- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Alta-costura COVID: Sonja Dumas, criativa de Trinidade e Tobago, responde à pandemia com vestido otimista e de significado profundo

Categorias: Caribe, Trindade e Tobago, Arte e Cultura, Fotografia, Humor, Ideias, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, COVID-19
[1]

A criativa Sonja Dumas, de Trinidade e Tobago, com seu vestido feito de sacolas de compras. Foto [1] por Michele Jorsling [2], cortesia de Dumas, uso permitido.

Em resposta à pandemia de COVID-19 [3], Trinidade e Tobago [4] passou por determinações de confinamento, toques de recolher e restrições [5] de reuniões, com limite para o funcionamento de atividades não essenciais. Supermercados e mercearias, entretanto, foram mantidos abertos, e a compra de alimentos foi o motivo genuíno para as pessoas saírem de casa. Porém, com as praias ainda fechadas, a claustrofobia vem afligindo muitos internautas. Uma delas, a dançarina, coreógrafa e cineasta Sonja Dumas [6], decidiu combater a melancolia da COVID com criatividade.

Em um post no Facebook [7] em 27 de setembro, Dumas postou algumas fotos profissionais dela mesma, usando um vestido colorido, feito inteiramente de sacolas reutilizáveis de compras, estampado com o logotipo de uma das maiores redes de supermercados do Caribe, a Massy Stores [8], explicando:

Who says I doh dress up and go on hot dates in de pandemic?

I was thinking about this situation we're all in and where to find the humour in it. […] I decided to go haute couture (not). I'd been planning it since April, when we went into the second major ‘lockdown’. Everyone's style was seriously cramped – again. But safety first. Grocery and pharmacy second. In my lethargy and my feelings of being overwhelmed by this whole world crisis, it took me months to even draw the design, far less get the dress made. But it happened.

Quem disse que eu não me arrumo e vou a encontros quentes na pandemia? Estava pensando sobre a situação em que nos encontramos e onde achar humor. […] decidi fazer alta-costura (só que não). Planejei isso desde abril, quando entramos no segundo grande ‘lockdown’. O estilo de todo mundo ficou limitado demais, mais uma vez. Mas, segurança antes de tudo. Mercados e farmácias em segundo lugar. Na minha letargia e sensação de estar sobrecarregada por toda essa crise mundial, levei meses só para fazer o desenho, quem dirá terminar o vestido. Mas aconteceu.

A postagem tocou os usuários das redes sociais, que a consideraram renovadora, imaginativa, uma pausa bem-vinda da discussão sobre os índices de infecção e a hesitação em se vacinar. Entretanto, suspeitei que, como muitas empreitadas criativas, a exibição do vestido de Dumas tinha múltiplos sentidos. Quis descobrir mais sobre isso. Por telefone e e-mail, ela deu uma percepção mais profunda sobre o que a inspirou para realizar o projeto e a mensagem que ela espera transmitir.

[9]

Sonja Dumas, pronta para seu “encontro quente” no mercado. Foto [9] por Michele Jorsling [2] cortesia de Dumas, uso permitido.

Janine Mendes-Franco (JMF): Qual foi a origem de sua ideia para um vestido de sacolas de compras? O que a levou a fazer um ensaio fotográfico? 

Sonja Dumas (SD): When Trinidad and Tobago went into its second major lockdown back in April, it was a very necessary move on the part of the government, but a very tense moment for the population. The number of daily COVID deaths had increased significantly and the virus was spreading, as well as the fear of it. It felt as if we were back to Square One, or maybe even negative Square One. As the lockdown persisted, I grew increasingly frustrated with the isolation and the inability to do what I considered ‘normal’. As a person in the creative sector, it was doubly frustrating because much of my income also dried up. My life outside of home and temporary work spaces was centred around visits to the grocery, the gas station and the pharmacy. Those became what I call my ‘hot dates’ – the opportunity to be social – if only to mutter ‘Good morning’ or ‘Good evening’ to the security guard stationed at the door to ensure that I sanitised and took my temperature before entering the building.

Quando Trindade e Tobago entrou no segundo grande lockdown, em abril passado, foi uma decisão muito necessária por parte do governo, mas um momento muito tenso para a população. O número de mortes por COVID havia aumentado bastante, o vírus estava se espalhando, assim como o medo dele. Parecia que tínhamos voltado à estaca zero, ou até antes disso. Com o lockdown persistente, fiquei cada vez mais frustrada com o isolamento e com a incapacidade de fazer o que eu considerava ‘normal’. Trabalhando na área criativa, foi uma frustração em dobro, boa parte da minha renda diminuiu. Minha vida fora de casa se resumiu a idas ao mercado, ao posto de gasolina e à farmácia. Estas foram as oportunidades que chamei de ‘encontros quentes’, a oportunidade de socializar, nem que fosse para dizer ‘bom dia’ ou ‘boa tarde’ ao segurança na porta, e garantir que eu higienizasse as mãos e medisse a temperatura antes de entrar no estabelecimento.

JMF: Fale sobre o processo criativo. Você mesma fez o desenho e costurou o vestido? O que envolveu o processo, quanto tempo levou, e como a dimensão do projeto se expandiu?

SD: I designed the dress in my head first. I knew exactly what I wanted it to look like but took months to actually draw it; it wasn’t really a priority. Strangely, I was even more busy with Zoom meetings and backlogs, even though there was less paying work. The dress continued to be just a cerebral protest about what my life had come to. But I knew other people were suffering from the same isolation, uncertainty, sadness and general feeling of being overwhelmed, and I thought that the dress might help to cheer us all up.

I finally made a couple of sketches back in July or August, and then took it to a seamstress who does many of the dance costumes that I design. She’s a brilliant craftsperson, as well as an amazing interpreter of my designs, and she knows how far out of the box I often think. I placed the sketches and the Massy bags on her sewing table. There were 7 big ones and 4 small ones (although not all were eventually used for the dress). She didn’t flinch. All she said was, ‘Costume?’ I grinned and said, ‘Yes’. We spoke for five or ten minutes, and that was that. A week later, I returned to collect the quirky evening dress that I planned to post on social media as a small act of humorous protest and liberation.

SD: Primeiro desenhei o vestido mentalmente. Eu sabia exatamente como queria que ficasse, mas levou meses até eu, de fato, desenhá-lo. Não era realmente uma prioridade. O estranho é que eu estava ainda mais ocupada com reuniões e atrasos no Zoom, mesmo havendo menos trabalho remunerado. O vestido continuou sendo apenas um protesto mental sobre o que minha vida havia se tornado. Eu sabia, porém, que outras pessoas também estavam sofrendo com o isolamento, a incerteza, a tristeza e a sensação de estarem sobrecarregadas. Pensei que o vestido poderia trazer alegria para todos nós.

Finalmente fiz alguns esboços em julho, ou agosto, e os levei para uma costureira que faz muitos dos vestidos de dança que eu desenho. Ela é uma artesã genial, também sabe interpretar meus designs muito bem e sabe o quanto eu penso ‘fora da caixa’. Coloquei os desenhos e as sacolas de compras sobre sua mesa de costura. Eram 7 sacolas grandes e 4 pequenas (mas nem todas acabaram sendo usadas no vestido). Ela não hesitou, apenas perguntou: ‘Uma fantasia?’. Dei um sorrisinho e respondi, ‘Sim’. Conversamos por cinco ou dez minutos e foi só isso. Uma semana depois, voltei para buscar o vestido de festa excêntrico, que planejei postar nas redes sociais como um pequeno ato humorístico de protesto e libertação.

JMF: Então, foi sobre fazer uma moda reconfortante em meio a tempos difíceis, ou havia um subtexto mais profundo?

SD: I would say it was more of an exercise in preserving mental health and wellness which would hopefully make others feel good too. I revel in the process of conceiving an idea, birthing it with labour pains and all, and bringing it to fruition. The care, the love, and the dedication in that is something that energises me and makes me feel as if I’ve reached the highest form of my human and spiritual self. One needs that – especially in times of great challenges.

SD: Diria que foi mais um exercício para preservar a saúde mental e o bem-estar, e que, com sorte, faria outras pessoas também se sentirem bem. Eu me divirto no processo de criação da ideia, dar à luz ao projeto com todas as dores do parto, e trazê-lo à fruição. O cuidado, o amor e a dedicação a isso é algo que me dá energia e me faz sentir como se atingisse meu auge como ser humano e ser espiritual. Uma pessoa precisa disso, ainda mais em tempos tão desafiadores.

JMP: As sacolas de compras, coloridas e brilhantes, são como um símbolo dessa pandemia. Alimentos são essenciais, mas se tornaram mais caros. Você está falando sobre equidade social, segurança alimentar, ou até sobre o gerenciamento do meio ambiente com a reutilização das sacolas? São questões que deveriam estar em nossas mentes?

SD: The colourful nature of the bags was definitely something that I considered, but it was more about the ubiquitous nature of the bag and that fact that it symbolised access to food and, in a pandemic, access to very little other activity. So the dress is definitely a statement about our pandemic situation. I don’t think that I would have thought about making it if we weren’t facing this cataclysmic shift in lifestyle, access and human relations.

But food security is definitely one of the things we should be thinking about. While I’m grateful that there’s a way for most of us in Trinidad and Tobago to purchase food when we want it, I’ve been appalled at some of the prices that I’ve seen in the past few months. I know that things are tight for everyone in the wholesale-retail chain, but food shouldn’t be made more expensive in these times. There still are too many people who are struggling to put food on their families’ tables every day. I’m blessed that I don’t fall into that category, and I count my blessings every day, but I know that the situation could change unexpectedly for me or anyone else on this fragile planet.

SD: O colorido das sacolas foi algo que considerei, sem dúvida. Mas, acima disso, elas estarem em todos os lugares, simbolizando o acesso a alimentos e, em uma pandemia, ao pouco de atividade que pode ser feita. Eu não penso que teria elaborado esse projeto se não estivéssemos enfrentando essa mudança cataclísmica de estilo de vida, de acesso e de relações humanas.

Segurança alimentar é algo sobre o qual deveríamos estar pensando, com certeza. Se por um lado sou grata que exista um jeito para a maioria de nós em Trinidade e Tobago comprarmos alimentos quando quisermos, fiquei horrorizada com alguns dos preços que observei nos últimos meses. Sei que a situação está apertada para todos na cadeia de atacado e varejo, mas alimentos não deveriam estar mais caros nestes tempos. Ainda tem muita gente com dificuldade de colocar comida na mesa da família diariamente. Sei que a situação pode mudar de uma hora para outra para mim, ou para qualquer outra pessoa, nesse planeta frágil.

[10]

Sonja Dumas faz uma pose com o seu vestido feito de sacolas reutilizáveis de compras. Foto [10] por Michelle Jorsling [2], cortesia de Dumas, uso permitido.

JMF: Como o ensaio fotográfico entrou para o projeto?

SD: I was initially planning just to do a series of selfies and post it on Facebook and Instagram, but then a random opportunity arose for me to get the shoot done at the studio of the incredibly talented Michele Jorsling [2]. I had to do another photo shoot there […] and I asked if she could spare some time to take just a couple of shots of me in the dress [afterwards]. She obliged, and that’s how this amazing shoot happened.

SD: No início, planejei fazer uma série de selfies para postar no Facebook e no Instagram, mas uma oportunidade aleatória surgiu para eu realizar o ensaio no estúdio da supertalentosa Michele Jorsling [2]. Eu precisava fazer um outro ensaio fotográfico lá […] e perguntei se ela poderia separar um tempinho, só para tirar algumas fotos minhas com o vestido [ao final]. Ela ficou agradecida, e foi assim que o ensaio incrível aconteceu.

 JMF: O projeto tem uma aura bem caribenha, evoca as tradições de dança da região com a saia larga do vestido, como a de uma dançarina Bélé [11]. E o seu jeito atrevido de posar nas fotos reflete esse conceito. O design é também uma homenagem ao espírito carnavalesco de Trinidade e Tobago: a ideia de se enfeitar e se mascarar, da qual a pandemia nos privou.

SD: Yes, I was definitely conjuring up the coquettishness of some of our African-Caribbean dances, which tease and also challenge through movement, gesture and look. I thoroughly enjoy using those devices; it’s part of playing the masquerade of the message. And the design of the skirt is certainly a nod to the voluminous, patterned bélé over-skirt.

This dress is definitely along that performative ‘dance and mas’ spectrum. I hope that it is considered a mas! Because isn’t mas supposed to delight, provoke and intrigue? Earlier this week, a cutting-edge traditional Carnival costume designer reached out to me to talk about possibilities of a digital collaboration, using recycled materials, which is right up my alley. You just never know where your little rant in your little dress will lead you.

Sim, com certeza tentei invocar o lado sedutor de algumas das nossas danças afro-caribenhas, que intrigam e provocam com movimentos, gestos e olhares. Gosto muito de usar estes artifícios, é parte da atuação enigmática do recado. E o desenho da saia é, certamente, um aceno à sobressaia Bélé, estampada e volumosa.

Este vestido se enquadra, sem dúvida, no espectro performático ‘dança e baile de máscaras’. Espero que seja considerado um ‘baile de máscaras'! Porque um baile mascarado não deveria encantar, provocar e intrigar? Nesta semana, um designer de ponta, de fantasias de Carnaval, me contatou para conversar sobre a possibilidade para uma colaboração digital, usando materiais recicláveis, o que é bem a minha cara. Nunca se sabe onde uma pequena declaração em um simples vestido pode te levar.

JMF: Como você descreveria a essência da mulher caribenha através deste vestido?

SD: I’m using this word a lot these days, but ‘resilient’. It speaks of confronting one’s fears and conquering some of the anxiety, and of using humour to lift oneself up – as a woman, as a human. I’ve always thought of myself as an intense person with strong opinions and a sense of justice and fearlessness. […] I thought I had reached my zenith with all of that. But then, in the face of the pandemic, I’ve found a new font of mental and spiritual strength to cope with what has come my way in the last eighteen months. It speaks to a kind of self-reliance that the Caribbean woman knows she has, deep down inside. What’s different now is that in my isolation, I’ve had to time to think about how this new level of resiliency shapes my life, and what I’m going to do with it going forward. It’s scary and it’s beautiful at the same time.

SD: Ultimamente, tenho usado bastante essa palavra, mas ‘resiliente’. Que é sobre confrontarmos nossos medos e superarmos um pouco da ansiedade, e usar o humor para nos erguermos, como mulher, como humanos. Sempre me vi como uma pessoa intensa, com opiniões fortes e com um senso de justiça, destemida. […] achei que eu havia chegado ao meu auge com isso. Mas então, com a chegada da pandemia, encontrei uma nova fonte de força mental e espiritual para lidar com o que entrou na minha vida nos últimos 18 meses. É sobre uma certa autossuficiência que a mulher caribenha sabe que tem, no fundo de si mesma. O diferente agora é que, no meu isolamento, tive tempo de refletir sobre como esse novo nível de resiliência molda a minha vida, e o que farei com isso, daqui para a frente. É assustador e bonito ao mesmo tempo.

JMF: Essas imagens me mostram que existe beleza e mérito até nas coisas mais mundanas, se observarmos com a mentalidade correta. É este o segredo para atravessar essa pandemia? Pensamento crítico com uma pitada de humor?

SD: I think that's a really good way to look at it. But don’t forget the healing factor. As much as the dress might capture the attention of someone who sees it because of its unusual nature, and as much as it raises big world questions like the future of food security, there is a more personal intent behind it. I made it to cheer up myself and others at a depressing and challenging moment of our human history. It’s a suggestion of how we could craft our own healing—at least some of the time—with, as you say, mundane objects. So one major message is that you don’t have to look too far or spend too much to create something that lets you vent and makes you smile at the same time. Use the objects in your environment and heal yourself through your own creativity.

SD: Acredito que seja um ótimo jeito de abordar a questão. Não se esqueça do elemento de cura. Por mais que o vestido chame a atenção de alguém devido ao seu caráter incomum, por mais que traga à tona grandes questões mundiais, como o futuro da segurança alimentar, há um propósito mais pessoal por trás. Eu o produzi para animar a mim e aos outros, em um momento depressivo e desafiador da história humana. É uma sugestão de como podemos criar a nossa própria cura — ao menos em alguns momentos — com, digamos, objetos mundanos. Então, a mensagem mais ampla é a de que não é preciso olhar tão longe ou gastar tanto dinheiro para criar algo que permita fazer você espairecer e sorrir, simultaneamente. Utilize os objetos que estão ao seu redor e cure-se por meio da sua própria criatividade.