Captura de tela de um vídeo do YouTube explicando o papel da curultai. A legenda em russo pode ser traduzida como: “Há muito tempo, nações nômades costumavam resolver questões importantes durante curultais”.

Com um governo mais nacionalista no poder desde o final de 2020, o Quirguistão tem fortalecido progressivamente instituições tradicionais que outrora foram marginalizadas. A expansão do poder presidencial, selada em um referendo de baixa participação no dia 10 de janeiro, agora está lado a lado com a crescente relevância da curultai, uma instituição política tradicional de nações nômades na Mongólia e Ásia Central.

O Império Mongol trouxe a curultai à Ásia Central no século 13, durante sua ocupação da região. Com a origem no verbo mongol “khur” (reunir), a instituição curultai servia como uma assembleia para as elites locais tomarem decisões políticas e militares.

As Curultais ressurgiram na região após o colapso da União Soviética, que baniu a curultai, e existem no Quirguistão desde 1993, com diferentes níveis de destaque cultural e político.

Um rápido retorno à tradição

Askar Akayev, presidente do Quirguistão de 1991 a 2005, restaurou a curultai. No entanto, em 2004, as curultais se aliaram à oposição e aprovaram de imediato a assunção política de Kurmanbek Bakiyev, que se tornou presidente do país e expandiu o papel da assembleia, que era financiada apenas por meio de contribuições privadas e doações.

Em 2010, enquanto perdia influência política, Bakiyev reorganizou a instituição, nomeando-a Curultai de Consentimento e incluindo 750 representantes de distritos rurais, centros urbanos e diversas denominações religiosas.

Após as mortais brigas étnicas de 2010, a assembleia teve um papel importante na superação das divisões e na reconstrução do país.

A palavra curultai só apareceu no artigo 52 da Constituição de 2010, que estabeleceu sua situação oficial como corpo consultivo. Em outubro de 2010, após referendo e eleição parlamentar, o papel da curultai se tornou mais proeminente. Ao longo do ano de 2011, as curultais foram realizadas a nível regional e nacional.

Nos últimos anos, o retorno dessa instituição tem interessado aos políticos cada vez mais.

Em 2019, membros do Jogorku Kenesh, o parlamento quirguiz, enviou um projeto de lei “Sobre a Curultai” que teria fortalecido ainda mais o papel da instituição, mas foi rejeitado pelo parlamento.

Em outubro de 2020, após demonstrações violentas que duraram semanas e desequilibraram o governo quirguiz, um novo governo nacionalista, liderado pelo presidente Sadyr Japarov, iniciou uma discussão a respeito da curultai.

O povo do Quirguistão votou, em janeiro de 2021, nas eleições presidenciais, solidificando a liderança de Japarov e, em um referendo constitucional, que basicamente mudava a forma de governo de parlamentarista para presidencialista.

Em abril do mesmo ano, um novo referendo constitucional consagrou a forma presidencialista de governo e deu maiores poderes à curultai.

O debate sobre curultais

De acordo com os defensores, a curultai ajudaria a controlar a ação de indivíduos eleitos graças à pressão do clã, com o qual os quirguizes ainda se identificam fortemente. Os apoiadores da curultai estão convencidos de que, já que o governo no país é formado principalmente por quirguizes, mecanismos tradicionais de influência são necessários. A curultai busca restaurar a espiritualidade tradicional do povo quirguiz como um sistema de responsabilidade coletiva do clã (povo) para com os líderes nomeados e com o serviço dos líderes ao povo. A curultai é vista como o único mecanismo capaz de forçar o governo a servir seu povo.

A oposição afirma que existe a possibilidade dessa iniciativa esconder uma tentativa de centralizar o poder na figura do presidente com um “parlamento de bolso” e a curultai ao seu dispor. Conforme dizem os críticos, não há necessidade de regredirmos na história; em vez disso, é necessário buscar novas abordagens para resolver as questões que surgirem.

A nova constituição, aprovada em fevereiro em meio alegações de irregularidades, não detalha o processo pelo qual os membros da curultai serão selecionados. Observadores também já notaram que seu mandato é praticamente indistinguível do mandato do parlamento. Ilyana Zhedigerova, especialista jurídica da ONG Precedent, disse à Global Voices que o funcionamento da curultai não é claro.

We can assume that the Kurultai will, to some extent, duplicate the functions and powers of the Jogorku Kenesh. Kurultai members will essentially be duplicates of parliamentary deputies. But the concrete way in which Kurultai will work is still unknown.

Podemos supor que a curultai irá, em alguma medida, duplicar as funções e poderes do Jogorku Kenesh. Os membros da curultai serão essencialmente duplicatas dos representantes parlamentares, mas a forma concreta pela qual a curultai atuará ainda é desconhecida.

Em uma entrevista com o serviço quirguiz da Radio Free Europe, Saniya Toktogazieva, especialista em lei constitucional da American University of Central Asia, avisou que a curultai poderia levar até o autoritarismo.

In authoritarian states, all dictators like such quasi-constitutional bodies. Why? Because they are not elected and not accountable. The Kurultai will always consist of ‘loyalists’ to the president. [Former President of Kazakhstan Nursultan] Nazarbayev, with the help of the People's Assembly, dissolved the first parliament. At one time, [former President of Kyrgyzstan Kurmanbek] Bakiyev wanted to do the same thing. With the help of such institutions, dictatorships were established.

Em estados autoritários, todos os ditadores gostam de instituições quase constitucionais. Por quê? Porque não são eleitos e nem responsabilizados. A curultai sempre será composta por membros leais ao presidente. [O antigo presidente do Cazaquistão, Nursultan] Nazarbayev, com a ajuda da Assembleia Popular, dissolveu o primeiro parlamento. Em dado momento, [o antigo presidente do Quirguistão, Kurmanbek] Bakiyev tentou fazer a mesma coisa. Com a ajuda dessas instituições, ditaduras se estabeleceram.

Com a nova constituição a curultai terá voz em todos os três poderes, de acordo com Zhedigerova.

Народный курултай будет иметь право законодательной инициативы, может вносить предложения Президенту об освобождении членов кабинета министров. Представитель Народного Курултая будет входить в состав Совета по делам правосудия, который заменить Совет по отбору судей, а Торага ЖК КР будет обеспечивать взаимодействие Жогорку Кенеша, в том числе с Народным Курултаем.

A curultai terá o direito de iniciar legislações, fazendo propostas para o presidente sobre dispensar membros do Gabinete de Ministros. Um representante da curultai atuará no Conselho de Justiça, que substituirá o corpo de juízes e o Toraga do parlamento garantirá a interação do Jogorku Kenesh, inclusive com a curultai.

A constituição quirguiz já foi alterada onze vezes desde a independência do país, em 1991. Cada um dos presidentes alterou as regras do jogo durante seu mandato. Japarov o fez imediatamente após tomar posse do cargo presidencial. Agora, resta observar o papel exercido pelas curultais em mais uma nova era para o Quirguistão.