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Uma discussão na Suprema Corte pode colocar em risco terras e direitos indígenas no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Indígenas, Meio Ambiente, Política
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Vindos de todas as regiões do país, cerca de 6 mil indígenas, de mais de 170 povos, protestaram contra a tese do marco temporal em Brasília, em agosto de 2021 | (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado/CC 2.0)

Depois de 21 anos de ditadura militar, onde direitos indígenas foram violados [2], o Brasil entrou para sua fase democrática com uma nova Constituição em 1988, que reconhece em seu artigo 231 [3] o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e atribui à União o dever de demarcar, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Depois de 33 anos, porém, mais de 170 povos indígenas brasileiros ocuparam Brasília em agosto de 2021 em uma manifestação considerada a maior pós-constituinte [4], para protestar contra uma tese que está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal [5], a Suprema Corte brasileira, e que pode mudar o futuro dos territórios indígenas no país: o marco temporal.

O julgamento, que teve apenas dois votos proferidos até o momento, voltou a ser suspenso no dia 21 de setembro depois que um dos ministros, Alexandre de Moraes, pediu mais tempo [6] para analisar a questão. Até agora, o placar é de um voto a favor e um contrário à tese. Não há data fixada para retomada.

Caso a tese seja aceita, ela abre precedentes para o entendimento de que apenas terras que estavam ocupadas por indígenas antes de 05 de outubro de 1988, dia em que este direito foi consagrado na Carta Magna do país, poderão ser demarcadas e reconhecidas como tal no Brasil, ignorando o teor originário desta garantia. 

Segundo o portal de notícias G1 [5], isso significa que:

…indígenas poderão ser expulsos de terras ocupadas por eles, caso não se comprove que estivessem lá antes de 1988 e sem que se considerem os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem. Processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastam por anos, poderão ser suspensos.

Mobilização indígena é considerada a maior de povos originários pós-constituinte. | Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado/CC 2.0

A tese chegou à mais alta corte do país depois de a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pela política indigenista no Brasil, apresentar um recurso junto ao Supremo questionando o entendimento atual sobre o tema [7] em cima da reivindicação de indígenas por um território no estado de Santa Catarina, na região Sul, onde vivem pessoas das etnias xokleng, guarani e kaingang.

Duas decisões judiciais anteriores reconheceram o marco temporal e foram contra o pedido dos indígenas.

O presidente Jair Bolsonaro, que tem apoio entre ruralistas [8], já se manifestou a favor da fixação da tese do marco temporal, chegando a afirmar que o contrário poderia significar o fim do agronegócio [9] brasileiro. Em 2018, recém-eleito, ele declarou em um programa de televisão [10] que, no que dependesse dele, o Brasil não teria mais demarcações de terras indígenas.

A fala da Advocacia Geral da União [11], em manifestação no Supremo Tribunal, também foi em defesa da tese e de que a decisão final caberia ao Congresso. Um projeto de lei [12] apresentado em 2007 propõe que a atribuição pela demarcação de terras indígenas seja transferida do poder Executivo [13], como é atualmente, para o Legislativo.

Para acompanhar o início do julgamento que poderia definir o futuro dos territórios indígenas brasileiros, seis mil lideranças de todo o país viajaram até a capital federal, Brasília. [14]O acampamento, que encheu de barracas a área diante do Congresso Nacional e teve cantos de protesto, foi batizado “Luta Pela Vida”.

A manifestação começou com a previsão de durar cinco dias, entre 23 e 28 de agosto, mas foi prolongada [15]em virtude do adiamento do julgamento [16]

Até agosto de 2021, mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas estavam em aberto no país [5], e poderiam ser impactados pela tese, como explica Marcos Sabaru, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que conversou com o Global Voices. 

Os processos em andamento seriam suspensos. Mas honestamente? Esta não é nem a maior ameaça que o projeto representa aos indígenas. A tese abre margem para que territórios já demarcados tenham seus processos revistos, podendo culminar inclusive na expulsão de povos das terras que ocupam hoje caso não consigam comprovar que estavam lá desde antes de 1988.

A Funai, fundação responsável pelas demarcações [21], passou de crítica à tese a defensora do marco temporal na gestão Bolsonaro, como mostra o jornal O Estado de São Paulo [22].

O atual presidente, Marcelo Augusto Xavier da Silva, em pouco mais de dois anos de gestão, já exonerou funcionários [23] responsáveis pela demarcação de terras indígenas, endossou teses [24] em defesa dos interesses ruralistas (pessoas ligadas ao agronegócio) e pediu à polícia que investigasse [25] representantes da Apib.

Sabaru ressalta sobre a visão da Apib sobre a questão:

A devastação na floresta avança por várias frentes e os povos indígenas são os verdadeiros guardiões dela. Nesse sentido, demarcar terras indígenas representa uma ameaça para muita gente: garimpeiros, pecuaristas, latifundiários, gente que quer fazer dinheiro na floresta sem o mínimo de cuidado com a preservação da nossa biodiversidade. Apesar de o Marco Temporal considerar que só é terra indígena o espaço ocupado antes de 05 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição, o Brasil inteiro é terra indígena.

A discussão acontece ainda no momento em que a Amazônia atingiu a maior área desmatada nos últimos dez anos, equivalente a nove vezes o território da cidade do Rio de Janeiro, segundo relatório do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônica), noticiado pelo G1 [26].

Em 2018, um relatório publicado pela organização WWF [27] apontou que a Amazônia perdeu 20% da sua formação original desde 1970 e que a pecuária e as plantações de soja e palma estão entre os principais propulsores do desmatamento na região.

Uma reportagem do jornal Folha de São Paulo [28], de agosto de 2021, ressalta que “as terras indígenas historicamente concentram as menores taxas de derrubada da floresta” e são “consideradas ferramentas fundamentais para a preservação da floresta”, porém sofreram no último ano “com avanço de atividades ilegais —como o próprio corte raso da floresta, o garimpo e a extração de madeira”.

As afirmações têm por base uma análise realizada pelo Greenpeace, com dados Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), através do sistema Deter. A reportagem diz ainda:

O Greenpeace analisou os dados do Deter específicos sobre terras indígenas nos últimos cinco anos e observou que os números de atividades ilegais nessas áreas desde o início da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) foram bem superiores aos detectados antes de o governo começar (em janeiro de 2019). Também houve uma piora nos últimos meses.

Para Marcos Sabaru, há uma relação entre a devastação da floresta e, por consequência, a eventual fixação de um marco temporal:

Os povos originários lidam desde 1500 [ano da chegada dos portugueses ao Brasil] com a subrepresentação dos seus interesses no debate público, e isso vai desde a liberdade religiosa, atacada por fanáticos que tentam nos catequizar, até os ruralistas, que avançam sobre as nossas terras para investir em monoculturas que atendem apenas aos interesses econômicos deles. É preciso que as pessoas saibam que o consumo e exportação destes itens nos custa caro, porque temos nossos direitos violados para atender uma demanda que não é nossa.