- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

Iugoslávia não era aliada soviética — por que esse conceito errôneo persiste na mídia ocidental?

Categorias: Europa Oriental e Central, Bosnia Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Kosovo, Macedônia, Montenegro, Sérvia, História, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Política
Tito, American Flag, Stalin, Churchill [1]

Celebração de partisans iugoslavos em que se destaca Josip Broz Tito [2] com as bandeiras de seus aliados: Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido e, também, retratos de líderes aliados (não aparecem na imagem) Roosevelt, Stalin e Churchill [3]. Vis, na Croácia, 9 de novembro de 1944. Foto: znaci.net [4], domínio público.

Em 22 de outubro de 2019, em um relatório sobre a ratificação do protocolo para a entrada da Macedônia do Norte na OTAN no Congresso dos Estados Unidos, o site norte-americano The Hill [5] afirmou erroneamente que a Iugoslávia foi aliada da União Soviética. Muitos cidadãos de países da antiga Iugoslávia consideram que esta falácia histórica, encontrada com frequência na mídia ocidental, é um estereótipo ofensivo.

O The Hill é um jornal influente de Washington DC, lido por tomadores de decisões nos Estados Unidos. Além do mais, o artigo em questão foi tuitado pelo senador Joe Biden, ex-vice-presidente dos Estados Unidos:

O Senado vota para que a Macedônia do Norte se junte à OTAN.
Nesta terça-feira [22 de outubro], o Senado votou seu apoio para que a Macedônia do Norte se junte à OTAN, o que abriu caminho para que o país balcânico integre a aliança.
———–
Apoio fortemente a aprovação do Senado para a integração da Macedônia do Norte à OTAN. Os países dos Bálcãs Ocidentais merecem fazer parte da Europa como um todo, livre e em paz, e apoiaremos a integração euro-atlântica em toda a região.

Embora o artigo seja certeiro em sua maior parte, a seção de antecedentes inclui a seguinte oração:

Previously part of Soviet ally Yugoslavia, North Macedonia, was formally invited by NATO in July 2018 to start accession talks and 22 countries have since ratified its accession.

Macedônia do Norte, antes parte integrante da Iugoslávia, aliada soviética, recebeu um convite formal da OTAN, em julho de 2018, para iniciar negociações de adesão, e 22 países ratificaram sua adesão.

Na maior parte de sua existência, a República Socialista Federativa da Iugoslávia [8] não foi um aliado soviético — ao contrário, sua independência do bloco oriental e ocidental foi uma característica-chave de sua identidade nacional.

A Iugoslávia estabeleceu-se em 1943 no auge da Segunda Guerra Mundial pelos partisans iugoslavos [9], a resistência antifascista comandada por comunistas que teve o apoio dos Aliados [10]. Enquanto recebiam ajuda dos Estados Unidos, Reino Unidos e União Soviética, os partisans iugoslavos liberaram, por conta própria, grandes áreas do país ocupado pelo Eixo [11]. A Iugoslávia foi aliada formal da União Soviética somente no sentido mais amplo — junto com os outros aliados.

Depois da guerra, as relações entre os dois países comunistas se deterioraram. Em 1948, os iugoslavos abandonaram o stalinismo para criar uma forma distinta de socialismo. E, entre 1948 e 1955, durante o período Informbiro [12], a Iugoslávia se opôs diretamente aos soviéticos, a ponto de se preparar para rejeitar uma invasão do Pacto de Varsóvia [13].

[14]

Soldados alemães caminham em frente a grafite antifascista “Longa vida aos aliados: URSS, Inglaterra, Estados Unidos!”, depois da recuperação temporária da ilha croata de Hvar em 2 de abril de 1944. Fonte: znaci.net [15], domínio público.

Conforme evidenciado por informações publicadas pela Biblioteca Presidencial John F. Kennedy [16], a Iugoslávia dependia muito da ajuda norte-americana durante o período pós-guerra — por exemplo, com suprimento de alimentos da Administração das Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação [17], que evitou uma fome massiva em 1945. Em parte de sua história, os Estados Unidos concederam à Iugoslávia a condição de “nação mais privilegiada” [18] no âmbito do comércio, o que impulsionou o crescimento econômico do país balcânico.

[19]

Mapa da Europa com a Cortina de Ferro (linhas pretas), da Wikipedia (CC BY-SA).

Como parte de seu ato de equilibrar os blocos, a Iugoslávia foi um dos países fundadores do Movimento dos Países Não Alinhados [20] em 1961. Diferentemente da Alemanha Oriental, Polônia, Checoslováquia, Romênia e Bulgária, estava no lado ocidental da Cortina de Ferro [21], como era conhecida a linha que dividia a zona de dominação soviética do restante da Europa.

A afirmação incorreta que equipara a Iugoslávia com a União Soviética apareceu de tempos em tempos nas mídias ocidentais, sobretudo na esfera de direita. Quando é intencional, integra um discurso de ameaça vermelha [22] moderna que degrada a reputação dos atores políticos da região. Esse discurso costuma ser dirigido a audiências ocidentais conservadoras que ainda são sensíveis à “ameaça comunista”.

Por exemplo, em outubro de 2015, o The Hill publicou um artigo [23] de um grupo de pressão pago por VMRO-DPMNE [24], partido nacionalista relacionado ao Kremlin [25] que governou a Macedônia do Norte [26] entre 2006 e 2017, tentando caluniar seus oponentes relacionados à União Europeia e à OTAN como se fossem relacionados à Rússia. Diz que a Macedônia é um “país do antigo bloco soviético” cujo “partido de oposição, SDSM, é liderado por Zoran Zaev, sucessor do antigo partido governante durante a Guerra Fria”.

Um artigo de 2016 da mesma publicação, repleto de discursos complacentes com preocupações de direita sobre a migração, fez uma má interpretação de Zaev como o “culpado” pela instabilidade dos Bálcãs e o “mentor do Partido Socialista SDSM, de tendência russa”.

Esses termos falam a públicos tradicionais conservadores no Ocidente, para quem o termo “socialista” está carregado de conotações negativas e associado inerentemente com a União Soviética e, por extensão, com a Rússia. No entanto, esses termos não têm nada a ver com a própria Macedônia do Norte. SDSM significa União Democrática Social da Macedônia, e sua plataforma de centro-esquerda é explicitamente relacionada à OTAN e à Europa. A prova disso é que Zaev assinou o Acordo de Prespa [27] em 2018, que terminou com a histórica disputa pelo nome com a Grécia, e cujo principal resultado seria a entrada da Macedônia do Norte à OTAN e à União Europeia. Por sua vez, um Partido Socialista [28] integrava a VMRO-DPMNE, uma coalizão de nacionalistas populistas, que abarcava o espectro político.

Iugoslávia entre blocos

Além de não ser verdade, muitos cidadãos de países da antiga Iugoslávia consideram que equiparar a Iugoslávia com a União Soviética ou seu bloco é um estereótipo ofensivo. Quase três décadas depois da desintegração da federação em 1992, a independência da União Soviética segue sendo um sinal de orgulho para muitos cidadãos dos países da antiga Iugoslávia. Quando se fala disso, as pessoas da região costumam ter discussões apaixonadas para defender a natureza única da experiência socialista iugoslava, com sua abertura ao Ocidente, liberdade de viajar e trabalhar no exterior e um padrão de vida relativamente alto.

Alguns ex-iugoslavos que tiveram a oportunidade de visitar o bloco soviético nesse tempo se vangloriaram, com alguns graus de arrogância, de que “para eles, éramos como norte-americanos!”. Às vezes, ignoram o fato de que parte desses países, anteriormente oprimidos, como Estônia e Polônia (ambos integrantes da União Europeia), fizeram progressos inconcebíveis nos Bálcãs Ocidentais modernos.

O debate vai muito além das disputas com um café ou uma cerveja. As paixões se acendem ao máximo quando figuras políticas colocam os ex-iugoslavos no mesmo saco que outros europeus do centro e do leste. Um caso emblemático aconteceu quando o secretário das Relações Exteriores do Reino Unido, Jeremy Hund, catalogou incorretamente [29] a Eslovênia como “estado vassalo soviético” durante uma visita à Liubliana em fevereiro de 2019, um erro que causou reações furiosas do público esloveno [30], entre outros.

“Estado vassalo soviético”, Jeremy Hunt comete gafe na Eslovênia.
O secretário das Relações Exteriores foi criticado depois de afirmação que mostra a falta de conhecimento de que o país era parte do movimento de não alinhados.
————
A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro. A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro. A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro. A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro. A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro. A Iugoslávia não esteve atrás da Cortina de Ferro (repetir à vontade).

Explosões semelhantes aconteceram em julho de 2017, quando a jornalista norte-americana, Joy Reid, considerada de esquerda, confundiu [33] a União Soviética, Iugoslávia e Tchecoslováquia enquanto analisava as origens nacionais das esposas do presidente norte-americano, Donald Trump. Embora tenha tuitado uma correção pouco depois, as consequências duraram anos.

Donald Trump se casou com uma norte-americana (sua segunda esposa) e duas mulheres que eram da Iugoslávia soviética: Ivana-Eslováquia, Melania-Eslovênia.
———-
A Iugoslávia nunca foi parte da União Soviética, e durante os anos de Tito, opôs-se vigorosamente à influência soviética.
É justamente por isso que é preciso, por padrão, desconfiar dos jornalistas e deixar de lado o ceticismo apenas pelo mérito da veracidade dos argumentos.

Em maio de 2018, um artigo [36] do Business Insider sobre uma teoria de conspiração de que Melania Trump é uma espiã russa distorcia a história da Eslovênia, o que voltou a gerar reações furiosas:

Há uma teoria de conspiração maluca de que a Melania é uma espiã russa. A única “evidência” que os comentaristas da internet parecem ter é a de que ela fala seis idiomas e que se reuniu com o [presidente] russo Vladimir Putin na Cúpula do G-20 deste ano.
———
A Eslovênia foi parte da Iugoslávia até esse país se desintegrar. Nunca foi parte da União Soviética nem da Rússia. Onde estava o editor deste artigo? Espero que o repórter tenha sido despedido por incompetência.

Outro exemplo ocorreu no jornalismo esportivo. Em outubro de 2018, um artigo [38] sobre a história do futebol croata-americana do site Protagonist Soccer foi corrigido rapidamente depois que um leitor alertou à publicação [39] que a Croácia nunca foi parte da União Soviética:

Acordei com um novo artigo do Dominic Jose Bisogno sobre a influência histórica croata no futebol Centro-Oeste. Ninguém mais tem este tipo de relato. Ninguém…
Somos um povo. Estamos vivos. Um olhar sobre a história do futebol croata-americana.
Um dos maiores fatores do futebol norte-americano em seus mais de 100 anos de história é a sempre crescente inspiração da imigração na comunidade futebolística.
———–
Obrigado por este artigo sobre futebol croata. Por favor, façam uma correção. A Iugoslávia não foi uma “nação soviética”. Foi um estado comunista, mas nunca parte da União Soviética. Gostaria de retuitar o artigo, mas não quero chamar atenção para esse ponto. Muito obrigado.