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Ataque em trem no Japão expõe misoginia e violência de gênero

Categorias: Leste da Ásia, Direitos Humanos, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Mulheres e Gênero
Uma estação de trem no subúrbio de Tóquio

Uma estação de trem no subúrbio de Tóquio. Em 6 de agosto de 2021, um homem atacou 9 pessoas em um trem em Tóquio. Imagem: Nevin Thompson, editada para proteger privacidade.

Aviso de conteúdo: esse artigo contém detalhes de violência contra as mulheres.

Um ataque a faca em um trem em Tóquio em agosto colocou em destaque a cultura de misoginia no Japão, e deixou algumas mulheres temerosas por sua própria segurança durante seus deslocamentos diários.

Em 6 de agosto, um homem de 36 anos foi preso e acusado por tentativa de assassinato após atacar [1] passageiros com uma faca em um trem na linha suburbana de Odakyu, perto de Tóquio. Quatro mulheres e cinco homens foram feridos no ataque, e uma mulher foi transportada para o hospital com ferimentos graves.

Ao ser preso, o suspeito disse [2] que sua motivação para o ataque era atingir mulheres [1]:

6年ほど前から幸せそうな女性を見ると殺してやりたいと思うようになった […] 誰でもよかった。

Nos últimos seis anos, sempre que eu via mulheres que pareciam felizes eu queria matá-las… Qualquer um ia querer.

As mulheres no Japão passam regularmente por assédios sexuais em situações cotidianas, [3] como nos deslocamentos diários [4]. Logo após o ataque, muitas mulheres nas redes sociais expressaram medo [5] de utilizar o transporte público [6] em Tóquio e em outras partes do Japão.

Só no último ano eu vi um homem se apalpar no trem bem na minha frente; vários homens se aproximam de mim na rua querendo sexo, vários me seguem nas estações e nas ruas, um homem esfregou seus genitais em mim no trem cheio. Catorze anos de história, e não tenho personagens suficientes.

Vários veículos de comunicação [8], incluindo o serviço a cabo Kyodo e o Japan Times, informaram que o suposto atacante “sofreu [9]” rejeições em relacionamentos com mulheres no passado. Nos dias posteriores ao ataque, surgiram outras evidências de que o suspeito tinha considerado ou planejado [10] outros ataques antes de ser preso.

 

Esse é o cara que algumas publicações queriam que a gente sentisse pena ontem.

Em vez de focar no fracasso dos relacionamentos do suspeito, alguns comentaristas da mídia classificaram [13] o ataque como “crime de misoginia”(ミソジニー犯罪) e “crime de ódio contra as mulheres”.

No artigo para o Yahoo! Japan News [14], Ito Kazuko, advogada e secretária-geral [15] da ONG Human Rights Now, sediada no Japão, classificou o ataque como (uma tentativa de) feminicídio [16].

被疑者が逮捕され、これから真相が究明されることになりますが、報道される被疑者の発言を前提とすれば、女性を狙った憎悪犯罪(ヘイトクライム)、フェミサイドという性格が色濃いことが懸念されます。

Enquanto mais detalhes ficam claros, assumindo que as características do suspeito são como as noticiadas, há fortes preocupações de que esse é um crime de ódio contra mulheres e [uma tentativa de] feminicídio. As mulheres estão ficando cada vez mais temerosas.

“O traço em comum entre atiradores em massa, assassinos em série e outros criminosos em série de violência de gênero é o ódio intenso contra as mulheres”, disse Julia DeCook [17] em uma entrevista para a Global Voices. DeCook é professora assistente na Escola de Comunicações da Universidade Loyola de Chicago, e o foco de sua pesquisa inclui grupos de ódio da internet, raça e gênero, particularmente a supremacia masculina e a masculinidade.

“Eu não acho que [o ataque no trem em Tóquio] seja um exemplo de extremismo de direita contra mulheres, mas um exemplo atormentador do quanto é violento e nefasto para as mulheres  a misoginia, a reação violenta contra o feminismo e os direitos das mulheres”, disse DeCook. “A misoginia violenta a que as mulheres são sujeitas em circunstâncias diárias e cotidianas são um exemplo de como o patriarcado exerce um controle político por meio destas táticas de medo e terror (frequentemente privadas).

O Japão, de uma forma geral, preza [18] pela segurança pessoal, e 73% [19] das pessoas responderam uma pesquisa recente dizendo que se sentem seguras ao andarem sozinhas à noite.

No entanto, a historiadora Sayaka Chatani [20] questionou essa categorização:

 

Eu acho que é um mito que o Japão é um “país seguro”. Na nossa sociedade, todos os dias, as mulheres vivem com o medo de serem apalpadas, assediadas sexualmente e assassinadas. Quem exatamente diz que “o Japão é seguro”?

Em um relatório feito pelo governo japonês de 2019, 65% das mulheres [22] que responderam a pesquisa relataram ter sofrido apalpações [3], toques indesejados e outras formas similares de assédio sexual, que frequentemente ocorrem em trens lotados.

Segundo algumas estimativas, mais de 95% dos incidentes [23] de violência sexual no Japão não são relatados à polícia. Um relatório de 2019 do governo japonês revelou que muitos crimes sexuais no Japão não são denunciados [24], e apenas 14% [25] das mulheres que passaram por assédio sexual reportaram o caso à polícia.

De acordo com as estatísticas [26] publicadas em 2021 pela Agência Nacional de Polícia do Japão, o número de relatos de crimes de gênero, como perseguição e violência doméstica, aumentou no país nos últimos vinte anos. O aumento das denúncias ocorreu desde que foi promulgada uma legislação [27] para combater a perseguição [25] em 1999 e a violência doméstica [28] em 2001.

Por exemplo, houve 2.280 denúncias de perseguições em 2000, comparadas com 20.189 em 2020. [29] O pico destas denúncias foi em 2017, com 23.079 casos  reportados. Em 2000, houve 3.608 denúncias formais de violência doméstica à polícia no Japão, em comparação com 82.643 queixas formais [29] e quase 120.000 ligações para linhas diretas de violência doméstica [30] em 2020.

Algumas formas de violência contra as mulheres ainda não são oficialmente registradas pela Agência Nacional de Polícia, uma vez que em 2021 ainda não há leis [31] que penalizem o sexo não consensual [32] (em contraste, “intercurso sexual forçado [33]“, e delitos similares apenas são reconhecidos como tais pela lei criminal japonesa se forem cometidos por meio de “agressão ou intimidação”).

Além disso, nem todas as mulheres relatam suas experiências à polícia.

“No Japão, as mulheres tendem a não relatar o abuso sofrido, e a polícia notoriamente não ajuda nestes casos”, disse DeCook.

Isso não é exclusividade do Japão, mas algo que as mulheres no mundo todo enfrentam, de acordo com DeCook.

“Nós podemos ver isso em casos de estupro e violência doméstica, onde os criminosos recebem sentenças ridiculamente curtas, ou apenas multas e ainda continuam tendo o direito ao porte de armas mesmo depois de terem sido sentenciados por violência doméstica e sexual”, ela disse. “Tudo isso é influenciado pela lógica e o terror da misoginia. Todas essas coisas combinadas impedem as mulheres de viver e participar plenamente em todas as áreas da vida.”