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Na Grande São Paulo, quase 900 pessoas foram resgatadas do trabalho análogo à escravidão em 10 anos

Categorias: Mídia Cidadã

Mulheres imigrantes estão entre as resgatadas de confecções que promoviam trabalho análogo à escravidão | Imagem: Magno Borges/Agência Mural

Esse texto foi escrito por Patrícia Vilas Boas, publicado originalmente no site da Agência Mural [1], em maio de 2021. O artigo é reproduzido aqui em acordo de parceria com o Global Voices, com algumas alterações.

Poucos dias antes do Governo de São Paulo decretar a quarentena [2] no estado por causa da pandemia de Covid-19, há pouco mais de um ano, uma equipe de fiscalização do MPT (Ministério Público do Trabalho) tocou a campainha de um sobrado numa rua residencial da Cidade Líder [3], na periferia de São Paulo [4], a maior cidade do Brasil.

Embora a fachada não revelasse a atividade, dentro daquela casa operava uma oficina de tecelagem. 

No local foram encontrados 10 imigrantes peruanos, incluindo um menor de idade, que trabalhavam em condições degradantes: jornadas de até 14 horas por dia e dívidas com o patrão que eram descontadas diretamente dos seus rendimentos. 

Esses elementos caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, segundo o Código Penal [5] brasileiro. A história, contudo, não é uma exceção. Sua localização também não.

A zona leste da capital é a região da Grande São Paulo [6] com mais casos de trabalho análogo à escravidão nos últimos dez anos, segundo dados do Ministério da Economia obtidos pela Agência Mural via Lei de Acesso à Informação [7]

Os dados mostram que o trabalho em condições de escravidão não são uma característica apenas do interior do país e está marcado na principal metrópole do país. Ao todo, 898 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados desde 2010 na região metropolitana de São Paulo.

A maioria eram estrangeiros, sobretudo bolivianos e peruanos, que vieram para o Brasil em busca de uma melhor condição de vida. Vulneráveis com a situação financeira, sofreram exploração que vão desde a falta de condição de higiene no espaço de trabalho a longas jornadas e risco de acidentes.

A maior parte trabalhava na costura. Sete em cada dez empresas fiscalizadas eram do setor de confecções. A maior operação, contudo, foi em 2013, quando 111 profissionais das obras do Aeroporto de Guarulhos foram resgatados em uma obra da empreiteira brasileira OAS [8]. Na época, a empresa negou ter responsabilidade sobre a situação. 

Trabalhadora resgatada em operação de 2013 | Imagem: Reprodução/Relatório de Fiscalização do Ministério Público do Trabalho/Usada com permissão

Até março de 2021, foram registradas 16 denúncias deste teor. Uma média de 5 por mês.

De acordo com dados da SIT (Subsecretaria da Inspeção do Trabalho) [9], mais de 55 mil trabalhadores foram encontrados em situação análoga à escravidão em todo o país desde o início da contagem, em 1995. Destes, 1.930 no estado de São Paulo. O Pará, na região norte, lidera a série histórica com 13 mil resgatados, seguido dos estados de Minas Gerais (7 mil), Goiás (4,1 mil) e Tocantins (3,4 mil). 

No caso da oficina em Cidade Líder, os resgatados residiam no local de trabalho e as instalações sanitárias não dispunham de itens básicos como material para limpeza e papel higiênico, segundo relatório do MPT.

Não havia local adequado para que os trabalhadores fizessem refeições com conforto e higiene, as polias [peças] das máquinas de costura estavam desprotegidas, causando risco de acidentes graves que poderiam levar até a amputação. As ligações elétricas eram improvisadas.

Além disso, 9 dos 10 imigrantes não estavam com os documentos regularizados no país. Eles trabalhavam em média 12 horas por dia, podendo chegar a até 14 horas, não tinham registro em carteira, nem direito a férias ou décimo terceiro.

Depois da fiscalização, o MPT determinou que a empresa cumprisse com uma série de providências regulatórias, entre elas: a emissão de documentos dos imigrantes irregulares, regularização trabalhista, adequação da unidade fabril, que foi interditada, e o afastamento dos trabalhadores.

Trabalho em confecções clandestinas concentram maioria dos trabalhadores resgatados | Foto: Patrícia Vilas Boas/Agência Mural

Carlos*, 26, foi um dos resgatados. Peruano, ele conta que veio ao Brasil para conhecer São Paulo e começou a trabalhar com costura para pagar sua estadia. Ele só conseguiu emitir seus documentos 5 meses após sua chegada à Cidade Líder. 

“No início, não estava acostumado a trabalhar assim, muitas horas, e isso foi o que me atingiu bastante”, conta.

Carlos recebia R$ 0,80 centavos (cerca de US$ 0,15) por peça costurada e só tinha descanso aos domingos. Após ter sido resgatado, decidiu voltar ao país de origem. Apesar do contexto, tem vontade de tentar novamente a vida no Brasil, e diz que no Peru a situação está bem difícil.

A boliviana Laura*, 38, decidiu seguir no Brasil. Ela vive na Cidade Patriarca, na zona leste de São Paulo, há pelo menos 15 anos. Trabalha com costura desde que chegou e, em 2013, foi resgatada por meio de uma operação de fiscalização do MPT.

Assim como Carlos, chegou ao Brasil por intermédio de uma pessoa próxima, um parente que já morava no país. “Todos que chegam da Bolívia, chegam para trabalhar [com costura] mesmo, porque aqui não tem mais outra coisa. Chega e aprende a trabalhar na máquina de costura.”

Hoje mãe de dois filhos, ela conta que, na época da operação, seu patrão pediu que dissesse que tinha somente dois anos de trabalho, quando na verdade já tinha seis. Além disso, ela era pressionada a não sair da oficina até terminar todo o trabalho. “Esse tempo era muito difícil. Trabalhamos muito e [a empresa] não pagou bem.”

“Sempre encontramos pessoas jovens trabalhando nas confecções”, diz Grécia Delgado, 30, líder comunitária e assistente-social do Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante) [10], que faz visitas às oficinas de costura em São Paulo. “Nenhum desses trabalhadores escolheram estar nessa situação.”

Filha de imigrantes bolivianos, Grécia explica que a organização procura levar informação a imigrantes que possam estar em situação de vulnerabilidade social nas oficinas de costura.  

NA COSTURA

De acordo com dados de 2019 do Sinditêxtil, o estado de São Paulo possui cerca de 450 mil trabalhadores direta ou indiretamente ocupados no setor têxtil, 30% do total do país, que é de 1,5 milhão. O maior polo de confecção no estado é a capital paulista.

Nos últimos dez anos, houve uma explosão no número de pequenas confecções na cidade. Em 2010, havia 979 microempreendedores individuais na área de confecção de roupas e acessórios na capital, segundo dados da Receita Federal. Em 2020, eram 34.377, ou seja, 35 vezes mais.

Dariele Santos, 29, é co-fundadora do Instituto Alinha [16], que trabalha na região de São Paulo e Grande São Paulo assessorando empreendedores de pequenas oficinas a regularizarem seus negócios. 

O instituto também conecta marcas às oficinas, com o intuito de garantir relações justas na cadeia produtiva da moda.

Dariele conta que o trabalho análogo à escravidão dentro da cadeia da moda está mais ligado a um sistema de terceirizações, ou até quarteirizações — quando há intermediários entre os trabalhadores e a empresa — e precariedades do que propriamente a uma visão histórica que se tem do termo.

“Quando a gente pensa em condições análogas à escravidão, a gente tende a levar para a nossa antiga visão, o antigo formato, um senhor que escraviza ali as pessoas que estão trancafiadas, acorrentadas”, diz. 

“Quando a gente fala de escravidão moderna, é muito menos uma figura que escraviza e mais um sistema que escraviza por tantas intermediações e por um valor tão baixo pago por peça.”

Ela comenta a necessidade de se costurar muitas peças para atingir um valor mínimo de subsistência e o tempo que isso leva.

“Trabalhando com ‘fast fashion’ (moda rápida) você acaba trabalhando com custos mais [acessíveis], trabalha, às vezes, por centavos. Não digo só de pequenas empresas, digo também de grandes empresas”, complementa Grécia, do Cami.

Segundo o Índice de Transparência da Moda [17], que analisou 40 grandes marcas e varejistas do mercado brasileiro em 2020, metade das marcas não conseguiu alcançar mais do que 10% da pontuação máxima, que é de 250, sobre quesitos como condições de trabalho, trabalho escravo contemporâneo, salário justo, liberdade de associação, descarte de resíduos têxteis, reciclagem e circularidade.

“A gente precisa criar espaço para uma indústria da moda mais ética, sustentável, limpa, justa, segura e transparente para todo mundo”, afirma Eloisa Artuso, 38, diretora educacional no Fashion Revolution, organização criadora do indicador.

Por outro lado, Angela Bozzon, 56, gerente do Programa ABVTEX (Associação Brasileira do Varejo Têxtil) [18], que já realizou mais de 36 mil auditorias em confecções e seus subcontratados desde 2010, diz que “a sociedade e os consumidores estão cada vez mais conectados com as questões de responsabilidade social e sustentabilidade ambiental”.

O trabalho análogo à escravidão é tipificado como crime no Código Penal Brasileiro. O artigo 149 prevê pena de dois a oito anos de prisão e multa a quem promover “condição análoga à de escravo”, dentre elas submeter a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restringindo a locomoção por conta de dívida contraída com o empregador.