- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

O que há de errado na analogia política que compara Taiwan ao Afeganistão?

Categorias: América do Norte, Ásia Central e Cáucaso, Leste da Ásia, Afeganistão, China, Estados Unidos, Taiwan (RC), Mídia Cidadã, Política, Relações Internacionais

Imagem editada por Oiwan Lam.

Após a retirada das forças militares dos EUA do Afeganistão e a tomada abrupta de Cabul pelo Talibã, comentaristas chineses recorreram à internet [1] para fazer comparações entre Taiwan e Cabul nas redes sociais. Muitos questionaram se os Estados Unidos poderiam ser um aliado confiável para apoiar potenciais esforços militares chineses para a “unificação” com Taiwan. Mas, como alguns destacaram [2], a analogia é enganosa.

Taiwan se tornou um estado independente após o partido governante da República da China, o Kuomitang, também conhecido como Partido Nacional da China, ter deixado o continente em 1949, depois da derrota na Guerra Civil Chinesa. Apesar da autonomia de Taiwan, a República Popular da China, sob a liderança do Partido Comunista da China (PCC), defende há tempos a “política de uma China [3]” que estabelece que Taiwan e a China continental são partes inalienáveis de uma única “China”. Nos últimos anos, a China manteve a posição de que não irá realizar operações militares [4] para a unificação com Taiwan.

Para enfrentar a pressão política de Pequim, a presidente de Taiwan aproximou-se de outros países para construir alianças diplomáticas, citando os Estados Unidos como aliado [5] fundamental. Desde, 1979, os Estados Unidos adotaram uma política estrategicamente ambiciosa em relação a Taiwan. No entanto, a administração do ex-presidente Donald Trump flexibilizou [6] as restrições da relação EUA-Taiwan. Ao longo dos últimos dois anos, os EUA despacharam navios de guerra pelos estreitos de Taiwan e, recentemente, uma aeronave militar dos EUA pousou [7] em Taipei, o que muitos viram como um sinal de que os EUA queriam fortalecer laços diplomáticos com Taiwan.

Considerando esse contexto, críticas [8] sobre a retirada desorganizada das tropas americanas do Afeganistão geraram ansiedade em Taiwan, pois muitos questionaram se os EUA ainda são capazes de proteger e apoiar seus aliados.

Políticos a favor da unificação com a China e o presidente da Broadcasting Corporation of China [9], Jaw Shaw-kong, foram os primeiros a usar a analogia Taiwan-Afeganistão para questionar [1] a aliança política de Tsai com os EUA no Facebook em 15 de agosto:

在台灣,關心阿富汗前途的人不多,在民進黨的麻痹政策之下,大多數人民不知道阿富汗很可能就是台灣的前車之鑑。[…] 老共不可測,老美不可靠,要靠還是要靠自己,兩岸之間應該是「要和不要戰」,如果要戰就要好好準備,問題是台灣做好戰爭的準備了嗎?台灣如果不想成為第二個阿富汗,就要在「和」「戰」之間想清楚,要和還是要戰?和要怎麼和?戰要如何戰?像現在一樣,緊抱美國大腿就以為天下太平,混一天拖一天就以為永遠沒事…

Em Taiwan, muito poucos prestaram atenção ao futuro do Afeganistão. Sob a política paralisante do partido democrático progressista, a maioria dos taiwaneses não sabe que o que aconteceu no Afeganistão pode acontecer em Taiwan. […] O Partido Comunista é imprevisível, os EUA não são confiáveis, temos apenas a nós mesmos. A escolha certa é paz e não guerra. Se escolhermos guerra, devemos nos preparar. Mas Taiwan está bem-preparada para guerra? Se Taiwan não quer se tornar o Afeganistão, temos que pensar bem sobre a escolha entre paz e guerra. Como fazer a paz? Como lutar uma guerra? Não podemos apenas confiar nos EUA para proteção e esperar que estaremos seguros para sempre…

Ele mais tarde provocou [10] Tsai sobre o preparo militar de Taiwan em outro post do Facebook no dia seguinte:
如果蔡英文決定戰,不只要恢復徵兵…力求全民皆兵,還要追求更進步的現代化武器,不然怎麼與中共抗衡?
我要問問蔡英文,假如是你像阿富汗被兵臨城下,會選擇拚下去打到最後一支掃把,還是辭職坐飛機走人,以保全老百姓免於烽火?

Se Tsai quer guerra, ela precisa restabelecer o alistamento militar obrigatório […], transformar todos os civis em soldados e equipar Taiwan com armas mais avançadas. Ou como poderíamos resistir à China? Quero perguntar a Tsai Ing-wen, se você enfrentar uma situação como a do Afeganistão, escolheria lutar até o fim ou pegar um avião e deixar o país para que os cidadãos não tenham que enfrentar uma guerra?

A visão de Jaw se espalhou rapidamente pelo Facebook e pelo Weibo, e em dias muitos tinham considerado a comparação. Por exemplo, o político taiwanês Lei Chien disse “Taiwan é menos importante que o Afeganistão [11]“, sugerindo que os EUA abandonariam Taiwan se a China iniciasse um ataque militar. O acadêmico de relações internacionais Huang Jie-jeng também questionou [12] a determinação americana de apoiar Taiwan em uma hipotética invasão chinesa.

Em resposta à discussão, o premiê taiwanês Su Tseng-chang criticou a comparação e atacou [13] Jaw por “incentivar os inimigos”:

國民黨威權統治時,在戒嚴時我們不怕被殺被關,為台灣打開民主大門,今天還有強國以武力要併吞台灣,我們同樣不怕被殺被關,一定守護這個國家,守護這片土地,不像某些人老是長敵人威風,減自己志氣

Taiwan passou pelo governo autoritário do KMT. Durante o período da lei marcial, nós não tivemos medo de sermos presos ou mortos e lutamos pela democracia. Hoje, a China ameaça anexar Taiwan. Da mesma forma, não temos medo de sermos presos ou mortos, devemos proteger nosso país e nossa terra. Diferentemente daqueles que ficam incentivando os inimigos e espalhando sentimentos derrotistas. 

Na China continental, o veículo de notícias estatal Global Times usou a analogia de Jaw para alertar Taiwan:

O Global Times da China alerta Taiwan de que os EUA vão abandoná-los, como fez com o Afeganistão, “quando a guerra estourar” (não “se”). “A defesa da ilha vai colapsar em horas e o exército americano não vai ajudar”.

O Global Times ainda descreditou a credibilidade dos EUA em intervenções militares no exterior:

Many people cannot help but recall how the Vietnam War ended in 1975: The US abandoned its allies in South Vietnam; Saigon was taken over; then the US evacuated almost all its citizens in Saigon. And in 2019, US troops withdrew from northern Syria abruptly and abandoned their allies, the Kurds.

Muitas pessoas não conseguem evitar de relembrar como a guerra do Vietnã acabou em 1975: os EUA abandonaram seus aliados no Vietnã do Sul; Saigon foi tomada; então os EUA evacuaram quase todos os seus cidadãos em Saigon. E, em 2019, tropas americanas se retiraram do norte da Síria de forma abrupta e abandonaram seus aliados, os curdos.

Mas Wang Hao, um escritor taiwanês sobre assuntos internacionais, convidou [16] outros a verem as notícias sob um ângulo diferente:

很多人在討論1949年美國丟掉中國,1975年美國丟掉南越,2021年美國丟掉阿富汗。

可是,1949年,史達林沒想到10年後中蘇分裂;1975年,毛澤東沒想到4年後中越戰爭;2021年,什麼是習近平沒想到的呢?

塔利班會不會變成另一個越共,應該是此刻習近平最擔心的吧?!

Muitas pessoas estão falando sobre os EUA terem abandonado a China em 1949, abandonado o Vietnã em 1975 e abandonado o Afeganistão em 2021. Mas em 1949, Stalin não previu que a China ia romper com a URSS 10 anos depois; em 1975, Mao Zedong não previu a guerra sino-vietnamita 4 anos depois; o que Xi Jinping não prevê em 2021?

A jornalista independente Melissa Chan contrapôs a analogia política com opiniões do professor de direito Donald Clarke e especialista em relações exteriores Andrew Small:

Em minha conversa com @ajsmall (vou postar em breve!), ele também apontou que os poderes da Ásia talvez até queiram a retirada dos EUA porque isso significa que pode voltar a focar na segurança na região Indo-Pacífico.

Ainda mais importante, como apontado [2] por alguns jornalistas taiwaneses, a comparação é enganosa porque sugere que os EUA ainda têm tropas baseadas em Taiwan. Contudo, o fato é que os EUA retiraram todas as tropas de Taiwan em 1979 [19], e o país continua independente até hoje.