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Governo de Moçambique reage ao conflito impondo as suas próprias narrativas digitais

Categorias: África Subsaariana, Moçambique, Guerra & Conflito, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, GV Advocacy

Ponte fronteiriça de Cabo Delgado, Norte de Moçambique, 4 Agosto, 2009. Foto [1] por F. Mira, CC BY-SA 2.0 [2].

Desde Outubro de 2017, Moçambique tem vivido um conflito [3] armado na província de Cabo Delgado, no norte [4] do país. Já foram dadas várias explicações [5] sobre as causas, mas a maioria permanece desconhecida. Apesar das alegações [6] de que o Estado Islâmico esteja por detrás dos ataques e pretende ocupar as áreas de produção de gás em Moçambique, nem os perpetradores, nem as origens da violência foram identificados. A ausência de informação cria um contexto propício para que a violência se expanda, porque não há ninguém a quem prestar contas.

De facto, a falta de informação continua a ser um grande desafio. O governo, os media e a sociedade civil culpam-se mutuamente [7] pelo silêncio, alegando [8] que não há informação. A sociedade civil acusou o braço executivo do governo de não proteger os meios de comunicação social, enquanto os meios de comunicação social foram rotulados [9] como um vector para a divulgação de notícias falsas pelo governo.

Como resultado, activistas e defensores dos direitos humanos lançaram [10] em 2018 uma campanha de sensibilização para o conflito, denunciando as violações dos direitos humanos, utilizando hashtags e pequenas publicações para destacar a crise humanitária.

Violações perpetradas em silêncio

O direito à informação foi violado durante o conflito em curso, o que resultou num silêncio arrepiante. Jornalistas foram presos [11] — e alguns desapareceram — pelo seu trabalho, incluindo Ibraimo Mbaruco, que está desaparecido [12] desde o início de 2020.

Antes do seu desaparecimento, advertiu [13] através de fontes familiares que tinha sido interrogado tanto pela polícia como pelos militares. Em Fevereiro de 2021, o jornalista britânico Tom Bowker, que tem estado a cobrir a insurreição [14] no norte de Moçambique, foi expulso do país e proibido de regressar durante 10 anos.

A filial de Moçambique do Media Institute of Southern Africa (MISA), uma organização que defende a liberdade de imprensa, contestou [15] a expulsão de Tom Bowker:

Certo, então é isso! Expulso de Moçambique e banido por 10 anos. Um movimento de motivação política, sem fundamento legal. Graças a todos os que nos ajudaram a combatê-la, e que tornaram os últimos 6 anos tão maravilhosos. Até!

Da mesma forma, a activista Cídia Chissungo juntou-se ao Movimento Activista Moçambique — um colectivo da sociedade civil — e iniciou a campanha online denominada “Mãos pela Justiça” no Twitter:

Está aí?
Pode ajudar-me com esta campanha?
Só tem de escrever algures #FreeAmade e partilhá-la. @FNyusi todos têm o direito de saber tudo o que se passa no norte do país porque #CaboDelgado também é Moçambique.
Vamos em conjunto exigir pela JUSTIÇA.

E as violações não se concentram apenas no norte de Cabo Delgado. Em Abril de 2021, agentes da polícia detiveram [23] na capital Pemba, Hizidine Acha, jornalista do maior grupo privado de comunicação social moçambicano SOICO, forçando-o a apagar imagens no seu telefone e na câmara, alegadamente mostrando os agentes a espancar pessoas.

Uma situação em deterioração a nível nacional

Estes ataques a jornalistas representam uma escalada de violações do direito à informação em Moçambique. Desde 2015, o país já desceu [24] 19 lugares no Índice de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). E as violações não se concentram apenas em Cabo Delgado.

A 8 de Dezembro, Moçambique foi despromovido de “obstruído” para “reprimido” num novo relatório do CIVICUS Monitor, uma colaboração de investigação que classifica e segue as liberdades fundamentais a nível mundial. De acordo com o relatório [25], a desvalorização resulta de restrições injustificadas à liberdade de expressão e de um ambiente em deterioração para os defensores dos direitos humanos e a sociedade civil.

Os ataques físicos e a intimidação e assédio de jornalistas e activistas têm aumentado em todo o país. Mas Cabo Delgado continua a ser a região de maior preocupação. Em Outubro de 2021, a Human Rights Watch denunciou a falta de acesso à informação, afirmando [26]:

International media groups continue to report unnecessary restrictions in getting permission from state institutions to access districts in northern Cabo Delgado, and local journalists continue to suffer harassment and intimidation from government security forces.

We urge the Mozambican government to stop silencing the media in Cabo Delgado, and immediately allow public scrutiny of the military operations in the province.

Grupos internacionais de meios de comunicação social continuam a relatar restrições desnecessárias na obtenção de autorização das instituições estatais para aceder aos distritos no norte de Cabo Delgado, e os jornalistas locais continuam a sofrer assédio e intimidação por parte das forças de segurança governamentais.

Instamos o governo moçambicano a parar de silenciar os meios de comunicação social em Cabo Delgado, e a permitir imediatamente o escrutínio público das operações militares na província.

A reacção cibernética do governo

O acesso à Internet é um desafio para muitos moçambicanos. Apenas 7 milhões (21%) de pessoas da população total [27] de 31 milhões usam Internet. 3 milhões deste número são usuários de redes sociais, representando uma penetração de 9,5%.

No entanto, a Internet é frequentemente utilizada para serviços como a banca e o dinheiro móvel. Apesar da sua importância para os moçambicanos comuns, estes serviços móveis têm sido um alvo de retaliação do governo, por exemplo, acusados [28] de serem fontes de financiamento do terrorismo em Cabo Delgado.

Em Novembro de 2020, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi desafiou [29] as Forças Armadas Moçambicanas (FADM) a restaurar a normalidade em zonas do país afectadas por conflitos. Nomeadamente, atacou o uso das redes sociais por espalhar desinformação sobre Cabo Delgado.

“Lamentamos a tendência crescente para a desinformação e as tentativas de manipulação da opinião pública através da invenção de factos, que são depois publicitados através da utilização em plataformas das redes sociais”, disse [30] Nyusi num vídeo do YouTube.

Após o pronunciamento de Nyusi, o Gabinete de Informação do Estado criou [31] uma plataforma chamada Credível [32] para monitorar a publicação on-line de informação. O gabinete afirmou [31] que a plataforma de verificação visa assegurar a autenticidade do conteúdo divulgado pela imprensa ou em redes sociais.

O acesso à plataforma é gratuito, e os cidadãos podem partilhar o conteúdo desta página e esperar rapidamente uma resposta da pessoa que criou a informação confirmando a sua veracidade. No entanto, até agora, o funcionamento interno do Credível [32] permanece desconhecido.

Imagem de ecrã da plataforma [32] ‘Credível’. Tirada pelo autor (Dezembro de 2021). Ilustra publicações noticiosas com selos de ‘verdade’ ou ‘mentira’ que demonstram como o governo gere a sua própria narrativa.

É importante notar que o aviso de Nyusi contra a propaganda on-line enganosa vem cerca de duas semanas após o lançamento de um novo website da Frelimo (partido no poder), chamado [33] Frelimo 1962. Este website foi criado pela Defesa MZ, a mesma entidade que em 2020 criou um website [34] denominado Notícias de Defesa, que publica notícias sobre o conflito em Cabo Delgado, juntamente com declarações oficiais dos ministérios do interior e da defesa moçambicanos.

O governo promove estas duas plataformas, mas também as utiliza para divulgar a narrativa do próprio governo sobre o conflito, mesmo quando ainda usa e critica outros meios de comunicação social.

Os críticos recuam

Em resposta às declarações do presidente, o MISA Moçambique, uma organização regional da sociedade civil que trabalha na protecção e defesa da informação disse [35] que temia que tais afirmações pudessem ser interpretadas como uma ordem para perseguir todas as organizações dos meios de comunicação social que oferecem pontos de vista não alinhados com a narrativa oficial.

“Esta ordem representa uma ameaça à liberdade de imprensa”, disse na sua declaração [35], “especialmente num contexto em que os jornalistas em Cabo Delgado foram vítimas de perseguição, incluindo detenções e raptos arbitrários”.

O grupo da sociedade civil Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD) condenou [36] os ataques relacionados com os media e aconselhou os jornalistas a continuarem a cumprir o seu dever de informar o público. A organização desafiou ainda os organismos estatais responsáveis por garantir a independência dos meios de comunicação social a condenar publicamente as ameaças de silenciar os jornalistas através de meios extra-judiciais.

Na ausência de informação verificável, os cidadãos receiam uma proliferação de desinformação sobre o conflito, alertando para os meios de comunicação social:

Estas preocupações não são infundadas. Em 2018, a estação de televisão nacional moçambicana Televisão de Moçambique partilhou um vídeo reivindicando a responsabilidade pelos ataques em Cabo Delgado. Na emissão da TVM [47], um grupo de homens assumiu a responsabilidade pelo assassinato de 10 cidadãos locais no posto administrativo de Ulombe (também soletrado Ulumbi, Olumbe ou Olumbi) no distrito de Palma.

Os indivíduos no vídeo tinham coberto os seus rostos empunhando armas do tipo AKM, alegando admiração por Allah. Foram apresentados pela TVM como os organizadores do ataque bárbaro. Contudo, verificou-se que o vídeo era falso, apesar de ter circulado nas redes sociais em Janeiro de 2018, segundo [48] a página do Facebook de Borges Nhamire, investigador do Centro de Integridade Pública.

Note-se que a desinformação apoiada por fontes oficiais, combinada com narrativas impostas pelo governo, tornaram a situação em Cabo Delgado difícil, negando aos moçambicanos o seu direito a informação fiável.