Esta é a terceira de uma série de três partes de Abel Polese sobre sua fuga de Kiev para a Romênia com seus filhos, dois gatos, sua ex-esposa e o marido dela depois que a Rússia invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro. Polese é pesquisador, instrutor e promotor de desenvolvimento, e atualmente lidera vários projetos de pesquisa sobre economias paralelas na Ucrânia. Ele voou para Kiev na noite de 23 de fevereiro, mas teve que deixar a cidade na madrugada do dia seguinte.
A situação está ficando mais tensa. Você vê um número crescente de pessoas caminhando para a fronteira. Muitos são indianos. Viu vários ônibus de evacuação transportando estudantes indianos, então se pergunta por que os que estão chegando agora não foram convidados. Mas não há resposta. Muitos estudantes estrangeiros começam a chegar e vão andando até a fronteira. Famílias inteiras com bebês pequenos, malas grandes, caminham rumo ao desconhecido. Você pergunta, nervoso, a que horas os pais vêm, mas há apenas uma coisa a fazer: esperar.
Você nunca foi fã de panetone (alguns profanos o chamariam de muffin gigante), mas a moça do aeroporto o convenceu a comprar um. Depois do Natal, o preço caiu 50% e esse era um luxuoso com creme de pistache e grãos de pistache no topo. Essa iguaria viajou com você desde a Itália no mês passado e está o acompanhando fielmente em sua odisseia. Você decide que é hora de acabar com ela, encontra uma faca e convida seu vizinho búlgaro e a filha dele para uma festa do panetone. Seu filho mais novo o segue e você vai ao parquinho para cortar o bolo e beber água e Pepsi com seus novos amigos.
Os pais estão finalmente perto da fronteira, então você começa a discutir, como em um jogo de estratégia, como distribuir as pessoas em três equipes que tirarão todos do país, minimizando o risco para os gatos, as crianças, o cachorro, o dinheiro, seu avô (de 59 anos com sua certidão de invalidez esquecida em casa) que pode ser preso na fronteira e desviado diretamente para uma zona de guerra, já que todos os homens com menos de 60 anos podem ser chamados para lutar.
Está decidido. Você pega o mais novo e tenta a travessia a pé. O avô leva o mais velho e argumenta ser o único parente capaz de tirá-lo do país, na esperança de comover os agentes da fronteira e passar apesar de sua idade “jovem”. A avó vai atravessar sozinha a pé e a ex-mulher – com marido e dois gatos – virá por último de carro quando for permitido.
Vocês começam a caminhar até a fronteira e as lágrimas escorrem pelo seu rosto. Você passará de qualquer maneira, está confiante e sua situação talvez seja a mais fácil. Mas e os outros?
Vocês se separam a alguns metros dos soldados e se dirigem aos portões, mas a situação é desanimadora. O que era uma fila tornou-se um aglomerado disforme de pessoas com centenas de estudantes estrangeiros misturados com mulheres e crianças ucranianas. Com pouca esperança, você pergunta onde fica a fila para pais com filhos e lhe dizem que não, não há fila especial. Vocês têm que se acotovelar para passar.
Após alguns minutos de perguntas, você se junta a algumas mulheres ucranianas em uma negociação com algumas pessoas incomuns. Elas falam romeno e prometem atravessar mulheres (ou homens, no seu caso) com crianças pela fronteira. Não há negociação. Em 10 minutos, você carrega sua bagagem em um Audi SUV na frente da fila de espera. Pode parar de se preocupar com a travessia, mas pode começar a se preocupar com outra coisa. Você conhece a prática de transportar pessoas através de uma fronteira, mas isso geralmente é pago. Essas pessoas não querem nada de você, então você se pergunta qual é o ganho delas. Não é assim que a maioria das rotas de tráfico é organizada. A partir de uma oferta gratuita para ajudar pessoas desesperadas como você? Você envia uma foto da placa do carro para todos os seus amigos romenos e se pergunta se, afinal, fez uma escolha sábia.
Quanto mais você espera, mais você conversa com as pessoas dos carros ao seu redor. A atmosfera do trem noturno volta, ainda que um pouco mais tensa. Talvez existam anjos, afinal. Estudantes estrangeiros tentam arrombar os portões porque não estão sendo liberados, e os guardas fecham a fronteira. E se você não conseguir atravessar agora? Para onde vai? O que você vai fazer?
Você fica surpreso quando o motorista esconde sua bagagem embaixo do estepe. Outra moça com um filho de um mês está entrando no carro e você é solicitado a ir para o banco traseiro com outras bagagens. Quase não há espaço para as pernas. Agora vocês são cinco adultos e três crianças e a fronteira continua fechada.
A única coisa que você pode fazer é dormir. Estranho dizer em circunstâncias tão tensas, mas você se sente tão cansado depois de uma noite sem dormir que leva apenas um minuto a partir do momento em que fecha os olhos. Você acorda algumas vezes e, finalmente, o carro começa a se mover e seus sentimentos em relação ao motorista passam de suspeita para total admiração.
Angelica, esse é o nome dela, é uma lutadora. Ela grita em três línguas ao mesmo tempo, dirigindo-se devidamente a cada interlocutor na própria língua deles. Ela grita para os guardas de fronteira, para as pessoas astutas que tentam ultrapassar e para os que caminham: “Tenho três filhos no carro e agora é minha vez”. Pela primeira vez em três dias, você se sente abençoado e protegido. Ela entra, pega todos os passaportes, entrega aos guardas que nem pedem para você sair e deixam você passar. Você está fora.
Do lado romeno, a tensão desaparece. Ela até começa a te provocar, chama os guardas para anunciar que tem um “Italiano vero” no carro (referindo-se à música de Toto Cutugno de 1983, ainda popular em algumas partes do mundo). Todo o pessoal começa a brincar alto e você finalmente está na Romênia. É tarde da noite e tudo escuro, mas você pode ver dezenas de voluntários entregando comida e bebida para todos. Eles vão ficar esperando a noite toda só para ajudar. Você vê uma placa à sua direita “kharchuvaniya i zhitlo bezplatno” (comida e acomodação gratuitas) e seus olhos se enchem de lágrimas. Depois de dias sendo tratados como presas e depois quase como predadores, alguém finalmente cuida de você.
Você teve sorte que a mãe do seu ex-colega de apartamento mora lá, então ela te dá o apartamento vazio do irmão dela e você pode ficar por alguns dias. Ela vem visitar todos os dias, traz comida, cartões SIM para você ficar em contato com o restante da família e leva seu filho ao shopping para lhe comprar um bolo.
Onde quer que ela o leve, ela menciona que vocês são refugiados da Ucrânia. Ao ouvir isso, você pondera sobre seus próprios sentimentos. Hoje em dia, isso é a chave de tudo: você pode pular fila, não precisa de um passe para entrar em um shopping, pode pegar comida grátis em estações e pontos de supermercado. Mas você se pergunta se gosta de ser chamado assim. Ainda mais, você tenta imaginar como se sentiria se realmente não tivesse para onde ir e deixasse a maioria de suas coisas em Kiev, como muitos ao seu redor, incluindo seus filhos, deixaram.
O restante do pessoal chega, agora vocês estão todos instalados no apartamento, cinco pessoas e dois gatos assustados, e podem começar a planejar o futuro. Aonde ir, escola para crianças e outros arranjos logísticos. Você também pode se concentrar em seus filhos. Como eles estão vivendo tudo isso? O mais velho está em silêncio, como sempre. O mais novo é tão brincalhão, como sempre quando vocês viajam juntos, mais tarde ele lhe dirá que o período que passou na Romênia parece uma viagem normal com o pai, em vez de uma fuga – um outro lado positivo de tê-los levado com você pela Ásia, África e Europa todos esses anos.
Então você abre a mala dele para fazer um inventário do que tem e encontra suas meias elásticas de trampolim. Ele teve a aula na quinta-feira passada e você deveria ir com ele, ele gostou muito. Você não consegue parar de se perguntar quando (e onde) será a próxima aula.
Para mais informações sobre este tópico, consulte nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia.