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Na República Tcheca, sanções privadas aumentam a russofobia

Categorias: Europa Oriental e Central, República Tcheca, Direitos Humanos, Etnia e Raça, Guerra & Conflito, Mídia Cidadã, Russia invades Ukraine

Captura de tela do canal do CNN Prima no YouTube [1] mostra como um carro com placa russa foi pichado com cores e slogans pró-Ucrânia, no centro de Praga.

A República Tcheca é o lar de cerca de 50.000 cidadãos russos. Após a guerra da Rússia na Ucrânia [2], o seu destino é incerto, uma vez que Praga ja não concede vistos à Rússia, todas as comunicações aéreas e ferroviárias entre os dois países pararam, e algumas pessoas na República Tcheca associaram a agressão de Putin e todos os russos um pouco rápido demais.

Em 24 de fevereiro, os russos despertaram com a notícia de uma guerra contra a Ucrânia. Além do choque, desespero, medo, desilusão e vergonha, alguns dos que vivem fora da Rússia também se tornaram alvos da raiva de não russos que não fazem distinção entre a liderança russa e o povo russo.

Casos de discriminação ou mesmo de exclusão de estudantes russos durante as aulas [3] nas universidades, ou o caso de um professor tcheco que convoca um boicote a estudantes russos [4] e implementa suas “próprias sanções pessoais”. O professor em questão postou nas redes sociais e, mais tarde retirou o conteúdo, dizendo que se tratava de uma reação emocional. A Universidade Charles, de Praga, também pediu desculpas [3] aos seus estudantes pelo comportamento discriminatório de alguns dos seus professores.

Alguns falantes de russo que vivem na Europa, incluindo a República Tcheca, compartilham histórias de russofobia [5]: um grupo de hotéis declarou um boicote [6] a portadores de passaportes russos e bielorrussos, e algumas empresas imobiliárias declararam que não venderão [7] propriedades a cidadãos russos. Alunos russos [8] foram hostilizados nas escolas; uma pessoa cuspiu em um estudante que falava russo ao telefone na rua; outra gritou: “Que você morra logo, vadia russa!”, a uma jornalista de origem russa; outra pessoa humilhou falantes de russo de origem ucraniana e armênia, e uma taxista expulsou uma mulher [9] do seu carro porque estava falando russo com o filho. No fim das contas, a passageira era jornalista do canal Dozhd, um canal russo de oposição que tem sido um dos mais ferrenhos críticos de Putin.

A maioria desses casos de discriminação é compartilhada nas redes sociais, com um apelo para acabar com o comportamento russofóbico e fazer uma distinção entre russos e russófonos, e entre russos que apoiam ou se opõem [10] a Putin. Em alguns casos, os autores desses posts precisam desativar a opção de comentários [11], ou excluí-la devido a comentários enfurecidos.

Os perigos da russofobia

Apesar da participação de cidadãos russos em manifestações pró-Ucrânia, apoio financeiro e outras manifestações voluntárias de apoio aos refugiados ucranianos, e apesar dos apelos [12] das autoridades tchecas para não equiparar cidadãos russos às decisões do governo russo, ondas de discriminação contra russos [13] e bielorrussos estão se espalhando pela República Tcheca, assim como por outras nações da Europa.

Alguns ativistas tchecos comentaram em posts que essa russofobia é justificada e, embora em alguns casos eles peçam desculpas, mas não parecem achar que isso possa ser evitado; em outros comentários há também propostas de uma República Tcheca livre da Rússia.

A russofobia também deseja renomear produtos e lugares. Por exemplo, o famoso “sorvete russo”, que foi um produto de culto por gerações, poderá logo ser renomeado [14] “sorvete ucraniano” por seus produtores. Da mesma forma, a rua onde está localizada a embaixada russa poderá ser parcialmente renomeada de heróis ucranianos (Ukrajinských hrdinů) [15], como aconteceu na Lituânia [16].

Apesar de existirem cerca de 200 grupos étnicos [17] vivendo na Federação Russa, com opiniões e escolhas políticas diferentes, ou do fato de que um falante de russo poderia nascer e ser criado em outro país, a russofobia está sendo dirigida por certas pessoas na República Tcheca a qualquer um com passaporte russo, local de nascimento russo ou que fale russo.

No entanto, alguns tchecos já perceberam os perigos de culpar todos os russos pelos crimes do exército russo, como uma caça as bruxas [18].

As leis tchecas [19] garantem uma abordagem antidiscriminatória aos cidadãos e não cidadãos da República Tcheca, assegurando um canal de Ombudsman [20] como recurso, monitorando e verificando os casos de discriminação. O parlamento russo em Praga reagiu a essas situações [21] e escreveu um e-mail para compartilhar a história da russofobia na República Tcheca.

Mas talvez o mais preocupante seja que a russofobia está sendo reciclada por jornais pró-russos [22], que estão sediados ou têm como alvo a República Tcheca, e que esses exemplos sejam ampliados para justificar ainda mais seus próprios discursos violentos contra a Europa e seus valores.

É importante entender que muitos russos se sentem “sitiados”: Após uma grande crise diplomática em 2021 [23], e agora com sanções rigorosas, eles não podem viajar de avião ou trem para casa, suas famílias não podem obter vistos tchecos e, para muitos, as sanções econômicas também limitam ou congelam sua capacidade de usar cartões de crédito e fazer transferências bancárias.

Acontecimentos históricos repetitivos de russofobia

A atitude em relação aos russos ou portadores de passaportes russos (e anteriormente, de passaportes soviéticos) sempre foi peculiar no território da República Tcheca, e não só devido à invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 21 de agosto de 1968. Tanques e veículos blindados de transporte de tropas encerraram à força a Primavera de Praga [24]. Embora fosse um Estado-membro do Pacto de Varsóvia, a Tchecoslováquia era um Estado soberano, portanto, a invasão pelos aliados soviéticos foi e é considerada uma grande tragédia nacional. É também uma fonte de sentimento antirrusso contínuo que permanece vivo até hoje.

Uma onda mais recente de russofobia surgiu em 2014, após a anexação da Península da Crimeia à Federação Russa [25]. Praga apoiou as sanções da União Europeia contra a Rússia. Também reforçou uma visão extremamente negativa da Rússia que, para alguns, foi ampliada para incluir o povo russo.

Além das sanções econômicas e políticas [26] impostas à Rússia, a partir de vários Estados, algumas pessoas, considerando que não bastava apenas condenar as atividades russas na Ucrânia e oferecer apoio à Ucrânia, decidiram que deviam impor suas próprias sanções pessoais não ao país, mas aos cidadãos da Rússia.

A comunidade russa na República Tcheca: uma presença histórica

A história da comunidade russa na República Tcheca remonta a mais de um século, começando na década de 1920 quando os russos fugiram da Revolução Russa de 1917 e receberam ajuda [27] do governo Masaryk. Houve uma presença significativa de soldados soviéticos e suas famílias entre 1948 e 1989, que aumentou após a invasão de 1968. Aqueles que partiram em 1989 foram substituídos por uma nova onda de migrantes, incluindo russos ricos que compraram propriedades, mas também russos de classe média [28], que vieram estudar e permaneceram no país. Eles estão concentrados principalmente em Praga, em Karlovy Vary e em Mariánské Lázně, no oeste do país.

De acordo com os dados do Escritório Tcheco de Estatística, em 2020 havia cerca de 42 mil [29] estrangeiros com passaporte russo que viviam na República Tcheca há mais de 12 meses, com um visto de residência permanente ou de longa duração, incluindo os que têm asilo aqui.

A expressão renovada da russofobia prova mais uma vez o fato de que a história é cíclica. Os representantes de uma certa comunidade suportam o preço da agressão sobre outra, embora não sejam eles que a iniciaram, ou não têm nada a ver com isso. Isto foi testemunhado no racismo antiasiático que se seguiu à pandemia da COVID-19. E agora o mesmo fenômeno ressurge na Europa e em outros lugares com os russos e russófonos.


 

Para obter mais informações sobre este tema, veja nossa cobertura especial Rússia invada a Ucrânia [2].