‘Nossa terra natal é onde está o dinheiro': cidadania pragmática no Tajiquistão

 

Builders working on a site

Construtores trabalhando em canteiro de obras. Distrito de Podolsky, região de Moscou. Missão fotográfica para a Federação Russa, 22-29 de setembro de 2006. Imagem por Marcel Crozet / ILOCC BY-NC-ND 2.0.

Este artigo, de Irna Hofman, foi originalmente publicado no site Open Democracy Russia, em 7 de abril de 2021, e é republicado como parte de uma parceria de compartilhamento de conteúdo.

“Irmã Irina, escreva o nome do aeroporto próximo à sua casa. Nós vamos visitar você”, disseram os irmãos tadjiques, meus anfitriões, em uma chamada da Coreia do Sul. “Não importa onde você está. No Reino Unido, na Holanda. Nós conseguimos a cidadania russa, lembra? Temos o direito de entrar!”.

Todos os anos, milhares de cidadãos da Ásia Central tentam superar as restrições vinculadas à cidadania que adquiriram ao nascer solicitando um passaporte russo, assim como fizeram os irmãos, meus anfitriões do Tajiquistão, que conheci em 2012, quando a família deles passou a me hospedar durante as viagens de pesquisa.

Um passaporte russo facilita o trabalho na Rússia, mas esse não é o único incentivo, o documento também facilita a mobilidade, de modo geral. Em um país como o Tajiquistão, conseguir a segunda cidadania se tornou comum, e o número de cidadãos tajiques que recebem passaportes russos aumentou significativamente nos últimos anos. Apenas em 2020, mais de 63.000 tajiques obtiveram a cidadania russa, perdendo apenas para os ucranianos.

Esses números recentemente publicados estimularam um intenso debate nas redes sociais do Tajiquistão. “Se essa tendência continuar, não sobrará ninguém no país”, dizem alguns, enquanto outros compartilham o desejo de também obter a cidadania russa. “Se fosse mais fácil conseguir a cidadania russa, nós também estaríamos dispostos… nossa terra natal é onde está o dinheiro”.

O fato de que conseguir outra cidadania pode melhorar a subsistência de alguém não é exclusividade da Ásia Central. Esta também é uma estratégia utilizada em outros lugares. Diferentes palavras são usadas para falar sobre a obtenção de uma segunda cidadania; instrumental, estratégica, afetiva, sendo que todas referem-se aos benefícios que um segundo passaporte pode proporcionar, seja em termos de segurança, de fatores econômicos ou sociais. Contudo, tensões e contradições permanecem: os cidadãos naturalizados continuam a se identificar com seus países de origem, podendo também enfrentar preconceito, intolerância e racismo nos países da nova cidadania.

Para os tajiques, cujo país natal permanece desprovido de oportunidades econômicas, essas escolhas são muito pragmáticas. Muitos consideram a necessidade de sair como crucial, o que levou alguns, que sofreram com a deportação da Rússia, a mudar seu nome tajique e sua aparência. Entretanto, um segundo passaporte é, em geral, uma maneira muito mais segura e legal de cruzar fronteiras.

 

‘O trabalho é pesado. Mas o dinheiro, o dinheiro é bom’

Meus dois anfitriões nasceram e cresceram em um distrito rural no sudoeste do Tajiquistão, na província de Khatlon, a cerca de 50 km da capital, Dushanbe. Eles conseguiram a cidadania russa em 2016.  O mais velho estudou por 5 anos na Universidade Islâmica em Moscou e trabalhou em uma empresa de construção para financiar os estudos. A conquista do diploma permitiu conseguir a cidadania russa com relativa facilidade, o que significou que seu irmão mais novo, que havia se juntado a ele em 2015, também conseguiu. Automaticamente, seus filhos, que estavam no Tajiquistão, tornaram-se cidadãos russos, e seu status, da mesma forma, facilitou o processo para sua esposa e seu pai.

Em 2018, após trabalharem na Rússia por dois anos, os irmãos se mudaram para a Coreia do Sul, com os passaportes russos, juntando-se às fileiras de outros imigrantes centro-asiáticos que trabalham no país. Os cidadãos russos podem entrar na Coreia do Sul sem visto, como turistas, e permanecer por até dois meses. Alguns ultrapassam esse limite, na expectativa de ganhar uma anistia para permanecerem e continuarem trabalhando no país; outros ficam indo e voltando.

Embora a migração do Tajiquistão para trabalhar na Coreia do Sul seja um fenômeno relativamente recente, este mesmo tipo de migração para a Rússia se tornou crucial para a economia tajique desde a queda da União Soviética

Após entrarem como turistas, meus anfitriões obtiveram um visto de residência de múltiplas entradas, válido por um período de 3 anos, que permite trabalhar com poucas restrições e confere benefícios de alguns sistemas de proteção social. Até o momento, cidadãos tajiques sem passaporte russo não podem entrar facilmente na Coreia do Sul e devem solicitar um visto de turismo, de trabalho ou de negócios.

Assim como muitos outros, meus anfitriões souberam, pela primeira vez, sobre a migração para a Coreia do Sul na internet. Informações sobre cidadania circulam constantemente on-line como neste vídeo da Migrant’s Voice, uma ONG tajique que oferece apoio a trabalhadores imigrantes, no qual um trabalhador tajique na Coreia do Sul se dirige aos seus conterrâneos diante da câmera:

Hello to all Tajik people. If you are coming to Korea, welcome, come! There is work for all! Don’t think that there is no work. In Korea there is work everywhere, any kind of work. The work is heavy. But the money, the money is good.

Olá, povo tadjique. Se vocês estão vindo para a Coreia, sejam bem-vindos, venham! Há trabalho para todos! Não pensem que não há trabalho. Na Coreia há trabalho em todo o lugar, todo tipo de trabalho. O trabalho é pesado. Mas o dinheiro, o dinheiro é bom.

A média salarial tende a ser maior na Coreia do Sul em comparação à Rússia. Meus anfitriões ganham entre USD 80 e USD 100 por dia no setor de construção, pagos em dinheiro no local.

Como um deles explicou, não há nenhum intermediário centro-asiático ou qualquer outra complexa rede de recrutamento de trabalho no local de trabalho, como ocorre na Rússia. Os dois trabalham duro e regularmente recebem chamadas telefônicas do pai, mãe e irmãs, com pedidos urgentes de dinheiro. Ao mesmo tempo, eles aproveitam menos controle parental e estatal, assim como condições relativamente melhores de moradia e trabalho da Coreia do Sul. Quando, recentemente, uma construção metálica caiu sobre o irmão mais velho, fraturando sua perna, seu empregador disponibilizou cobertura médica completa e uma senhora coreana mais velha cuidou dele por várias semanas. O trabalho árduo dos irmãos se reflete no melhor padrão de vida de seus parentes próximos no Tajiquistão. Como preparativo para o retorno do filho mais velho, seu pai construiu uma vistosa casa de dois andares em “estilo europeu”, no meio da vila, entre casas de estilo tajique, feitas de barro.

Como consequência da dupla cidadania, os números sobre mobilidade internacional e viagens, incluindo migração a trabalho e reassentamento, não necessariamente refletem o local de nascimento das pessoas.

Por exemplo, de acordo com um relatório recente da Sociedade Oxus para Assuntos da Ásia Central, o governo sul-coreano emitiu um total de 102 vistos de trabalho para cidadãos tajiques entre 2016 e 2019. É impossível avaliar a precisão desse número, mas parece estar no mínimo ligeiramente subestimado. Enquanto um trabalhador imigrante tajique na Coreia do Sul me disse que apenas na sua empresa trabalham cerca de 60 a 70 tajiques, outro afirmou que não existem muitos tajiques na Coreia do Sul, pois continua sendo difícil entrar no país. Na capital Seul, ele estima que não existam mais do que 100 tajiques.

Rússia: uma relação de amor e ódio

Embora a migração do Tadjiquistão para a Coreia do Sul seja um fenômeno relativamente novo, a migração laboral para a Rússia se tornou crucial para a economia tajique desde a queda da União Soviética em 1991.

Segundo os dados do Ministério do Interior da Rússia, mais de 1,1 milhão de tajiques entraram na Rússia para trabalhar em 2019, número que exclui pessoas que entraram de modo ilegal ou informal, sem registro de trabalho. A migração laboral para a Rússia passou a ser vista por muitos na sociedade tajique como parte da transformação social de um homem. “Meus dois filhos [que ainda não atingiram a idade escolar] vão estudar e depois trabalhar na Rússia”, recentemente me disse uma jovem mãe tajique. Na cabeça dela, não há dúvida de que sua casa só poderá progredir por meio do reconhecido costume da migração laboral para a Rússia.

Um passaporte russo pode ajudar muito no processo de migração, embora muitos tajiques tenham sentimentos ambivalentes em relação à Rússia

Esses trabalhadores migrantes são a tábua de salvação para muitas famílias rurais e urbanas do país. As remessas de dinheiro melhoram a capacidade das pessoas de pagar por serviços de saúde e educação, bem como por uma variedade de necessidades de consumo. Para agricultores que sofrem com a falta de liquidez, as remessas permitem a compra de equipamentos e sementes, ou fornecem uma rede de segurança, quando as colheitas falham. Em 2013, o Tajiquistão foi classificado como o país mais dependente de remessas de dinheiro no mundo, com as transferências equivalentes a cerca de 50% do PIB.

Sob as restrições da COVID-19, a mobilidade da migração laboral de e para a Rússia diminuiu consideravelmente em 2020, minguando as remessas de modo acentuado. Em alguns casos, famílias no Tajiquistão foram inclusive forçadas a enviar dinheiro para a Rússia. De acordo com o Banco Central russo, as remessas enviadas para o Tajiquistão, durante os primeiros nove meses de 2020, foram 30% inferiores às registradas no mesmo período no ano anterior. Cartazes nos supermercados com os dizeres “Não vendemos a crédito” são bastante comuns em Duchambe atualmente”.

Porém, com poucas oportunidades no país, a migração laboral do Tajiquistão para a Rússia se mantém resistente. Contudo, a diminuição das viagens de retorno da Rússia para o Tadjiquistão em 2020, é parcialmente explicada pelo fato de que começaram a circular rumores no Tajiquistão de que tajiques sem passaporte russo que estivessem saindo da Rússia sob as restrições da COVID-19, poderiam ser deportados e até proibidos de reentrar no país por até 10 anos. Se isso era verdade ou simplesmente uma desculpa dos jovens tajiques na Rússia, que não estavam ansiosos para retornar para casa, ainda precisa ser esclarecido; os rumores foram, no entanto, considerados como verdadeiros por muitas famílias no Tajiquistão rural. Os elevados custos das viagens também constituíram uma barreira substancial para o retorno dos migrantes.

Desse modo, um passaporte russo pode ajudar muito no processo de migração, embora muitos tajiques tenham sentimentos ambivalentes em relação à Rússia. De um lado, eles apreciam a liberdade e a infraestrutura no país estrangeiro, elementos inexistentes no Tajiquistão rural; por outro, eles frequentemente vivenciam racismo e xenofobia, dando origem a um ressentimento em relação à Rússia. “Se eu tiver que ir à Rússia para atender a um cliente chinês, eu não falo em russo. Eu tento falar em inglês, para que não percebam meu sotaque tajique”, disse um jovem tajique que trabalha como corretor para empresas chinesas. “Se perceberem que sou tajique, vão me tratar com desprezo”.

Como resultado, a identidade pessoal e a cidadania legal devem ser separadas. A maioria dos trabalhadores migrantes que obtêm a cidadania russa continuam a se identificar como tajiques, e se beneficiam de não precisarem de autorizações de residência e trabalho, bem como da inclusão no sistema de seguridade social russo. Essa é uma das razões pelas quais tajiques mais velhos, com histórico de trabalho na União Soviética, solicitam passaporte russo atualmente, embora não tenham nenhuma intenção de ir trabalhar na Rússia. Enquanto uma pensão previdenciária tajique varia em torno de 10 a 20 dólares por mês, uma pensão russa não é inferior a 10.000 rublos, cerca de USD 130. Como uma das minhas amigas em Duchambe disse brincando, referindo-se a um de seus vizinhos que recebe uma pensão russa: “Aquele velho agora sustenta seus filhos mensalmente, em vez de ser sustentado por eles!”.

O conceito de “cidadania pragmática” ilustra o fato de que a maioria dos trabalhadores migrantes tajiques não se identificariam facilmente como russos, mesmo após muitos anos de residência na Rússia. Isso é observado em outras trajetórias migratórias em outros lugares, nas quais a terra natal permanece sendo o núcleo da identidade pessoal, como é o caso dos palestinos em Atenas ou dos imigrantes asiáticos na Austrália.

A cidadania pragmática é empregada para superar limitações vinculadas ao passaporte e outras restrições que as pessoas enfrentam em seus países de origem, uma vez que, para cidadãos de algumas nações é mais difícil cruzar as fronteiras do que para outros. Entretanto, somente cruzando essas mesmas fronteiras é que uma segunda cidadania “pragmática” pode ser obtida, o que deixa o povo tajique constantemente dividido entre o lugar que chama de lar, mas que não fornece sustento para eles e suas famílias, e um outro que continua a vê-los como estrangeiros, mas permite que construam uma vida melhor para eles e seus entes queridos em sua terra natal.

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