- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Morte bárbara de jovem migrante congolês causa indignação no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, República Democrática do Congo, Etnia e Raça, Migração e Imigração, Protesto, Refugiados

Arte com retrato de Moïse Kabagambe | Créditos: Gladson Targa/Utilizado sob licença CC 4.0 [1]

Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, nasceu no Congo e deixou o país para fugir da fome e da instabilidade política. Chegou ao Brasil ainda adolescente [2], foi recebido como refugiado político, viveu no país por cerca de uma década e nele também foi brutalmente assassinado na noite de 24 de janeiro de 2022.

O jovem, que trabalhava no quiosque Tropicália, à beira da praia, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, teria ido ao local cobrar pagamento de duas diárias atrasadas [2], segundo relatos iniciais de sua família.

Moïse, porém, acabou espancado até a morte — a Justiça decretou a prisão de três homens [3] apontados como autores do crime, no dia 2 de fevereiro. Segundo o jornal Folha de São Paulo [4], a Polícia Civil demorou três dias para intensificar as investigações sobre o crime.

À polícia, o dono do quiosque negou que teria dívidas [2] com o jovem. Um dos suspeitos do crime disse em depoimento que agrediu o jovem “para extravasar a raiva”, porque ele estava “perturbando”, segundo o portal G1 [5], e negou preconceito por questão de origem ou raça da vítima.

O episódio de violência, que durou aproximadamente seis minutos, envolveu “socos, pisões, golpes com taco de beisebol e tapas”, segundo reportagem do portal UOL [6]. Os agressores ainda amarraram pés e mãos da vítima.

As cenas registradas pelas câmeras de segurança, ainda de acordo com o UOL, mostram que paramédicos tentaram reanimar Moïse por cerca de 25 minutos, e o quiosque seguiu funcionando, mesmo com seu corpo no chão.

A barbárie do caso levou a manifestações nas redes sociais, com milhares de publicações pedindo #JustiçaPorMoise [7], #JustiçaParaMoise [8]#JustiçaPorMoiseMugenyi [9].

Pelo Twitter, a Anistia Internacional e o Instituto Marielle Franco [13] (criado pela família da vereadora assassinada no Rio, em 2018) ressaltaram aspectos de racismo e xenofobia do crime:

Do Congo ao Brasil

No dia 29 de janeiro, cinco dias após o crime, familiares de Moïse foram ao local de sua morte protestar. Ao portal de notícias G1 [17], a mãe do jovem, Ivana Lay, pediu justiça:

Meu filho cresceu aqui, estudou aqui. Todos os amigos dele são brasileiros. Mas hoje é vergonha. Morreu no Brasil. Quero justiça.

No domingo, um dia após a manifestação pacífica da família em frente ao quiosque, o corpo de Moïse foi enterrado no cemitério do Irajá [18], também no Rio, ainda em clima de protesto.

Ao jornal O Globo [19], em depoimento publicado no dia 1º de fevereiro, Ivana Lay contou que a família vivia em uma região da República Democrática do Congo atingida pela guerra entre os lendu e os hema [20] (grupo étnico da família), que levou à morte de vários de seus familiares. O pai de Moïse desapareceu pelo conflito, diz ela.

Ela declarou ainda ao jornal:

Queremos processá-los para que isso não aconteça com outra pessoa. Eles não tinham o direito de fazer isso com o meu filho. Espero que esse caso não caia no esquecimento, como tudo cai. Quando meu povo, no Congo, soube, eles fizeram um protesto. Eles gritaram contra isso. A todo tempo recebo mensagens de lá. A todo instante, revivo essa dor terrível que foi a partida do meu filho. Se eu saio lá fora, eu vejo o Moïse. Tudo no Brasil me lembra dele. Ele estava novinho. Havia acabado de fazer 24 anos. Ele só queria viver como todo mundo.

Não podem matar as pessoas assim. Eles quebraram as costas do meu filho, quebraram o pescoço. Eu fugi do Congo para que eles não nos matassem. No entanto, eles mataram o meu filho aqui como matam em meu país. Mataram o meu filho a socos, pontapés. Mataram ele como um bicho.

Brasil e migrantes 

O Brasil, país onde 54% da população se identifica como negra [21], segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi o último do Ocidente a abolir a escravidão [22] (1888), depois de quase quatro séculos.

Para Maria do Carmo Gonçalves, pesquisadora e diretora do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios [23], a violência a que Moïse foi submetido é um sintoma da vulnerabilidade a que migrantes e refugiados, especialmente negros, estão submetidos no Brasil.

A ausência de uma política efetiva de acolhimento a migrantes limita o acesso a direitos básicos e dificulta a integração dos estrangeiros com a comunidade nacional, avalia Gonçalves.

Ainda de acordo com a socióloga, o caso de Moïse não é isolado e não deve ser visto como um fato pontual. Maria do Carmo lembrou de outros episódios de violência contra refugiados no Brasil, como quando o sírio Mohamed Ali foi atacado enquanto vendia esfirras em Copacabana [24], também no Rio de Janeiro, em 2017.

À Global Voices, a pesquisadora destacou que não faltam leis no país, mas sim mecanismos para a sua efetivação.

O ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) considera moderna a legislação brasileira de refúgio [25] e vê como uma conquista a aprovação da nova lei de migração do país, em vigor desde 2017, que trata a migração como o que ela de fato é: um direito humano [26].

Indignação e protestos

O caso tem despertado comoção e debate no país. Em uma rara nota conjunta [27], Cáritas e as agências da ONU para refugiados (ACNUR) e para migrações (OIM) afirmam ter recebido a notícia da morte do jovem “com enorme consternação”, declaram estar acompanhando o caso e esperar que as circunstâncias do crime sejam esclarecidas.

Ao portal de notícias G1 [17], o representante da Embaixada do Congo em Brasília lembrou: “O Brasil é um país receptor dos refugiados, ratificou a Convenção de Genebra, junto com todos os protocolos adicionais. Uma das bases é a proteção da vida humana dos refugiados que são recebidos”.

Em nota, a Comunidade Congolesa no Brasil repudiou o crime e denunciou a negligência a que o corpo de Moïse foi submetido [28], tendo sido socorrido apenas 40 minutos após sua morte e conduzido ao IML (Instituto Médico Legal, onde são feitas análises) na condição de desconhecido — o que fez com que a sua família só soubesse da morte no dia seguinte, quase 12 horas depois.

Ainda de acordo com a nota do grupo, Moïse era um rapaz prestativo, alegre e arrancava risadas de todos ao seu redor quando falava francês de maneira propositalmente errada. Sua frase favorita no idioma era [29]“Je suis desolé”, “sinto muito” em português.

Com a repercussão do caso, ativistas [30], jornalistas [31] e acadêmicos [32] questionaram também o silêncio da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves [33], sobre o assassinato.

Após uma série de cobranças nas redes sociais, o canal oficial do ministério se pronunciou comunicando que, oito dias após o assassinato, solicitou informações à polícia:

Pelo menos 12 capitais [38] brasileiras tiveram protestos pela morte do jovem no dia 5 de fevereiro.