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Especialistas alertam que ambicioso canal de Istambul destruirá o meio ambiente e abrirá caixa de Pandora da geopolítica

Categorias: Oriente Médio e Norte da África, Turquia, Desastre, Desenvolvimento, Direitos Humanos, Economia e Negócios, Governança, Lei, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Migração e Imigração, Política, Protesto, Relações Internacionais, Saúde, Trabalho

Projeto proposto do canal de Istambul dividiria em dois o continente europeu de Istambul com um canal marítimo de 45 quilômetros de extensão que conectaria o mar Negro com o mar de Mármara e correria paralelo ao Bósforo. Captura de tela do vídeo da BBC News Türkçe [1].

O canal de Istambul, a hidrovia artificial planejada de 45 quilômetros de extensão que conectará o mar Negro ao mar de Mármara, provavelmente é o projeto de infraestrutura em grande escala mais ambicioso [2] do presidente turco Recep Tayyip Erdogan desde que assumiu o cargo há 18 anos. Também é o que trará maiores consequências nacionais e internacionais.

O “segundo Bósforo” da Turquia, como tem sido chamado, foi revelado ao público em 2011 [3] e tem luz verde do Ministério do Meio Ambiente desde janeiro de 2021. Erdogan justifica o projeto de 12,6 milhões de dólares, apontando que vai facilitar o tráfego de barcos do Bósforo. De acordo com as autoridades, a nova hidrovia terá uma capacidade de trânsito de aproximadamente 160 embarcações [4] por dia. Para efeito de comparação, pelo canal de Suez são realizadas 50 travessias [5] diárias e pelo canal do Panamá também 50 [6].

Mas os especialistas dizem que, se construído, o novo canal pode tornar obsoleta a Convenção de Montreux de 1936, que regulamenta os estreitos de Bósforo e Dardanelos.

Além de conceder à Turquia total soberania sobre ambos os estreitos e garantir a passagem de embarcações civis em tempos de paz, sua maior importância está no fato de que o tratado limita a implantação militar [7] no mar Negro a 21 dias para estados que não fazem fronteira com essa massa de água, dominado pela Rússia.

O presidente Erdogan declarou em várias ocasiões [8] que a convenção não entrará em vigor na nova hidrovia. Na prática, isso significa que a Turquia, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), poderá permitir a entrada de qualquer embarcação militar ao mar Negro, inclusive as de bandeira norte-americana.

Entretanto, o canal de Istambul oferece apenas uma rota alternativa para o Bósforo. As embarcações devem continuar a usar o estreito de Dardanelos, que liga o mar de Mármara ao Mediterrâneo e é regido pela Convenção de Montreux. Por este motivo, tem se especulado muito de que a Turquia poderia se retirar totalmente da Convenção, algo que as autoridades têm negado até agora [9].

No início de abril, essas especulações levaram um grupo de almirantes aposentados a publicar [10] um comunicado no qual alertam sobre os perigos de uma possível retirada. “Montreux permitiu que a Turquia permanecesse neutra durante a Segunda Guerra Mundial”, afirmam no comunicado. “Somos contra todas as conversas e ações que possam levar Montreux a ser aberto ao debate”.

A declaração causou uma tempestade política na Turquia. Ankara até o equiparou a uma “tentativa de golpe de estado” [11]. Centenas de organizações da sociedade civil, provavelmente todas pró-governo, entraram com ações criminais [12] contra os almirantes aposentados e 14 foram presos [13] (embora libertados logo depois [14]).

As autoridades civis turcas têm uma relação tensa com os militares, que realizaram golpes de estado em 1960 e 1980 [15] e organizaram um que fracassou em 2016.

Mas o controle sobre os estreitos de Bósforo e Dardanelos é mais antigo. Em 1774, com o Tratado de Küçük Kaynarca, os otomanos proibiram todos as embarcações estrangeiras de deixar o mar Negro, o que impediu a Rússia de enviar sua frota do mar Negro ao Japão [16] na guerra de 1904-1905.

Em 1841, a Convenção de Londres sobre os Estreitos proibiu que os navios de guerra que não fossem turcos entrassem nos estreitos em tempos de paz. Este tratado foi substituído pelo Tratado de Lausanne, de 1923, que exigia a desmilitarização dos Dardanelos e de várias outras ilhas [17], e a abertura do mar Egeu para navios mercantes.

Depois veio a Convenção de Montreux, que, de acordo com o historiador Onur Isci em uma entrevista [18] ao AlMonitor, “foi negociada à medida que a sombra de Hitler se aproximava cada vez mais. Com a convenção, se alcançou um equilíbrio que parecia impossível, sem ganhar a antipatia da Rússia ou das potências aliadas ao mesmo tempo em que se garantia os maiores lucros para a Turquia”.

Em um texto que escreveu para Carnegie Europe [19] sobre a caixa de Pandora da geopolítica que a nova hidrovia pode abrir, Marc Pierini disse:

If the convention will not apply to the canal, it would in practice mean nullifying it and unilaterally creating a new role (and new rights?) for Turkey in maritime traffic regulation between the two seas. Questions abound. Would Turkey set different rules for maritime traffic on the new canal compared to the convention applying to the Bosporus? Would it—in the absence of any international authority or treaty—be free to open or close transit through the canal to certain flags at its sole discretion?

Se a convenção não estivesse em vigor no canal, na prática isso significaria anulá-la e criar uma nova função (e novos direitos?) de maneira unilateral para a Turquia na regulação marítima entre os dois mares. São muitas perguntas. A Turquia estabelecerá regras diferentes para o tráfego marítimo no novo canal em comparação com a convenção que regulamenta o Bósforo? Poderia resolver, na ausência de qualquer autoridade ou tratado internacional, abrir ou fechar o trânsito por meio do canal para algumas bandeiras a seu exclusivo critério?

Impacto ambiental

Também haverá consequências a nível nacional.

Os especialistas dizem [20] que, devido a uma diferença de 50 cm entre o nível do mar de Mármara e o do mar Negro, a conexão impactará na salinidade dos dois mares e na vida dos organismos que lá habitam. Além disso, o canal passará através da laguna de Küçükçekmece, uma importante parada para as aves migratórias.

Em uma entrevista ao The Guardian, o secretário da União de Câmaras de Engenheiros e Arquitetos Turcos de Istambul, Cevahir Efe Akçelik, disse [21]:

The salinity of Black Sea is less than Marmara Sea, and the organic content of Black Sea is much higher than that of Marmara Sea. Some oceanographers say 30 years later there will be no oxygen left in the Marmara Sea. It’s a really harmful and dangerous project.

A salinidade do mar Negro é menor que a do mar de Mármara, e o conteúdo orgânico do mar Negro é muito maior que o do mar de Mármara. Alguns oceanógrafos afirmam que dentro de 30 anos não haverá mais oxigênio no mar de Mármara. É um projeto realmente danoso e perigoso.

O canal também poderia colocar em risco o lago Terkos e Sazlıdere, que fornecem água potável para Istambul.

Akçelik disse ao The Guardian [21] que “se essas reservas forem perdidas, não haverá fonte alternativa de água no lado europeu de Istambul. Em vez disso, o governo teria que bombear água do rio Sakarya, no interior do lado asiático”.

O prefeito de Istambul, Ekrem İmamoğlu, é uma das vozes que mais critica o canal. Em dezembro de 2019, ele o chamou [22] de “projeto de assassinato” e desde então tem feito campanhas [23] contra o projeto.

De acordo com os resultados de uma pesquisa [24] realizada pela prefeitura de Istambul em agosto de 2020, mais de 60% dos habitantes de Istambul são contra à construção do canal.

Entretanto, o Ministério do Meio Ambiente e Urbanização aprovou [25] os planos para o canal em 17 de janeiro de 2020, ignorando as objeções da sociedade civil. Em uma entrevista ao The Guardian, Gürkan Akgün, diretor do Departamento de Zoneamento e Urbanização da prefeitura de Istambul, disse [21] que “o extremo norte de Istambul é o sistema de suporte vital para todos nós. Tudo desaparecerá irreversivelmente com este projeto”.