздин согушту токтотуп коюуга таасирибиз деле жетпейт. Ошондуктан биз калыс өлкө болушубуз керек.

Naturalmente, somos um país pequeno. Nossa influência não seria suficiente para parar a guerra. Portanto, devemos continuar sendo um país neutro.

Estranhamente, a tradução russa de seu discurso [25] no site oficial substituiu a palavra quirguize para “guerra” (согуш) por “conflito”, tornando-a mais atraente para a Rússia, que notoriamente tornou ilegal chamar a guerra de “guerra” [26]. No entanto, talvez tenha sido o ministro das Relações Exteriores do Quirguistão, Ruslan Kazakbayev, quem foi ainda mais longe em apaziguar os sentimentos russos, pois na coletiva de imprensa em Moscou [27] com seu homólogo russo, Sergey Lavrov, em 5 de março de 2022, declarou insensivelmente que “tanto a Ucrânia quanto a Rússia são vítimas deste conflito”.

Entre todos os líderes da Ásia Central, o presidente cazaque Tokayev foi o único que teve uma conversa telefônica com o presidente ucraniano [28], juntamente com chamadas recorrentes com Putin [29]. Ao fazê-lo, enquanto falava em russo, ele escolheu um léxico extremamente neutro, evitando referências à guerra, como ele fez no congresso do partido governista Nur Otan [30] (mais tarde renomeado Amanat) em 1º de março de 2022, citando a versão russa de “Uma paz ruim é melhor que uma boa guerra” (худой мир лучше доброй ссоры) com “briga” (ссора) em vez de “guerra” (война), embora não tenha hesitado em mencionar a guerra em seus tuítes em inglês.

“Uma paz ruim é melhor que uma boa guerra”. Sem paz, não haverá desenvolvimento. O Cazaquistão está pronto para fornecer sua participação, se necessário.

No entanto, no dia 4 de abril, assim que as evidências das horríveis atrocidades russas em Bucha [32] estavam sendo reveladas, ele publicou um artigo em inglês [33] no The National Interest, onde assegura seu respeito pela integridade territorial da Ucrânia, referindo-se até mesmo à agressão russa na Ucrânia como “guerra”. É preciso lembrar que em sua entrevista de 2019 ao Deutsche Welle [34], ele hesitou em chamar a anexação da Crimeia de anexação, proferindo banalmente “o que quer que tenha acontecido, aconteceu”.

Diante disso, ao comentar a declaração de Timur Suleimenov, o primeiro chefe de gabinete adjunto do presidente do Cazaquistão, o ministro das Relações Exteriores Tileuberdi confirmou que o Cazaquistão não reconheceria as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk [35]. Em 29 de março de 2022, Suleimenov havia declarado que o Cazaquistão não reconhecia e não reconheceria a Crimeia ou Donbass [36].

Mesmo com uma postura menos enfática nos debates políticos globais, foi o Uzbequistão que primeiro expressou sua garantia da integridade territorial da Ucrânia e sua relutância em reconhecer entidades separatistas naquele país, como foi declarado em 17 de março pelo ministro das Relações Exteriores do Uzbequistão, Abdulaziz Kamilov [37], na sessão da Câmara Alta do Oliy Majlis, o parlamento do Uzbequistão. Curiosamente, porém, logo foi alegado que ele poderia não retomar suas funções [38] por motivos de saúde após licença médica, embora suas declarações sobre a Ucrânia tenham sido declaradamente endossadas pelo gabinete do presidente.



Para mais informações sobre este tópico, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [2].