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No Sudão, tribunal apoia acesso irrestrito à internet

Categorias: África Subsaariana, Sudão, Direitos Humanos, Lei, Mídia Cidadã, Protesto, GV Advocacy

Protestos estouraram em frente à Universidade de Zalingei em Darfur Ocidental quando uma equipe de negociação de paz, liderada por Ahmed bin Abdullah al Mahmoud, Ministro das Relações Exteriores do Quatar, e Djibril Bassolé, mediador-chefe das Nações Unidas e União Africana para Darfur, encontraram-se com líderes da sociedade civil dentro da universidade. Ao menos um participante do protesto foi morto, e vários ficaram feridos, durante confrontos com forças de segurança. Imagem via Flikr [1] cortesia de UN Photo. (CC BY-NC-ND 2.0) [2]

A lei vence batalhas pelos cidadãos sob regime ditatorial: isso é o que aconteceu no Sudão quando um juiz ordenou o restabelecimento do serviço de internet aos sudaneses depois do corte após o golpe de 25 de outubro.

Nos últimos três anos, o Sudão passou por inúmeros cortes de internet [3] e interferências devido à crise política constante. O governo também impõe cortes durante os exames escolares nacionais, conhecidos como Certificado Sudanês, como um meio de evitar fraudes com pessoas fora das salas enviando respostas a quem está fazendo o exame. Esses incidentes chamam a atenção para o uso crescente de cortes de internet no Sudão e região. No entanto, a base legal para cortes de internet nunca foi propriamente avaliada, ainda que possa oferecer caminhos possíveis para a defesa contra a prática.

Depois de depor Omar al-Bashi [4]r em 2019, o Sudão foi governado por um acordo de divisão de poder entre a Forces of Freedom and Change [5] (FFC) e a Transitional Military Council [6]. Esse regime de poder funcionou para estabilizar o país ao considerar a paz como missão de alta prioridade. Em 2020, o governo assinou o acordo de paz Juba [7] com os rebeldes e dividiu o poder com eles. Desde então, alguns dos rebeldes trabalharam com os militares para tirar o FFC do poder. Em outubro eles fizeram uma vigília [8] em frente ao Palácio da República, depois do qual o general Burhan anunciou [9] um golpe militar tirando o FFC do governo.

O último corte de internet no Sudão começou em 25 de outubro de 2021 e durou 22 dias [10]. O corte aconteceu durante o golpe [11] do general Burhan [12]. Ele é o comandante geral das Forças Armadas Sudaneses – nome oficial do exército sudanês – e justificou o corte da internet dizendo que isso “salvaria a união nacional e a segurança nacional das ameaças que o estado está enfrentando”, como ilustrado na captura de tela abaixo:

A decisão de Burhan de cortar a internet. Captura de tela de imagem circulando na internet, incluindo no Facebook.

O corte também foi baseado na Lei das Forças Armadas e na Lei de Emergência, que são duas leis amplas invocadas para dar amplos poderes ao executivo durante períodos de instabilidade política.

O artigo 6 (d) do Ato das Forças Armadas [13] estabelece que as Forças Armadas Sudanesas devem “responder a situações de emergência definidas pela lei”. Já o artigo 8 (2) da lei de emergência e segurança pública do ano de 1997 [14] confere ao presidente poder para legislar sobre qualquer coisa sem prestar contas às autoridades legislativas ou “ao parlamento”, apesar de isso ser antidemocrático.

Considerando que a autoridade existente à época foi instalada por um golpe, todas as decisões subsequentes são inconstitucionais, incluindo o uso dessas leis.

A mecânica dos cortes de internet no Sudão mostra colaboração [15] entre o governo e as empresas privadas que fornecem serviços de internet ao povo sudanês. Netblocks, entidade defensora do acesso à internet, tem monitorado os cortes de internet no Sudão fornecendo relatórios diários e informações atualizadas [16] sobre a situação da internet no país. Eles descobriram que somente dados celulares foram desligados pela desativação do Ponto de Acesso “APN”, semelhante ao corte de 2019. Após quase 12 horas de corte, o serviço de internet voltou por apenas duas horas antes de ser desabilitado de novo por um método diferente. Nessa segunda vez, a internet foi cortada bloqueando qualquer tráfego de fora do Sudão e roteando somente os serviços hospedados localmente, como serviços bancários eletrônicos e aplicativos de táxi.

 

Confirmado: internet parcialmente restaurada no #Sudão no 25º dia de um apagão pós-golpe; métricas em tempo real mostram aumento significativo da conexão de celulares desde 16h30; não está claro se o serviço será mantido, ou por quanto tempo

O acesso às redes sociais permanece intermitente. Em 18 de novembro, 2021, o Netblocks confirmou [21] que o acesso à internet foi restaurado, mas com limitações às redes sociais.

O explorador Open Observatory of Network Interference (OOONI) mostra que o WhatsApp não ficou acessível pelos provedores Zain Sudan e MTN SD, mas estava acessível pelo Canar Telecom Company. Também mostra que o Telegram não estava acessível pelo MTN SD, mas estava pelo Canar e Zain Sudan.

Uma batalha judicial

Dias depois do golpe, uma aliança entre a Sudanese Consumer Protection Organization (SCPO [22]), dr. Yassir Mirghnani, o secretário-geral da SCPO, Abdalazeem Hassan, representando a empresa Advogados Unidos, Salma Mohamed e Tasneem Hashim entrou com um processo contra o corte de internet com base em seus contratos de assinatura com as empresas de telecomunicação. Em 9 de novembro de 2021, o tribunal geral de Cartum ordenou [23] que os provedores de serviço de internet (ISPs) reabilitassem o serviço dos cartões SIM dos reclamantes. Depois de dois dias, o mesmo tribunal ordenou que os ISPs reabilitassem o serviço de internet de todos os assinantes em todo o Sudão. 

Em 11 de novembro, Al-Sadig Gamaludin, o gerente geral do órgão regulatório de correios e telecomunicações sudanês [24] (TRPRA) publicou [25] uma decisão administrativa ordenando que os ISPs continuassem a cortar os serviços de internet, dizendo: “Executar as ordens das altas lideranças de cortar a internet está de acordo com o estado de emergência e considera o estado de emergência como uma decisão soberana relacionada a proteger a segurança nacional, e é superior a qualquer decisão vinda de qualquer outra instituição. Então, a decisão de cortar a internet é válida até segunda ordem”.

A decisão do TRPA depende dos artigos 6 (J), 7.1, artigo 7.2 (A) da lei TRPA de 2018 [26], que estabelece o dever do TRPA de “proteger a segurança nacional e os interesses soberanos do Sudão”, e “as obrigações e requisitos do estado no campo da segurança nacional e defesa, e políticas nacionais, regionais e internacionais”. “Segurança nacional” é um termo vago que não foi definido, o que deixa as autoridades abusarem dele em interesse próprio contra o interesse do povo. Ainda, o artigo 77 diz: “o TRPA tem o direito de desligar qualquer aparelho sem fio ou estação sem fio ou estação de transmissão temporariamente ou permanentemente se ficar provado que o serviço é realizado de forma que viola a lei e os regulamentos”.

As ISPs apelaram contra a decisão do TRPA, e o juiz a rejeitou e ordenou [27] que os serviços de internet fossem restaurados. O governo ignorou essa decisão. Em seguida, tribunal geral em Cartum publicou [28] um mandado de prisão para os CEOs das companhias de telecomunicação do Sudão, negando sua soltura até que reabilitassem os serviços de internet de todos os assinantes. Como resultado, a internet foi restaurada [29] com algumas restrições em sites de redes sociais. Durante esse tempo, os sudaneses usaram VPN para driblar o bloqueio. Empresas privadas como Proton VPN forneceram VPN de graça aos sudaneses.

Liberdade na internet é um direito humano. O povo no #Sudão pode usar ProtonVPN de graça para driblar a censura on-line.

Os tribunais continuam ao lado do povo sudanês. Em 24 de novembro, o tribunal geral de Cartum, de primeira instância, ordenou que os ISPs reabilitassem a internet sem nenhuma restrição. O Netblocks confirmou a restauração no Twitter:

Atualização: plataformas de redes sociais e mensagens foram reabilitadas no #Sudão em todos os maiores provedores de internet. Interrupções nas telecomunicações desde o golpe militar de 25 de outubro incluíram um apagão quase total e restrições parciais que suprimem direitos humanos.

Shahad Abdelrahman [36], assessora jurídica da Advogados Unidos, empresa de advocacia sudanesa baseada em Durban, na África do Sul, disse que não esperava que o corte de internet afetasse o processo legal devido à independência do judiciário sudanês, e a contínua dependência do tribunal de métodos analógicos como papel e caneta. No entanto, ela expressou preocupação com a greve do judiciário, com juízes se juntando à desobediência civil nacional e confrontando o golpe. Apesar disso, os cortes de internet permanecem um desafio político no Sudão. “Em um caso recente”, Abdelrahman acrescentou, “advogados chegaram a obter um comunicado escrito dos provedores de internet proibindo-os de desativar a internet, mas ainda aguardamos para ver os resultados desse procedimento”.

Waleed Ahmed [37], jornalista independente que trabalha em Cartum, explicou à Global Voices que os cortes eram um grande desafio social e econômico no Sudão, atrapalhando o trabalho e especialmente as já tênues conexões com o resto do mundo devido às sanções [38] legais. E conclui:

I know many who lost jobs and educational opportunities, and this is without mentioning those who lost financially due to the dependence of their work on the internet. We have lost the right to express our opinions and I personally have lost contact with friends in the diaspora. They have violated our right of expression. 

Conheço muitos que perderam oportunidades de trabalho e educação, e isso sem mencionar aqueles que perderam dinheiro devido à sua dependência do trabalho on-line. Perdemos nosso direito de expressar nossas opiniões e eu, pessoalmente, perdi o contato com amigos que saíram do país. Violaram nosso direito de expressão.