A morte recente da estudante de medicina de 24 anos, Vismaya Nair, no estado indiano de Kerala gerou indignação geral e reacendeu discussões sobre dotes e violência doméstica na Índia. Apesar de serem ilegais, dotes são amplamente vistos como fonte de orgulho e status entre famílias dos dois lados. O lado obscuro da prática inclui discriminação de garotas, feminicídio, abuso e violência sem fim contra noivas no país. A morte de Vismaya renovou o clamor por uma solução permanente que acabaria com essa prática prejudicial.
O dote na Índia
Desvendar as origens obscuras do dote na Índia não é fácil. Dotes são essencialmente um pagamento feito pela família da noiva em dinheiro vivo ou em bens em troca do casamento. Espera-se que as mulheres renunciem a seus direitos a herança ou propriedade em troca do dote, o que muitas mulheres são forçadas a aceitar pela lealdade familiar ou medo de desentendimentos. Mulheres que se recusam a oferecer um dote muitas vezes não podem se casar e podem ser inteiramente excluídas do contato com a família.
O valor do dote geralmente depende de fatores diversos incluindo religião, casta, localização, educação, identidade de classe, prestígio e pretensões sociais – com o poder de decisão reservado totalmente ao noivo e sua família. Exigir um dote tornou-se ilegal na Índia em 1961, mas a prática persiste. Garantir o cumprimento da lei tem sido um desafio. Dados sobre 40.000 casamentos que aconteceram entre 1960 e 2008 na Índia rural revelaram que mais de 95% dos casamentos analisados incluíam algum tipo de dote.
Dotes são popularmente concedidos sob a justificativa de serem um presente voluntário para evitar implicações legais e são explicados como necessários para garantir o conforto da filha em seu novo lar, tornando a situação difícil de ser regulada.
Provas casuais e quantitativas confirmam que para uma grande quantidade de mulheres na Índia, acesso a recursos e liberdade obtidos através da educação desaparecem quando elas se casam. Espera-se que as mulheres sejam invisíveis, assumam múltiplas funções e abdiquem de escolhas pessoais pelo casamento -muitas vezes com o estímulo da família. Nos anos recentes o dote passou a fazer parte de comunidades onde a prática nem mesmo existia antes.
O dote tira vidas
Em um dia de verão em 1979, a recém-casada Tarvinder Kaur, de 24 anos, foi molhada com querosene e queimada viva pela sua sogra e cunhada por não ter contribuído com um dote grande o suficiente. Enormes chamas engoliram Tarvinder e a reduziram a cinzas. Seu irmão, H.S. Bhandari, consumido pelo luto e desolação, disse ao India Today: “Se apenas nós tivéssemos percebido o quanto a situação era séria. Achamos que era apenas outro caso de ajustes matrimoniais e que em alguns dias tudo estaria de volta ao normal. Na verdade, ela estava desesperada, e queria voltar para casa”.
Surgiram protestos e grupos de direitos das mulheres tomaram as ruas, corajosamente exigindo julgamento imparcial e reparações justas. A história de Tarvinder criou o cenário para o movimento de 1980 contra assassinato por dote e violência de gênero, levando a históricas leis antidote na Índia. Nascendo de uma crescente consciência feminista, essas leis criaram um sólido caminho feito do ponto de vista de sobreviventes. Apesar disso, dotes e violência relacionada a eles continuaram causando desilusão, raiva e sofrimento pessoal.
O que aconteceu com Vismaya?
Em 21 de junho de 2021, quarenta e dois anos depois, Vismaya – uma estudante de medicina que tinha se casado há pouco mais de um ano com Kiran Kumar, um funcionário do governo graduado, foi encontrada morta em sua casa na costa de Kerala, no sul da Índia. Seu dote incluía 100 soberanos de ouro, um acre de terra, e um carro no valor de 10 lakh (aproximadamente R$ 67.000,00). Vismaya enfrentava graves abusos físicos e emocionais de Kiran por não atender suas expectativas a respeito do dote, e seus pais e sogros sabiam disso.
Vismaya aparentemente sentiu necessidade de insistir e tentar fazer dar certo. Ela estava preocupada com os comentários e não tinha liberdade para decidir sobre sua vida. Presa entre uma família que queria que ela se comprometesse e um ambiente doméstico no qual a violência era facilmente normalizada, a atormentada Vismaya estava exausta de lutar para sobreviver. Foram feitas investigações, Kiran foi preso e sua fiança foi negada.
Incontáveis histórias similares à de Vismaya e Tarvinder circularam na Índia ao longo dos anos. Os dados de 2019 do Escritório Nacional de Registros de Crimes da Índia apresentam uma imagem sombria. Os números revelam que os crimes horrendos subiram em assustadores 7,3% de 2018 a 2019, com aqueles vindos de contextos de pobreza e marginalização enfrentando violência desproporcionalmente mais alta.
Reações extensas
A morte de Vismaya provocou raiva e debate nas redes sociais, com muitos exigindo um fim das práticas de dotes ilegais. Muitos usuários especularam sobre as razões por trás da permanência das práticas de dote. Radhika Roy, uma advogada e ativista, opinou:
This is so tragic. Much of this stems from the premium that is placed on marriage as the be-all and end-all of a woman’s existence; that without a husband, no matter how cruel, a woman’s life does not amount to anything. https://t.co/oEuatAp6C0
— Radhika Roy (@royradhika7) June 22, 2021
Isso é tão trágico. Muito disso tem origem na importância que é dada ao casamento como a razão de ser e a finalidade da existência de toda mulher; que sem um marido, não importa o quão cruel, a vida de uma mulher não significa nada.
O público também explorou as raízes da violência de gênero como desigualdade, patriarcado e outros tipos de opressão. Alguns afirmaram que descolonizar o trauma, gênero e poder e reconhecer que as famílias podem ser lugares de violência eram fundamentais para a mudança.
A jornalista Shepali Bhat refletiu em um thread no Twitter sobre o trauma intergeracional que ela enfrentou quando criança, vendo sua mãe passar por violência doméstica, explicando porque mulheres que sofrem abuso não podem “simplesmente ir embora”:
A trauma therapist once told me our mind suppresses memory of a trauma, the body stores it. When something triggers that trauma, our body relives its horror. Reading this triggered the childhood trauma of witnessing my mother go through domestic violence. I'll talk about it today https://t.co/GsqtOAHGEe
— Shephali Bhatt (@ShephaliBhatt) June 22, 2021
Uma terapeuta do trauma uma vez me disse que nossa mente suprime a memória de um trauma, o corpo a guarda. Quando surge um gatilho para esse trauma, nosso corpo libera o horror. Ler isso reacendeu meu trauma de infância de testemunhar minha mãe passar por violência doméstica. Vou falar disso hoje.
Rogan doh disse no Reddit:
I might sound insensitive, but the girl's parents deserve blame as well. In spite of a history of abuse (one occasion even in front of the father) they did not take any steps to keep her away from the environment. It's sad that in our country “log kya kahenge” [what will people tell] and oh God, my daughter might end up a divorcee who overcomes the need to protect the physical and mental well being of their child.”
Eu talvez pareça insensível, mas os pais da garota são culpados também. Apesar da história de abuso (em uma ocasião inclusive na frente do pai), eles não tomaram nenhuma medida para mantê-la longe daquele ambiente. É triste que no nosso país “log kya kahenge” (o que as pessoas vão dizer) e ah! Deus, minha filha pode acabar sendo uma divorciada que supera a necessidade de proteger o bem-estar físico e mental de sua filha.
O ministro-chefe de Kerala Pinarayi Vijayan tuitou em solidariedade e prometeu uma série de medidas:
As a society, we need to reform the prevailing marriage system. Marriage must not be a pompous show of the family's social status and wealth. Parents have to realise that the barbaric dowry system degrades our daughters as commodities. We must treat them better, as human beings.
— Pinarayi Vijayan (@vijayanpinarayi) June 23, 2021
Como sociedade, precisamos reformar o sistema matrimonial predominante. O casamento não pode ser uma exibição pomposa do status social e econômico da família. Os pais precisam perceber que o sistema bárbaro dos dotes reduz nossas filhas a mercadorias. Devemos tratá-las melhor, como seres humanos.
No entanto, registros do passado provam que departamentos locais e governos têm fracassado bastante. Acesso a apoio médico e de saúde mental continua difícil para muitas. A cultura pop e filmes regionais repetidamente glorificam a violência de parceiros íntimos como um efeito colateral do amor e focam temas como honra familiar, vigilância excessiva, estupro marital, controle e abuso doméstico. Ainda, inteiras gerações de homens jovens continuam a descaradamente pedir dotes apesar de alegarem terem valores modernos. Apenas um movimento militante de base tem o potencial para reformular o sistema e restaurar a justiça.