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Undertones: O que a mídia russa diz sobre a crise russo-ucraniana

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Ucrânia, Ativismo Digital, Censorship, Guerra & Conflito, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Relações Internacionais, Civic Media Observatory

Ilustração por Giovana Fleck.

Bem-vindos ao Undertones, o boletim de notícias do Observatório de Mídia Cívica [1]! Em cada edição, analisamos um acontecimento, uma tendência emergente ou uma história complexa. Identificamos narrativas-chave, de urgente interesse público e mergulhamos fundo no contexto e no subtexto de mídias locais, vernaculares e multilíngues. O Undertones é também uma porta de acesso aos dados públicos [2] que fundamentam o nosso trabalho no Observatório.

As notícias sobre tropas russas, posicionadas aos milhares na fronteira com a Ucrânia, estão nas manchetes mundiais há semanas, enquanto a Rússia demanda a retirada das tropas da OTAN dos territórios ao redor da Ucrânia. A tensão cresce à medida que países europeus consideram um possível cenário de guerra que mataria até 50.000 civis na Ucrânia, e transformaria muitos outros em refugiados, segundo relatórios dos Estados Unidos [4]. Em dezembro de 2021, quase 40% dos russos acreditavam que uma guerra contra a Ucrânia era “quase provável”, segundo a agência de pesquisas independente Levada [5].

Enquanto a mídia ocidental alerta, desde meados de janeiro, sobre uma possível invasão da Ucrânia pela Rússia, os canais estatais russos retratam a situação de modo bem diferente.

 

O que está acontecendo?

Diante do posicionamento de tropas russas perto da fronteira ucraniana, em dezembro de 2021 e janeiro de 2022, há uma crescente preocupação de que a Rússia invada a Ucrânia. A tensão entre os dois países vem diminuindo desde 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia, e apoiou o controle separatista armado de partes do leste da Ucrânia. Segundo autoridades russas, as recentes ações da Rússia são uma resposta à suposta ameaça de uma possível entrada da Ucrânia para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em dezembro, a Rússia publicou uma lista de exigências [6] para a OTAN, que incluía a proibição da entrada ucraniana na aliança. As demandas foram rejeitadas pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pela OTAN, que consideram impor novas sanções à Rússia.

Narrativas desenvolvidas pela mídia russa

1. “A postura ditatorial de Putin é uma reação ao tratamento dado à Rússia pelo Ocidente” [7]

A mídia pró-governo tem sugerido que o presidente Vladimir Putin deveria usar táticas opressivas para evitar que a Rússia seja provocada pelo Ocidente. Segundo afirmações da mídia, ao passo que a OTAN vem expandindo para o Oriente, violando os acordos internacionais [8], a Rússia precisa mostrar força para ser levada a sério no cenário internacional.

Na Rússia, a população mais velha é mais propensa (61%) a acreditar que os Estados Unidos e os membros da OTAN são os culpados pela escalada das tensões no leste ucraniano, em comparação com a população mais jovem (24%), segundo uma pesquisa da organização não governamental russa de pesquisas Levada [5], de dezembro de 2021.

 

Manchete da imprensa:
“Quem realmente está se preparando para uma guerra na Ucrânia: cinco indícios claros”

No dia 20 de janeiro, o principal tabloide pró-governo, Komsomolskaya Pravda (KP), listou cinco razões para acreditar que a Ucrânia, e não a Rússia, está se preparando para uma guerra. O artigo insinua que foi o Ocidente e a Ucrânia que iniciaram diálogos sobre guerra. O autor não menciona a recente mobilização russa, de suas forças armadas, nem a anexação da Crimeia em 2014, e o contínuo conflito no leste ucraniano. Mais informações aqui [9].

2. “A Rússia sempre vence” [10]

Autoridades russas e jornalistas pró-governo vêm se referindo à história da Rússia para ameaçar o Ocidente. No Telegram [11], o representante russo, Vyacheslav Nikonov, (neto de Vyacheslav Molotov, amigo de Stalin) mencionou o “passado glorioso” russo, e ameaçou o presidente Joe Biden com um “balde de água fria” ou, em outras palavras, poder nuclear. A expressão “passado glorioso” pode também lembrar o papel decisivo da União Soviética na vitória da Segunda Guerra Mundial. Referências sutis à Segunda Guerra também foram encontradas em outros conteúdos midiáticos [12], e a retórica de guerra é onipresente nas narrativas patrocinadas pelo governo.

Entretanto, à medida que o tecido social e econômico russo se deteriorou, gerando um crescente descontentamento e um declínio [13] da popularidade de Putin, menos pessoas apoiam a retórica de guerra, que teve um papel tão relevante durante, por exemplo, a anexação da Crimeia em 2014.

 

Manchete da imprensa:
“Não comece uma guerra com os russos”, disse Vladimir Solovyov

Neste vídeo do Facebook, publicado em 15 de janeiro, o âncora de notícias Vladimir Solovyov, do conglomerado de mídia do governo VGTRK, alerta o Ocidente a não “guerrear com os russos”, pois a Rússia irá vencer. Mais informações aqui [14].

3. “Vladimir Putin não sabe como acabar com a tensão entre a Rússia e a Ucrânia sem perder a sua reputação” [15]

Alguns comentaristas afirmaram que Vladimir Putin e seus aliados no exército russo encontram-se em uma situação de impasse. Os líderes russos não querem, de fato, começar uma guerra (o custo seria alto e as sanções resultantes prejudiciais), mas não sabem como realizar uma desescalada militar. Além disso, Putin poderia temer a perda de sua reputação como um líder forte. Para o crítico do governo Max Trudolubov [16], Putin “parece um macaco que subiu em uma árvore, mas não sabe como descer”.

 

Manchete da imprensa:
“Putin foi encoberto por fumaça: a visibilidade nas relações com o Ocidente desapareceu”

O jornal diário Moskovsky Komsomolets (MK), ligado à elite política do Kremlin, publicou um artigo de opinião, escrito por Mikhail Rostovsky, em que argumenta que a população russa não entende as ações militares de Putin, e que a política externa russa está “em um beco sem saída”. Sem criticar Vladimir Putin abertamente, Mikhail escreve que uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia não afetaria o Ocidente, mas, sim, a Rússia, e que as saídas para Putin estão se acabando. Mais informações aqui [17].

4. “A crise russo-ucraniana é uma ficção criada pelo Ocidente” [18]

Mais recentemente, comentaristas pró-Putin alegaram que a Rússia nunca teve a intenção de invadir a Ucrânia, e que a crise foi inventada e alimentada pelo Ocidente, mais especificamente pelos Estados Unidos.

Alguns representantes de estado russos insistiram que não haverá a invasão da Ucrânia, a não ser que o Ocidente a provoque, isto é, se a OTAN não atender às demandas russas para que cesse a sua expansão. Para eles, a movimentação de tropas russas é um assunto interno, e a crise é resultado da histeria impulsionada pela mídia do Ocidente.

Manchete da imprensa:
“Dmitry Peskov: os Estados Unidos estão semeando pânico”

No dia 31 de janeiro, o assessor de imprensa de Vladimir Putin, Dmitry Paskov, disse ao jornal Komsomolskaya Pravda que os Estados Unidos inventaram a crise da Ucrânia. Dmitry afirmou que “a imprensa norte-americana vem publicando uma enorme quantidade de informações não verificadas, destorcidas, deliberadamente falsas e provocativas sobre o que está acontecendo na Ucrânia, e na região, nos últimos meses”. Mais informações aqui [19].

 

5. “A Rússia não deve invadir a Ucrânia” [20]

Alguns ativistas de direitos humanos russos, membros da intelligentsia, políticos, oficiais militares aposentados [21], e civis acreditam que a Rússia não deveria intervir militarmente na Ucrânia, sob quaisquer circunstâncias. Entretanto, eles estão enfrentando dificuldade em achar maneiras para difundir suas críticas. 

O panorama midiático na Rússia é bem restrito: a maioria dos grandes canais de TV e veículos editoriais pertencem ao Estado, ou são controlados por afiliadas estatais. Grande parte da mídia independente é denominada como “agente estrangeiro”, e está à beira de ser fechada pelo governo.

Muitas pessoas não têm coragem de expressar suas opiniões abertamente nas redes sociais, por medo de represália. Deste modo, comunicados públicos [22] e petições continuam sendo importantes ferramentas para ações coletivas da oposição russa, alguns dos quais compartilham memes [23].

 

Manchete da imprensa:
“Papai Putin pfvr sem guerra”

Usuários jovens, do Tiktok e do Instagram, apelam anonimamente para que Vladimir Putin não comece uma guerra contra a Ucrânia, em ações concentradas por meio das redes (flashmobs), com vídeos sarcásticos e comentários dizendo “Papai Putin, por favor, sem guerra”. As hashtags incluem #papaiputin e #pfvrsemguerra. As nacionalidades dos usuários não são claras. Mais informações aqui [24].

 


Outras narrativas em andamento na Rússia

Undertones é o boletim do Observatório Cívico de Mídia, criado de maneira colaborativa entre os pesquisadores, a coordenação editorial, e os redatores de projeto do Observatório. Mais informações sobre nossa missão [1], metodologia [30] e dados públicos disponíveis [31].