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Contos sombrios do Uruguai: como mães e avós buscam por vítimas da Guerra Fria

Categorias: América Latina, Uruguai, Direitos Humanos, História, Literatura, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero

Captura de tela de Mariana Zaffaroni e sua avó, Ester Gatti de Islas, no Youtube [1]/Canal 5 Uruguai.

Um novo livro da autora uruguaia Tessa Bridal investiga as histórias de mulheres que buscam por entes queridos, desaparecidos durante um período doloroso no país: a ditadura militar [2], de 1972 a 1985.

Quando Tessa Bridal se mudou para os Estados Unidos por motivos pessoais, no fim da década de 1960, ela sentiu que o Uruguai entrava em um período turbulento. Até mesmo pessoas como ela, que não estavam envolvidas em política ou ativismo, percebiam a mudança política. Porém Tessa, que tinha 20 anos quando deixou o Uruguai, não poderia prever a crueldade da iminente ditadura, que acarretou prisões, torturas e desaparecimentos de seus próprios cidadãos.

“Quando voltei para visitar o país, percebi que tudo estava piorando. As pessoas tinham cada vez mais medo”, Tessa contou à Global Voices, em entrevista por telefone. “Havia mais gente sendo presa arbitrariamente”.

O livro “The Dark Side of Memory” (“O lado sombrio da memória”, em tradução livre), conta a história da busca incessante de mães e avós uruguaias por seus familiares desaparecidos. Foto: cortesia de Tessa Bridal.

Anos depois, ela voltou àquele período através de seu livro mais recente, The Dark Side of Memory: Uruguay’s Disappeared Children and the Families that Never Stopped Searching [3], (‘O lado sombrio da memória: as crianças desaparecidas do Uruguai e as famílias que nunca cessaram sua busca’, em tradução livre), uma narrativa que conta a história de várias famílias que procuram por familiares desaparecidos, e  tentam entender o passado sombrio do país. As mulheres, especialmente, têm lutado incessantemente para reunificar suas famílias.  

Conforme os movimentos esquerdistas começaram a crescer na América Latina nos anos 1960, a repressão contrária também cresceu. O movimento de guerrilha conhecido como Tupamaros [4]emergiu no Uruguai e, por fim, uma junta militar tomou o controle do país para reprimir as guerrilhas.

Nos países vizinhos como Argentina e Brasil, e em outras regiões, surgiram movimentos similares, que foram suprimidos por governos militares, em um período hoje chamado de as Guerras Sujas da América Latina. Os Estados Unidos ajudaram nos planos destes governos e os treinaram para torturar e sumir com esquerdistas, no que atualmente conhecemos como Operação Condor [5].

Cerca de 220 uruguaios desapareceram naquela época, segundo uma comissão da verdade [6] de 2003. A maioria dos casos ocorreu na Argentina, onde o total de desaparecimentos é estimado em 30 mil. De acordo com informações, cerca de 30 desaparecimentos foram denunciados no Uruguai.

Em números totais, o Uruguai teve menos desaparecimentos do que outros países da América Latina. Mesmo assim, a repressão gerou um efeito aterrorizante no pequeno país, que tinha uma população de 2,8 milhões [7] no começo da ditadura militar. “No Uruguai, temos um jargão: ‘Somos poucos e nos conhecemos'”, conta Tessa.

Dois dos desaparecidos foram Emilia Islas Gatti de Zaffaroni e seu marido, Jorge Zaffaroni Castilla, ativistas proeminentes, que acreditavam que o Tupamaros poderiam livrar o Uruguai da pobreza e do sofrimento. Eles partiram para Buenos Aires ao se tornarem “alvos” no Uruguai, devido à atividade política. Os dois foram sequestrados [8] na Argentina, em 1976, por uma coalizão [9] de forças argentinas e uruguaias, e levados a um centro de tortura em Buenos Aires. A filha de 18 meses do casal, Mariana, foi levada com eles. Emilia estava, na época, grávida de três meses do segundo filho.

María Emilia Islas Gatti desapareceu em 1976. Fonte: Wikimedia [10](CC BY-SA 4.0) [11] 

Após o desaparecimento de Emilia, sua mãe, Ester Gatti de Islas, se uniu a um grupo que lutava pela verdade e justiça pelos familiares desaparecidos, conhecido como Mães e Familiares de Uruguaios Detidos Desaparecidos. Ester precisava saber o que havia acontecido com sua filha e neta, e Tessa Bridal relata essa incansável busca em seu livro.

Muitas das crianças desaparecidas foram adotadas por famílias de militares. Em alguns casos, pelas próprias pessoas envolvidas no desaparecimento dos pais. Uma comissão da verdade compilou 40 casos de crianças uruguaias que desapareceram durante a Guerra Suja. Na Argentina, estima-se que 500 crianças [12] foram separadas de seus pais quando foram raptados pelos militares.

Quando Tessa entrou em contato com Ester, ela estava desgastada pelas décadas de procura. “Ester foi uma guerreira por muito tempo”, conta a autora. Seus anos de ativismo compensaram. Em 1993, um teste de DNA identificou sua neta Mariana. Ela havia sido criada por uma família militar que poderia estar envolvida no desaparecimento de seus pais.

O caso se tornou emblemático no Uruguai, mostrando o impacto do terror da Guerra Fria nas famílias, e como a perseverança pode, em algum momento, desvendar a verdade e reunir familiares. Essas reunificações, no entanto, podem despertar emoções conflitantes, e Tessa explora as nuances destas experiências em seu livro.

#MaioMesdaMemoria
Devemos lembrar à juventude, e aos não tão jovens, que há coisas que jamais devem ser esquecidas. Pois no fim corremos o risco de ter fascistas no governo defendendo genocidas. Ela é Mariana Zaffaroni Islas, sequestrada em 1976. Encontrada em 1993.

A luta de Ester representa a luta de tantas mulheres latino-americanas, parte da razão pela qual Tessa estava determinada a contar esta história. É esperado que as mulheres lidem com todos os assuntos de família. Quando as suas famílias são ameaçadas, são as mulheres que partem para a ação.

A escritora Tessa Bridal lutou por duas décadas para essa história ser publicada. Foto cortesia de Tessa Bridal.

“Me senti atraída por elas porque, em primeiro lugar, eram mulheres. E eram tão determinadas e tão corajosas”, explica Tessa. “Muitas vezes, seguir o rastro do que havia acontecido com seus filhos adultos que tinham desaparecido nem sempre era a coisa mais segura de se fazer”.

Após o fim da ditadura militar no Uruguai e a transição para a democracia, alguns oficiais militares [16] que cometeram abuso de direitos humanos foram levados à justiça. Até hoje, muitos dos autores destes crimes estão em liberdade. Falar abertamente sobre estes abusos e buscar a verdade continua sendo perigoso. Em 2016, o laboratório do Grupo de Investigação de Arqueologia Forense no Uruguai, que investiga desaparecimentos, foi invadido [17]. As Mães e Familiares de Uruguaios Detidos Desaparecidos dizem que seus oponentes lançaram “ataques à moral de nossos membros [18]” e campanhas [19] para descreditá-los. 

Autoridades dos Estados Unidos que desenvolveram e participaram da Operação Condor também não encontraram justiça. Quando Tessa começou a pesquisa, por volta da data do atentado de 11 de setembro de 2001, mencionar o papel do governo norte-americano nos abusos de direitos humanos na América Latina era um tabu, dado que o patriotismo se tornou exacerbado após os ataques às Torres Gêmeas. Os editores disseram que aquele não era o momento para ela publicar um livro que criticava governo dos Estados Unidos. Era quase considerado como uma “traição” aos EUA, relata Tessa, que mora em Minnesota.

Embora com o adiamento de seus planos de publicação por duas décadas, Tessa nunca negligenciou as histórias. “Eu nunca poderia esquecer este livro porque me foram confiadas histórias com muito significado”, ela explica. No Uruguai, as histórias de Ester e de sua neta, e tantas outras, têm ajudado a esclarecer os abusos do passado e a garantir que não sejam esquecidas.

Assim como as mulheres protagonistas de seu livro, Tessa foi persistente. “The Dark Side of Memory [3]” será lançado em 26 de outubro de 2021. Apesar do tema sombrio, ela espera que os leitores fiquem com uma sensação de otimismo e de inspiração.

“A coragem delas é notável. E a persistência, por quantos anos elas prosseguiram lutando, lutando e lutando”, ela diz. “Para mim, elas são um exemplo de coragem”.