Mantendo notícias falsas sob controle: como a legislação sobre desinformação se transforma em um instrumento de censura

Imagem: cortesia de Ameya Nagarajan

Uma semana após a invasão russa na Ucrânia, que começou em 24 de fevereiro de 2022, a Duma Federal (Parlamento russo) aprovou uma lei punindo em até 15 anos de prisão a divulgação de “notícias falsas” sobre operações militares, declarações que desacreditam as forças armadas russas e pedidos de sanções à Rússia. Neste caso, o termo “notícias falsas” pode se referir a qualquer opinião sobre as ações do Estado que contradiga a posição oficial. Esta lei se estende a organizações, jornalistas profissionais e civis que publicam qualquer tipo de coisa: desde artigos até postagens nas redes sociais ou até mesmo os likes dessas postagens. A Duma levou apenas um dia para analisar a lei, e no dia seguinte ela foi assinada pelo presidente Vladimir Putin.

Tal ato de censura sem precedentes foi justificado como regulação da desinformação, o debate que continua sendo o sinal característico da era da informação. Há tanto defensores quanto opositores das regulamentações relativas à desinformação. Ambos os lados têm um conjunto de argumentos: os alarmistas defendem a responsabilidade como única ferramenta para impedir a disseminação da desinformação, e seus oponentes afirmam que a lei infringirá a liberdade de expressão.

Em 2017, a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e “Notícias Falsas” e Desinformação e Propaganda, produzida pela ONU e organizações regionais, sugeriu a abolição de proibições gerais e a criminalização da disseminação de informações com base em “ideias vagas e ambíguas, incluindo notícias falsas”. De acordo com a declaração, tais leis seriam incompatíveis com os padrões internacionais de liberdade de expressão. Ainda assim, o problema da informação desordenada é frequentemente classificado como crítico tanto para as questões de democracia quanto para a segurança do Estado. Os Estados enfrentam muitos desafios alimentados pela disseminação da desinformação. Isto inclui toda uma série de problemas, desde o combate de declarações difamatórias e discursos de ódio até a desinformação eleitoral e, mais recentemente, a divulgação de informações falsas sobre a epidemia de Covid-19.

A maioria dos países toma medidas para regulamentar contra a desinformação, apesar da advertência da ONU. Geralmente surgem como uma resposta da sociedade civil, legisladores e empresas de tecnologia. Por exemplo, a Holanda e a Nigéria responderam lançando campanhas de educação midática. Na Alemanha, os provedores de serviços on-line, como as plataformas das redes sociais, foram legalmente obrigados a combater a desinformação, removendo em até 24 horas o conteúdo prejudicial que era “obviamente ilegal”. A Assembleia Nacional francesa aprovou dois projetos de lei para limitar a desinformação eleitoral, fornecendo aos partidos e candidatos acesso a um processo legal acelerado contra informações falsas divulgadas publicamente. O governo britânico inicialmente rejeitou o termo “notícias falsas” e tomou medidas necessárias para incitar as empresas de redes sociais a se comprometerem a verificar os fatos. Entretanto, em uma tentativa de combater a disseminação da desinformação durante a pandemia da COVID-19, foi apresentado um Projeto de Lei de Segurança On-line, que impôs às plataformas da internet o “Dever de Cuidado” – a responsabilidade de remover o conteúdo on-line antes de causar danos aos usuários.

Esses casos se concentram, principalmente, na regulamentação dos procedimentos de verificação de conteúdo operacional, capacitando as instituições a tomarem medidas em casos específicos. No entanto, têm sido criticados por possivelmente permitirem a censura. Ainda não há consenso público estabelecido sobre a regulamentação da desinformação, e as definições de conteúdo nocivo ou ilegal ainda são debatidas. Além disso, em alguns países, as iniciativas legislativas que operam com os termos notícia falsa e desinformação tornam-se instrumentos de vigilância, silenciamento de vozes e  luta contra a dissidência.

Quando a legislação contém a possibilidade de processo penal, a definição clara de informações verdadeiras e falsas é importante. Este é o caso em muitos regimes políticos que conferem responsabilidade legal pela desinformação. Em Mianmar, a disseminação de “notícias falsas ou desinformação” on-line com a intenção de “difamar, dividir uma associação, alarmar o público, ou destruir a confiança pública” é punível com pena de prisão de até 3 anos. Esta lei tem como alvo jornalistas e meios de comunicação. Desde 2016, o Egito impôs restrições severas aos meios de comunicação tradicionais e redes sociais. A lei tem como alvo os meios de comunicação, as contas populares das redes sociais por “publicação de notícias falsas” e o “uso indevido das redes sociais”. Aqueles que publicam material considerado “ofensivo”, de acordo com a vaga interpretação jurídica, receberão multa significativa ou até mesmo sentença de prisão.

Na Rússia, a lei de notícias fez com que os meios de comunicação russos deixasse de publicar  reportagens sem censura e interpretações alternativas dos eventos na Ucrânia. Tornou-se um claro ato para silenciar os meios de comunicação e o público. Outras ações dos reguladores no início daquela semana incluíram ordenar a todos os meios de comunicação registrados que retirassem qualquer material onde a agressão militar na Ucrânia foi chamada de “guerra” e bloquear o acesso dos poucos meios de comunicação independentes restantes na Rússia. As consequências da rápida aprovação da legislação e das ações dos reguladores são semelhantes aos casos em que a censura de guerra foi imposta no país. Em menos de uma semana, os russos perderam o acesso legal ao jornalismo independente e o direito de discutir e interpretar os eventos publicamente.

Além disso, a Duma tem outro projeto de lei em análise que permitirá ao Ministério Público  ampliar o acesso aos dados pessoais dos russos. O departamento terá o direito de processar dados pessoais “obtidos não apenas em conexão com a supervisão do Ministério Público, mas também no exercício de outros poderes”. Em outras palavras, ampliará os fundamentos para solicitar dados pessoais, o que pode incluir as opiniões políticas dos indivíduos.

Até o final de março, a Duma ampliou a Lei de Notícias Falsas para impor responsabilidade administrativa e legal pela divulgação de informações falsas não apenas sobre as forças armadas, mas sobre todas as agências governamentais que trabalham no exterior. Isto abrange o trabalho das embaixadas, promotores, comissões de investigação e outros órgãos públicos. Embora o legislador argumente que tais medidas são necessárias para proteger a imagem pública dos “defensores do país”, tal legislação inevitavelmente aumenta a pressão da censura. Desde que a lei entrou em vigor, pelo menos sete processos criminais foram abertos com relação a notícias falsas, e diversas multas administrativas foram impostas por protestos antiguerra nas ruas e por postagens em redes sociais.

Em todos os três casos, os governos legitimam a legislação como meio de proteger seus cidadãos. Além disso, tais leis geralmente se enquadram na qualidade de legislação declarativa e trazem interpretações amplas dos termos utilizados. Como em outros países, as leis de desinformação andam de mãos dadas com as capacidades estatais de filtragem e redirecionamento rápido do tráfego on-line. No conjunto, criam um vácuo informativo para os cidadãos, dão origem ao medo e à desconfiança e têm todo o potencial para acabar com qualquer dissidência.

O caso da Rússia demonstra como um regime político pode transformar notícias falsas em armas para punir qualquer um que desafie as ações do governo. Isso demonstra, mais uma vez, a necessidade de responsabilização pela definição de limites entre informações verdadeiras e falsas.


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