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A batalha de identidades: porque o Kremlin alega falar pelos russófonos na Ucrânia

Categorias: Europa Oriental e Central, Belarus, Rússia, Ucrânia, Educação, Etnia e Raça, Guerra & Conflito, História, Língua, Mídia Cidadã, Relações Internacionais, Russia invades Ukraine

Captura de tela do canal do humorista Sergey Larin no YouTube que diz “великий и могучий русский язык” – ou o “grande e poderoso idioma russo”.

Um conceito-chave na narrativa de Moscou sobre a guerra na Ucrânia [1] é o termo “русскоговорящие” ou “русскоязычные”, que se refere a pessoas falantes da língua russa. A que se refere esse termo e por que ele é instrumentalizado politicamente?

Do ponto de vista linguístico, russo, ucraniano e bielorrusso formam as chamadas línguas eslavas orientais [2]. Todas elas são descendentes de uma língua eslava comum, que foi a principal língua de comunicação na Rússia de Kiev [3], a civilização do século 9 ao 13 que emergiu no que é hoje Kiev e se irradiou de lá para a Ucrânia, Belarus e a parte europeia da Rússia. Apesar de suas muitas diferenças, os três idiomas utilizam o alfabeto cirílico e permitem algum nível de compreensão mútua sem tradução. Os idiomas ainda estão intrinsecamente separados e contam com literatura e contextos distintos.

Até o fim do império czarista russo em 1917, os territórios em que essas três línguas eram faladas estavam, em sua maioria, sob controle russo e polonês. A Rússia czarista impôs o russo como a língua do governo, do exército e da educação, enquanto o ucraniano e o bielorrusso eram falados em casa, nas ruas, nas igrejas e em certos períodos nas escolas. Na maior parte do império czarista, as elites eram bilíngues, pois falar russo oferecia privilégios sociais e econômicos.

A noção soviética de “russófonos”

À medida que o novo Estado soviético surgia e se fortalecia na década de 1920, implementou várias políticas, mas, por fim, em 1938, declarou o russo como obrigatório em todas as escolas soviéticas.

O russo deveria tornar-se a língua dominante [4] de todos os povos do bloco soviético em um futuro utópico comunista: uma língua de ciência, progresso e paz. Nessa narrativa, o russo era frequentemente descrito com uma citação do escritor russo do século 19 Ivan Turgenev [5] como “великий, могучий русский язык”, ou a “grande e poderosa língua russa”.

Assim, as políticas czaristas anteriores foram reforçadas e levaram muitas elites não russas a enviar seus filhos para escolas exclusivamente russas, em vez de escolas com um currículo nas línguas dominantes de uma das 14 repúblicas soviéticas não russas. O russo seria reforçado em casa, e se tornaria a principal língua na televisão. Como resultado, um grande número pessoas, que não são da etnia russa, tornou-se falante nativo do russo, com diferentes níveis de conhecimento de sua língua nativa. Tais línguas nativas eram muitas vezes vistas como não atraentes ou inúteis. Para certas nacionalidades, também era simplesmente impossível aprender a língua nativa, pois não havia escolas, nem livros didáticos, nem professores para facilitar o processo de aprendizagem. Foi o caso dos coreanos, dos judeus (considerados uma comunidade étnica e religiosa, conforme as definições soviéticas de nacionalidades) e dos alemães.

Gradualmente, o termo “russófono” tornou-se um sinal de sofisticação, educação superior, melhores perspectivas de trabalho e carreira, padrões de vida mais elevados e parte da noção soviética de “культурный человек”, ou seja, uma pessoa com boa educação e qualidades intelectuais progressistas que poderia acessar o conhecimento graças às traduções para o russo.

A queda do império e a confusão de identidades

Quando a União Soviética deixou de existir, no final de 1991, todas as ex-repúblicas soviéticas embarcaram em uma jornada para redescobrir sua identidade histórica, cultural e linguística que havia sido em grande parte censurada e distorcida pela ideologia soviética, incluindo a Rússia.

Os russos étnicos que haviam sido, frequentemente, privilegiados como portadores da “grande e poderosa” língua russa em todas as repúblicas fora da russa, tiveram que fazer escolhas inesperadas. Eles podiam adotar o novo discurso cultural de suas novas pátrias onde o russo perdeu, na maioria dos lugares, seu status de língua oficial, e ver suas mais altas posições assumidas pelas novas elites locais, geralmente membros da etnia dominante dos novos ou recém ressuscitados estados. Ou podiam se mudar para a nova Rússia, onde achavam que não teriam que experimentar o que consideravam uma perda de status.

Nesta fase, o termo “russófono” veio para descrever dois grupos diferentes que podem ser distinguidos em uma base étnica. O primeiro grupo se refere aos russos étnicos, e por extensão aos eslavos étnicos, mas também inclui judeus, alemães, gregos, que são uma minoria em seu novo país de residência.

O segundo grupo inclui pessoas do grupo étnico dominante, como o Azerbaijão ou Quirguistão, que falam russo como língua nativa, às vezes como única língua, rejeitando muitas vezes referências à renovação religiosa que outros vivenciam, e são vistos como um grupo separado da maioria.

É claro que as fronteiras entre todos esses grupos são confusas e podem mudar durante a vida dos indivíduos.

Uma Rússia vazia se declara protetora de todos os russófonos

Para a Rússia de hoje, as comunidades de falantes de russo que vivem na Estônia, Letônia, Lituânia, Belarus, Ucrânia, Moldávia, Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão (Armênia, Geórgia e Turcomenistão têm agora comunidades bastante pequenas que se identificam como falantes de russo) totalizam entre 12 e 16 milhões de pessoas [6].

Este grande grupo é estratégico para a Rússia por uma série de razões. Primeiro, a Rússia é um país em grande parte vazio [7], com uma população constantemente decrescente [8] como resultado das más condições de vida da maioria, da baixa expectativa de vida [9] e êxodo intelectual [10].

Em segundo lugar, a Rússia depende dos russófonos que geralmente consomem a mídia produzida pela Rússia para representar seus interesses em vários países e criar grupos de pressão locais [11] que favorecem os interesses comerciais e políticos russos.

Em terceiro, Moscou instrumentaliza essas comunidades quando quer se opor aos governos locais ou estrangeiros, justificando minorias como supostamente privadas de seus direitos culturais ou linguísticos. Isto é frequentemente feito para antagonizar com a União Europeia por meio das comunidades de língua russa nos Estados bálticos [12]. Serve como uma desculpa para continuar a apoiar a Transnístria e acabou sendo usada na justificativa de Moscou para ocupar a Crimeia [13], partes das regiões de Luhansk e Donetsk e, mais recentemente, toda a Ucrânia.

Hoje, Moscou está manipulando propositadamente a noção diversa e complexa dos russófonos para negar suas próprias identidades específicas: muitos, inclusive na Ucrânia, que falam russo como nativos ou bilíngues, não se identificam como russos étnicos e certamente não com a Rússia. No entanto, Moscou afirma que está vindo em sua defesa.

A realidade é que quando bombardeia uma cidade como Kharkiv no norte da Ucrânia, está bombardeando tanto os russos étnicos [14] quanto os russófonos.


 

Para mais informações sobre esse tópico, veja nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia [1].