Despachos ucranianos 1: Fugindo de Kiev com familiares e animais de estimação

Abel Polese, na estrada, partindo de Kiev. Fotografia de Abel Polese, usada sob permissão.

Esta é a primeira de uma série de três partes de Abel Polese sobre sua fuga de Kiev para a Romênia com seus filhos, dois gatos, sua ex-esposa e o marido dela depois que a Rússia invadiu a Ucrânia. Polese é pesquisador, instrutor e promotor de desenvolvimento, e atualmente lidera vários projetos de pesquisa sobre economias paralelas na Ucrânia. Ele voou para Kiev na noite de 23 de fevereiro, mas teve que deixar a cidade na madrugada do dia seguinte.

São 5h48 da manhã quando você olha o relógio se perguntando por que acordou tão cedo. Leva um momento para perceber que o seu (ex) sogro está dizendo algo. “Demilitarizatsiya i denatsizatsiya” (desmilitarização e desnazificação) são as palavras que ressoam em seus ouvidos antes que seu cérebro finalmente comece a funcionar e você entenda a frase inteira. Afinal, trabalhar até as 3 da manhã da noite anterior acabou não sendo uma boa ideia.

Mas, os jogos começaram. Você fica sabendo que seus filhos já estão saindo de Kiev em outro carro e seu sogro vai buscar uma babushka (avó). A outra, no entanto, disse claramente: “Eu não vou a lugar nenhum”.

Você sai para o jardim e ouve explosões não muito longe. Você ainda não está em perigo, mas está claro que algo está acontecendo. Você se lembra dos falsos bombardeios da época da Guerra Civil Iugoslava, mas não tem certeza do quanto se parecem.

Você não entende por que demoram tanto para tomar uma decisão. Eles estão bombardeando o país e você está na capital. Virão atrás de todos vocês, então não há muito a ser discutido. Mas, Babushka continua repetindo: “Não consigo imaginar Putin atirando em sua nação irmã, tudo vai ficar bem”. Com certeza, ele é capaz de fazer isso, você pensa, mas, por um momento, espera que ele fique feliz em apenas pegar Donetsk e Luhansk e fazer uma demonstração do seu poder bélico.

Mas sua posição é diferente da deles, então, para você, uma decisão rápida é mais fácil de se tomar. Para você, fugir significa voltar para casa. Para eles, significa abandonar, talvez para sempre, tudo o que eles têm: casa, amigos, objetos e carregar todas as lembranças de suas vidas em uma pequena mala.

Quando você pega a estrada, se arrepende de tanto tempo gasto em negociações. O carro com seus filhos, a mãe deles, o marido dela e dois gatos já saiu de Kiev. Você está sendo retardado pelo tráfego e se pergunta se este é o habitual das 7 da manhã em Kiev ou se as pessoas estão fugindo da capital e para onde estão indo.

Você combina um ponto de encontro para os carros depois muda ao descobrir que na estrada há um alvo militar próximo e não é tão seguro. Então, outra estrada não é segura, depois outra. No final, você topa ir a uma vila anônima que pode ser encontrada facilmente, mesmo que as redes móveis e de internet sejam completamente cortadas.

Guerra ou não

A vida parece seguir como de costume na capital. Por um momento, você pensa em ficar. Afinal, você tem seu compromisso às 11 e sua massagem favorita depois do almoço. Mas como as crianças não estão na cidade, há poucos motivos para permanecer lá. Depois repara nas filas dos supermercados e postos de gasolina e elogia como o seu sogro foi inteligente por manter o carro abastecido desde o início das tensões. Você cancela todos os compromissos do dia e da próxima semana. Você não vê nenhum caixa eletrônico, mas descobrirá mais tarde que as pessoas também estão fazendo filas neles.

A cidade é imensa. Você sabia disso, mas agora também sente. Passando por engarrafamentos e filas de postos de gasolina, você vê a cidade de Irpin, onde costumava ser convidado à academia de polícia para conversar com os alunos. Foi há muito tempo, mas agora parece uma espécie de fase inocente.

Pelo menos, os aviões estão voando, você pensa. Caso necessário, poderíamos sair do país de avião, já que muitos ficarão esperando que não piore. Mas sua esperança dura pouco. Alguns minutos depois, você descobre que o espaço aéreo ucraniano foi fechado. Agora, você está oficialmente preso no país e a única saída é pela estrada.

Sua memória remonta aos seus anos de estudante, quando, para economizar, você cruzava quase todas as fronteiras ucranianas a pé ou em trens locais transportando mercadorias para outras pessoas que estavam tentando ganhar a vida com o contrabando. Pode romantizar esses tempos o quanto quiser, se embebedando com contrabandistas, aprendendo sobre outros mundos e vidas, mas lembra bem que atravessar a fronteira a pé é um inferno em tempos normais, você não quer imaginar como será agora.

Mudança de estrada mais uma vez, mais bombas caem. Até mesmo o oeste do país, que você considerava mais seguro, foi bombardeado. Apenas alvos militares até agora, mas existe algum lugar onde seja possível se esconder por um tempo?

Uma reunião familiar inusitada

Fotografia de Abel Polese, usada sob permissão.

Hora de uma reunião familiar. O outro carro está estacionado entre um bosque seco e um posto de gasolina abandonado. Quatro gerações se reúnem num lugar no fim do mundo: seus filhos, a mãe deles, o marido, os dois pais e a avó dela, dois gatos e um cachorro. É uma situação inusitada, mas não é hora de lavar a roupa suja. Nem as antigas, nem as atuais. Agora vocês são uma família que foge da guerra. Esqueçam tudo e tirem uma selfie em família no lugar mais improvável do mundo.

Agora está decidido. Você continuará no carro com as crianças. Os avós e o cachorro voltarão para Kiev com a mãe delas. Ela já disse muitas vezes que não quer ir embora, os ouvidos do seu sogro já estão cansados demais para escutar isso, então pelo menos eles a estão levando para lá. Afinal, dizem eles, se a internet está funcionando e há eletricidade, talvez a situação não seja tão ruim quanto parece.

Seu carro segue para o sudoeste por pequenas estradas. Sua ex-mulher reservou um quarto em uma área considerada segura. O proprietário prometeu acomodar quantas pessoas chegassem. Por enquanto, o plano é chegar lá inteiro, dormir um pouco e decidir o que fazer em seguida.

Você sai da estrada principal e começa a pegar as menores. O navegador mostra que chegarão lá em seis horas ou mais. Está a duas horas de viagem quando fica sabendo que o carro do seu ex-sogro deu meia-volta e vem atrás de você. Eles já começaram a bombardear a região de Kiev. Voltar é muito perigoso.

Fotografia de Abel Polese, usada sob permissão.

Seu telefone começa a explodir. Familiares e amigos do exterior perguntam com insistência onde você está, o que está fazendo, para onde vai, o que está acontecendo. Como a situação pode piorar a qualquer momento e eles estão preocupados, fazem a mesma pergunta várias vezes. Você fica lisonjeado com toda a atenção, mas está um pouco ocupado sobrevivendo e precisa do telefone para olhar os mapas, para saber para onde a batalha está se movendo.

E a internet não está funcionando direito, então desiste de ter suas duas reuniões de negócios de dentro do carro e continua cancelando tudo. Além disso, você não tem ideia de quanto tempo a internet vai durar, então encerra o dia e entra no modo sobrevivência.

Essa é a primeira de uma série de três partes. A segunda e terceira partes foram publicadas nos dias subsequentes.

Para mais informações sobre este tópico, consulte nossa cobertura especial Rússia invade a Ucrânia.

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