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A reviravolta do governo francês sobre línguas regionais

Categorias: Europa Ocidental, França, Arte e Cultura, Etnia e Raça, Governança, Indígenas, Língua, Mídia Cidadã, Protesto

Captura de tela de vídeo do YouTube [1] dos protestos no País Basco em apoio ao ensino imersivo

A política linguística da França há muito colocou o francês como a única “língua da República” e tem ignorado ou até banido o uso de mais de 20 línguas minoritárias faladas em todo o país. Avançando para o século 21, as atitudes mudaram graças a um interesse renovado sobre culturas regionais, bem como algumas medidas legislativas. O debate foi reacendido por uma nova lei aprovada em maio deste ano, que tem como objetivo proteger as línguas regionais francesas.

A nova legislação, intitulada Lei de 21 de maio de 2021, visa a proteger e promover as línguas regionais [2]. Também conhecida como a Lei Molac, em homenagem ao deputado Paul Molac [3], que liderou o projeto de lei) incentiva alguns avanços na utilização das línguas regionais. O projeto reconhece a importância dessas línguas, em termos gerais, ao qualificá-las como “tesouro nacional” e em apoiar o seu ensino. O projeto também obriga as comunidades locais a “contribuir com taxas para as escolas particulares que oferecem educação bilíngue”.

Contudo, a lei também tem uma série de falhas e continua a discriminar os falantes das línguas regionais em duas áreas: o ensino imersivo e o uso de diacríticos (uma marca utilizada na letra para indicar a mudança na pronúncia) específicos das línguas regionais em documentos de identidade.

Na França, o ensino imersivo consiste em colocar as crianças pequenas em um ambiente de aprendizagem no qual quase todas as disciplinas são ensinadas no idioma-alvo. Por exemplo, história ou matemática são ensinadas em bretão ou basco. Atualmente, há 14 mil crianças [4] recebendo esse tipo de educação na França. Isso representa 0,1% de todos os alunos franceses, número que aumenta constantemente [5].

A Bretanha abriu o caminho em 1977, ao criar as primeiras escolas Diwan, que oferecem ensino bilíngue em mais de 50 escolas em toda a região [6]. Seguiram-se as escolas Calandreta [7], escolas bilíngues do sul da França, que ensinam o idioma occitano, bem como escolas de outras línguas como alsaciano, corso e basco. Essas escolas são reconhecidas como comunitárias e financiadas pelo Estado e pelas famílias dos alunos. As escolas seguem um currículo aprovado pelo Ministério da Educação da França e têm status de “ensino privado contratado”, uma categoria que a maior parte das escolas Católicas particulares também se enquadram.

Na redação final da Lei 21 de maio, o Conselho Constitucional justificou a sua rejeição ao ensino imersivo em línguas regionais referindo-se ao Artigo 2º da Constituição francesa [8], que afirma que “a língua da República Francesa é o francês”.

Uma nação, uma língua

Para o Estado francês, a centralização é um elemento fundamental de sua identidade e isso inclui o papel da língua francesa.

O francês é uma língua romana derivada do latim. Na Idade Média, o latim evoluiu em dois grupos de falantes no atual território da França: as langues d’oc (línguas occitanas) faladas no sul e as langues d’oïl (línguas de oïl) faladas no norte.

Em 1539, a Portaria de Villers-Cotterêts [9], transformada em lei pelo Francisco I de França, foi o primeiro documento a declarar que o francês deveria ser usado no lugar do latim como a língua oficial de todos os documentos públicos. Embora inicialmente o francês tenha continuado uma língua minoritária que coexistia com outras línguas, tornou-se, gradualmente, a língua dominante e exclusiva em todos os campos da vida pública: governança, jurisprudência, educação, comércio, religião, literatura e imprensa.

No século 19, o sistema educacional começou a reforçar essa rejeição às línguas regionais, em particular quando o então ministro da Educação, Jules Ferry [10], proibiu o uso dessas línguas nas escolas sob a ameaça de punição. As escolas estaduais em todo o país exibiam placas com a famosa frase: “Proibido cuspir no chão ou falar bretão [11]” (ou basco, occitano ou qualquer outra língua regional).

Diversidade linguística em declínio acentuado

Hoje, um departamento do governo, a Delegação Geral para a Língua Francesa e as Línguas da França [12] (DGLFLF), é responsável de todas as línguas faladas na França. A DGLFLF divide todas as línguas além do francês em três categorias: as línguas regionais [13] faladas na França continental, as línguas não territoriais [14], como iídiche, romani ou língua de sinais e as mais de 50 línguas dos territórios ultramarinos da França [15], que incluem o kanak, o taitiano e o crioulo.

As 23 línguas regionais oficialmente reconhecidas representam a grande diversidade linguística da França. Isso inclui as línguas romanas (catalão, corso, occitano, franco-provençal), as germânicas (flamengo, alsaciano), as celtas (bretão) e as línguas não indo-europeias como o idioma basco.

Contudo, embora essas línguas fossem as línguas maternas de milhões de franceses até o século 19 [16], hoje o número de falantes é estimado em 2 milhões ou pouco menos de 3% da população da França continental. Por essa razão, o estado deve agir para conter esse declínio e encorajar o renascimento linguístico baseado na diversidade.

Uma política em constante mudança que parece se opor rotineiramente a reconhecer a pluralidade linguística e defender o francês

Contudo, a França mantém uma posição ambígua sobre o assunto das línguas regionais, oscilando entre a diversidade linguística e uma superproteção da língua francesa. Em 1992, o Estado francês fez questão de alterar a constituição da Quinta República para estipular pela primeira vez o status oficial da língua francesa, citado no mencionado Artigo 2º, a fim de proteger a língua francesa, que parecia em perigo diante do aumento do uso do inglês.

Ainda assim, a França assinou, mas se recusa a ratificar os 39 artigos da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias [17], citando novamente uma contradição com o Artigo 2º de sua Constituição. O tratado do Conselho da Europa [18] de 1992 visa a proteger a diversidade linguística na Europa e inclui “a necessidade de uma ação determinada para promover as línguas regionais ou minoritária a fim de protegê-las; a facilitação e/ou encorajamento do uso oral e escrito das línguas regionais ou minoritárias na vida pública ou privada; a provisão de recursos e meios adequados para o ensino e estudo de línguas regionais ou minoritárias em todos os níveis apropriados”.

Durante a revisão constitucional [19] de 2008, a constituição da França foi alterada para incluir essas línguas. O novo Artigo 75-1 declarou que “as línguas regionais são parte integrante da herança da França”. Nesse sentido, a única área que tem visto um relativo comprometimento do governo é a assistência financeira dada aos programas de rádio e TV, que se somam à iniciativa privada, principalmente para o alsaciano, basco [20], bretão [21], corso [22] e occitano [23].

Manifestações e retrocesso do Conselho Constitucional

Em maio, após o decreto da Lei de 21 de maio, muitas manifestações [24] aconteceram por toda a França para condenar a censura do ensino imersivo, que depende em grande parte do apoio financeiro do Estado. Petições [25] foram lançadas citando que o Artigo 2º da Constituição foi criado e apresentado como um método de proteção da língua francesa frente ao inglês. Deve ser observado que muitas escolas bilíngues francês-inglês na França praticam a imersão no idioma e não parecem estar sujeitas à essa lei.

Os ativistas também lembram que o presidente francês Emmanuel Macron defendeu [26] as línguas regionais no dia 26 de maio e se opôs claramente à decisão do Conselho Constitucional. O Conselho respondeu posteriormente a isso no dia 16 de junho [27], esclarecendo que o ensino imersivo é inconstitucional somente na educação estadual, mas é permitida no setor privado.

Os ativistas agora estão focados na definição do termo “escola comunitária [28]”, já que pode ser interpretado que esse tipo de escola também pertence ao setor público. Esse jogo de pingue-pongue político e legislativo, portanto, parece que vai continuar. Resta saber se, em 2 de setembro, os alunos que falam alsaciano, basco, bretão, corso ou occitano conseguirão retornar às escolas.