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Filme chinês “A Batalha do Lago Changjin” transforma a dolorosa história da Guerra da Coreia em vitória gloriosa

Categorias: América do Norte, Leste da Ásia, China, Coréia do Norte, Coréia do Sul, Estados Unidos, Arte e Cultura, Censorship, Filme, Guerra & Conflito, História, Liberdade de Expressão, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política
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Captura de tela do trailer oficial de “Batalha do Lago Changjin” no Youtube [2].

Recentemente, o ex-repórter investigativo Luo Changping foi preso [3] por ridicularizar o recém-lançado filme de propaganda “A Batalha do Lago Changjin [4]” (ou Reservatório Chosin), um drama de guerra sobre o Exército Voluntário Popular (People's Volunteer Army – PVA) durante a Guerra da Coreia (1950-53).

O longa foi lançado [5] como parte das comemorações do centésimo aniversário do Partido Comunista da China. Com um orçamento de produção de 200 milhões de dólares, o filme é codirigido pelos diretores premiados Chen Kaige [6], Tsui Hark [7] e Dante Lam [8] e é estrelado pelo célebre ator Wu Jing [9].

O lançamento foi no Dia Nacional da China, e a renda das bilheterias na China Continental ultrapassou 4 bilhões de yuans (600 milhões de dólares americanos) em menos de 10 dias. O filme conta a história do heroísmo altruísta dos soldados voluntários chineses para vencer dramaticamente o exército americano na batalha do Reservatório de Chosin.

A batalha do Reservatório de Chosin

A batalha aconteceu entre 27 de novembro e 13 de dezembro de 1950, um mês depois que o líder chinês Mao Tsé-Tung entrou oficialmente na Guerra da Coreia [10]. A guerra de três anos entre a Coreia do Norte, apoiada pelos soviéticos, e a Coreia do Sul, apoiada pelas Nações Unidas, começou após as forças militares norte-coreanas cruzarem a fronteira e entrarem na Coreia do Sul em 25 de junho de 1950.

Sob o slogan “resistir aos EUA para apoiar a Coreia” (抗美援朝), Mao ordenou o ataque na Coreia do Norte, do exército de libertação chinês às tropas das Nações Unidas, compostas principalmente pelas forças dos EUA, para impedir a unificação da Coreia sob forças capitalistas. Para evitar declarar guerra contra a ONU e os EUA, as tropas chinesas foram nomeadas “Exército Voluntário Popular”.

Cerca de 3 milhões de civis chineses e pessoal militar serviram na Guerra da Coreia.

Durante a guerra, 120.000 soldados chineses do nono Exército Voluntário Popular foram enviados ao campo de batalha no meio do inverno para atacar 30.000 soldados das Nações Unidas no Reservatório Chosin.

O exército voluntário chinês era tão pouco equipado que dezenas de milhares de soldados morreram congelados quando a temperatura no Reservatório Chosin chegou a menos 30 graus Celsius. Segundo relatórios oficiais chineses, o exército registrou 48.156 baixas durante o embate, com quase 29.000 mortes não vinculadas à batalha. Quanto às tropas da ONU, foram registradas 17.843 vidas perdidas, sendo 7.338 mortes devido ao clima brutalmente frio. Contudo, as tropas conseguiram bater em retirada e, no fim, evacuaram 98.100 refugiados e civis [11] que queriam escapar de um regime militar apoiado pelos soviéticos no nordeste da Coreia do Norte, uma região cercada pelo Exército Popular da Coreia [12] (Korean People's Army – KPA).

Controvérsia e crítica

A escolha da batalha como um filme de propaganda patriótico é controversa, porque a Guerra da Coreia foi um período muito doloroso para China e Coreia. Estima [10]-se que Coreia do Norte e a China perderam, cada uma, entre 200.000 e 400.00 soldados enquanto o exército sul-coreano perdeu 162.394 e o exército norte-americano perdeu 36.574 vidas. As forças aéreas da União Soviética perderam 335 aviões e 299 vidas.

A intervenção chinesa na Guerra da Coreia foi altamente controversa até recentemente, porque a guerra causou enormes perdas de ambos os lados. Mais de 3 milhões de civis coreanos morreram na guerra. Como apontado por Adam Ni em um site de análises políticas chinês, a batalha do Reservatório de Chosin foi considerada uma “falha com custo massivo”:

mesmo antes do término da batalha, já havia no Centro do Partido um documento intitulado “autocrítica do 9º Grupo Militar sobre a batalha na frente leste”, declarando que foi um fracasso de alto custo. Hoje, esse fracasso é celebrado.

No entanto, na China de hoje, refletir sobre a guerra pode ter consequências graves. O ex-repórter investigativo Luo Changping foi preso por “infringir a reputação e honra dos mártires nacionais” depois de ter escrito o seguinte comentário [14] nas redes sociais chinesas:

半個世紀之後國人少有反思這場戰爭的正義性,就像當年的沙雕連不會懷疑上峰的『英明決策』。

Depois de meio século, as pessoas neste país pouco refletem sobre a causa dessa guerra. A situação é como a das tropas congeladas da época, elas não questionaram a “grave decisão” vinda de cima.

Enquanto a maior parte dos comentários negativos sobre o filme e comentários críticos sobre a intervenção da China na Guerra da Coreia foram silenciados e censurados, a mensagem de Luo se espalhou pelas redes sociais. O internauta @fangshimin compartilhou duas interpretações ditas “pessoais” de blogueiras de vídeo sobre o filme para demostrar o esforço de propaganda das autoridades em defender um patriotismo “a sangue quente” (血性), o que significa um desejo de lutar pelo país:

Aqui vai o roteiro de propaganda de ‘Batalha do Lago Changjing’

É comum ver blogueiros pró-governo chinês compartilhando pontos de vista das autoridades. Um exemplo notável foi uma enxurrada de vídeos sobre a vida dos uigures em Xinjiang [17]. Jornalistas investigativos apontaram que a chamada experiência compartilhada por mais de mil uigures foi tirada de um roteiro idêntico, o que sugeria que os vídeos eram parte de uma campanha coordenada de influência. O internauta @fangshimin acreditava que as blogueiras estavam usando a mesma tática para discutir o filme patriótico – ambas diziam que tinham um avô que havia lutado na Batalha do Reservatório de Chosin e que a história mostra que é necessário suprimir a masculinidade afeminada e a cultura de fãs. O governo chinês recentemente lançou uma campanha de comunicação para abolir os “maricas” e a cultura de fãs [18]. Abaixo segue uma transcrição parcial do vídeo:

…我們現在的年輕人,只要多一點血性,多了解一點歴史,就不會去參拜靖國神社…我們現在口雖然能吃飽飯了,有肉吃的,但精神上還是竹很匱乏的,想想在戰場上的美軍吃著火雞,過著感恩節,而我們的戰士只能吃著冰凍的土豆填著肚子,這個就是我們1950年時候的年輕人,在那麼寒冷的環境裡面,裝備那麼落後的情況下,還創造了震驚世界的奇跡,只因為要保護我們的家園…我特別支持打擊娘炮和飯圈文化,讓我們重新立起了這份陽剛之氣,因為我們的生活和工作都需要,這不僅僅是軍人的事,而是整個社會的事…

…Se nossa geração jovem fosse mais ‘sangue-quente’ e tivesse mais conhecimento sobre história, não visitaria o Templo Yasukuni [no Japão]… Agora, temos carne pare enchermos nossas barrigas, mas perdemos nossos espíritos. Imagine no campo de guerra, os soldados americanos estavam comendo perus para celebrar o Dia de Ação de Graças, nossos guerreiros tinham apenas batatas congeladas. Os jovens de 1950 eram assim: em um clima tão brutalmente frio, com equipamento tão precário, fizeram um milagre que chocou o mundo todo.  Tudo porque queriam proteger nossa terra natal… Então, eu apoio a caça aos maricas, à cultura de fãs. Isso iria nos ajudar a reconstruir nosso espírito de guerra. Precisamos disso em nossas vidas e trabalho. Isso [proteger a terra natal] não é dever do soldado, mas toda a sociedade deveria assumir esse dever…

O filme também criou um debate sobre edição na Wikipédia chinesa. William Long, um conhecido blogueiro de tecnologia, notou que alguns usuários da Wikipédia estão continuamente tentando editar o verbete original do termo chinês Batalha do Reservatório de Chosin (長津湖戰役 [19]), para sugerir que a China teve uma “vitória decisiva” no confronto, enquanto outros discordam, uma vez que a China perdeu dezenas de milhares de vidas e fracassou em eliminar as tropas da ONU.

Como não há espaço para discussões críticas sobre o conteúdo do filme na China continental, alguns internautas chineses se dirigiram à equipe de produção do filme e fizeram críticas por lucrar comercializando patriotismo. Eles sugeriram [20] que a equipe de produção do filme deveria doar os lucros para os soldados da Guerra da Coreia e suas famílias.

O repórter do New York Times, Evan Hill, aponta que fora da China o espaço para deliberação crítica sobre história também está encolhendo porque Hollywood tem autocensurado sua produção em nome dos lucros no mercado chinês:

É muito engraçado que o cinema ocidental não faça nada de antinacionalismo chinês porque Hollywood quer desesperadamente o dinheiro enquanto o filme mais popular do mundo vai ser sobre soldados chineses derrotando americanos na Guerra da Coreia.