Qual o significado de “mundo russo” nas declarações de Putin sobre a Ucrânia?

Captura de tela do canal do YouTube Ural Live, onde se lê Атака на Русский мир в Казахстане  (“ataque ao mundo russo”, em cazaque)

As declarações de Vladimir Putin e de seus assessores próximos sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia incluem uma expressão-chave: “Русский Мир” (Russkiy Mir). Essa expressão significa, literalmente, “mundo russo”, mas também pode ser interpretada como “paz russa”, devido ao duplo sentido da palavra “mir“, em russo.

O termo é usado para justificar o ataque à Ucrânia, que, nas palavras de Putin, é chamado de “operações militares na Ucrânia”. Com essa denominação, o Kremlin se intitula um defensor e detentor de tudo o que afirma estar dentro da esfera da cultura russa.

O significado flexível de “Mundo Russo”

Segundo uma pesquisa pública de 2012, do site da Russkiy Mir Foundation, uma organização criada em 2007 pelo presidente Vladimir Putin para “popularizar a língua russa”, o mundo russo é entendido como aquele que se refere aos territórios habitados por pessoas das etnias russas, que falam russo, ou associados à cultura russa. Isso inclui a Rússia, propriamente dita, e se estende a locais como o norte do Cazaquistão, a Bielorrússia, regiões de Donetsk e Luhansk, leste da Ucrânia, a região de Transnístria, na Moldova, a Ossétia do Sul e Abkhazia, na Geórgia, além da Sérvia e de Israel.

O mesmo site também vincula o conceito de “Russkiy Mir” à crença ortodoxa russa:

Согласно патриарху, ядром Русского мира являются Россия, Украина, Белоруссия. В основе его лежит православная вера, которую мы обрели в общей Киевской купели крещения. Русская культура не умещается в границах одного этноса и не связана с интересами одного государства.

Segundo o patriarca (líder da igreja russa ortodoxa), o núcleo do Russkiy Mir inclui a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Tem como base a fé ortodoxa, que encontramos em comum na fonte batismal da Rússia de Kiev. A cultura russa não está limitada por fronteiras de uma etnia e não está ligada aos interesses de um Estado.

O termo foi primeiramente encontrado no século 21, em textos religiosos. Obviamente, a definição do patriarca descreve diversos elementos do que, às vezes, é retratado como poder de influência russo. Inclui o aspecto geopolítico, que aponta as três nações eslavas como intrinsecamente unidas, uma continuidade histórica da Rússia de Kiev, a civilização que se desenvolveu, desde o século 9, desde a Kiev atual, e incluiu boa parte da Ucrânia, da Bielorrússia e da Rússia.

Em 1996, a Rússia e a Bielorrússia anunciaram a criação da União da Rússia e Bielorrússia, que já ressaltava a ambição de Moscou de expandir seu território sobre aqueles que surgiram da Rússia de Kiev.

O “mundo russo” como uma ideologia de Estado a serviço das ambições de Moscou

A Rússia ampliou o uso do termo “mundo russo” em 2014, quando anexou a Crimeia e pediu apoio às regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano. O argumento do Kremlin é de que o governo de Kiev impôs uma ucranização forçada, proibindo a utilização da língua russa e agindo com discriminação contra falantes de russo, atacando, deste modo, o imaginado território do mundo russo. As alegações russas servem como justificativa para o seu controle de grandes populações e territórios, que entende como essenciais para conceber sua “identidade russa”.

Tais alegações trazem consequências de longo prazo para outras regiões do antigo espaço soviético, frequentemente descrito, na língua de Moscou, como o “Ближнее зарубежье“, ou o Exterior Próximo, onde vive uma comunidade russa considerável e a língua russa continua relevante.

A mesma alegação de 2014 está sendo utilizada por Moscou, novamente, para justificar os ataques a Kiev: uma Ucrânia pró-Ocidente está sendo retratada como renunciando sua identidade do mundo russo para adotar “valores estrangeiros”, como o feminismo, os direitos da comunidade LGBTQI, e recusando o russo como língua oficial. Canais midiáticos tradicionais e redes sociais pró-Kremlin frequentemente empregam o termo “Гейропа” (“Gayropa”, uma fusão das palavras “gay” e “Europa”) para condenar o que consideram como decadência do mundo Ocidental e uma ameaça direta ao mundo russo.

Antes de invadir a Ucrânia, Putin fez um discurso histórico, em 21 de fevereiro, no qual utilizou mais da metade do tempo para dar a sua própria interpretação da história antiga e moderna dos territórios ucranianos, russos e entidades estatais, e declarou que a Ucrânia pertence ao mundo russo.

Com essa fala ofensiva e manipuladora, o ataque à Ucrânia tornou-se a “libertação da Ucrânia“. Em nome do mundo russo.


 

Para mais informações sobre este assunto, veja nossa cobertura especial: A Rússia invade a Ucrânia.

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