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Com mais de 55 mil indígenas atingidos no Brasil, Covid-19 matou o último guerreiro Juma

Categorias: Mídia Cidadã

Indígena recebeu “tratamento precoce”, com medicamentos não recomendados pela OMS | Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real

Esse texto [1] foi escrito por Luciene Kaxinawá, publicado originalmente em fevereiro de 2021 e republicado aqui em uma parceria entre Global Voices e a agência Amazônia Real [1]

“Nosso pai lutou muito, foi um guerreiro, e sua luta nós vamos continuar”. Essa foi a mensagem de Borehá, Maitá e Mandeí ao pai e líder indígena Aruká Juma [2], que morreu pela Covid-19, no dia 19 de fevereiro de 2021.

A família e aliados do povo Juma estimam que Aruká tinha entre 86 e 90 anos — a idade exata é desconhecida, já que ele não possuía certidão de nascimento. O território do povo Juma fica na parte sul do estado do Amazonas, Brasil, uma área florestal sob forte pressão de desmatamento [3]

“A Coiab e Apib avisaram que os povos indígenas de recente contato estavam em extremo risco. O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká”, disse na ocasião uma nota assinada por organizações indígenas como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi).

Até o final de maio de 2021, segundo o boletim da Coiab [4], a pandemia havia atingido 152 povos indígenas na Amazônia brasileira, com 38.848 casos confirmados e 946 mortes registradas. Só no estado do Amazonas foram 9.637 casos e 318 mortes.

A Apib [5] contabilizou mais de 55 mil casos confirmados e 1.124 mortes de indígenas em todo o país, até o dia 24 de junho. Na mesma data, o painel da Sesai [6] (Secretaria Especial de Saúde Indígena, ligada ao governo federal) registrou mais de 50 mil casos e 728 mortes.

A Coiab [4] acompanha os casos desde o dia 19 de março de 2020, quando foi registrada a morte de uma indígena Borari [7], no estado do Pará. A Sesai, porém, considera como primeira morte de indígena relacionada à Covid-19 no país a morte de um menino Yanomami, de 15 anos [8], no dia 9 de abril de 2020, em Roraima. Os dois casos em estados da região norte do Brasil

A morte de Aruká por insuficiência respiratória aguda, decorrente da infecção pelo novo coronavírus, ocorreu em um hospital de campanha, em Porto Velho, capital do estado de Rondônia, que faz divisa com o Amazonas. A transferência para outro estado, e não para Manaus (capital do AM), se deu pela distância entre as duas áreas, tendo em vista característica geográfica da região.

Antes de ser transferido para um leito de UTI, Aruká Juma recebeu no mês de janeiro o que é anunciado no Brasil como “tratamento precoce” contra a Covid-19, em um hospital de Humaitá, no sul do estado do Amazonas [9].

Os medicamentos, que incluem ivermectina e azitromicina [10]incentivados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, [11] são considerados ineficazes para a doença, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A medicação prescrita a Aruká, que tinha hipertensão, foi revelada à agência Amazônia Real pela Casa de Atendimento de Saúde Indígena (Casai) de Humaitá (AM), órgão do Ministério da Saúde.

Os membros da família de Aruká são considerados os últimos sobreviventes do povo Juma, etnia do tronco linguístico Tupi Kagwahiva, do qual também fazem parte outros povos, como os Uru-Eu-Wau-Wau, com quem as filhas de Aruká se casaram para evitar a extinção deste povo.  

Na juventude, Aruká presenciou o maior massacre que seu povo sofreu ao defender o território da invasão de seringueiros e comerciantes de castanha na década de 1960. Os primeiros relatos sobre os Juma [12], ainda no século 18, indicaram que o povo tinha em torno de 15 mil pessoas.

Após sucessivos massacres, eles foram reduzidos a 100, ainda na década de 1940. A partir da década de 1960, com novos ataques de invasores, foi reduzindo gradativamente, até a quase extinção.

No final dos anos de 1990, o líder conseguiu a demarcação do território [12] localizado no município de Canutama, no sul do Amazonas.

Batalha contra a Covid-19

Aruká Juma apresentou sintomas de Covid-19 junto de outros 12 familiares, que viviam com ele no território indígena, no começo de janeiro. No dia 17 do mesmo mês, ele foi encaminhado para o Hospital Sentinela, no município de Humaitá, vizinho de Canutama, iniciando uma série de internações e altas médicas. 

No dia 2 de fevereiro, Aruká Juma piorou [13], foi entubado e precisou ser transferido, já que o hospital onde estava – o segundo que passou por internação – não tinha leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma mobilização de órgãos públicos e organizações de defesa dos povos indígenas foi realizada para salvar sua vida. Mesmo levado ao Hospital de Campanha em Porto Velho, ele morreu.

Em todo o período de internações nos meses de janeiro e fevereiro, a agência Amazônia Real solicitou os boletins médicos sobre o estado de saúde de Aruká Juma e informações sobre quais medicamentos ele estava recebendo.

Uma profissional da Casai Humaitá, órgão da Secretaria Especial de Saúde Indígenapelo Whatsapp, disse à reportagem que o líder indígena recebeu medicamentos como azitromicina, ivermectina e cloroquina no Hospital Sentinela, de Humaitá.

Procurado pela reportagem, o assessor do Conselho Distrital Indígena, do Ministério da Saúde, Aurélio Tenharim, disse que quando foi infectado pelo vírus e teve Covid-19 também recebeu o “tratamento precoce”, confirmando a administração dos remédios, inclusive no ancião Juma. “O mesmo medicamento que eu tomei, ele tomou também. O médico prescreve aquilo lá [tratamento precoce]”, afirmou.

As filhas de Aruká Juma, Borehá, Maitá e Mandeí afirmam que não foram informadas sobre a administração do tratamento, sem eficácia científica comprovada, no pai.

Crise na saúde

No dia 11 de janeiro, o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello [14], que deixou o cargo em março, esteve em Manaus e recomendou publicamente [15] o “tratamento precoce” no lançamento do Plano Estratégico de Enfrentamento à Covid-19 no Amazonas.

O Amazonas enfrentava o colapso no sistema de saúde [16] com falta de leitos de UTI e oxigênio nos hospitais.

“Nós não estamos mais discutindo se esse ou aquele profissional concorda. Os conselhos federais e regionais de saúde já se posicionaram. Os conselhos são a favor do tratamento precoce, do diagnóstico clínico. Eu conversei pessoalmente, por vídeo, com todos eles”, disse ele na ocasião.

“O diagnóstico é do profissional médico. O tratamento é do profissional médico. E a orientação é precoce. (…) Não vai matar ninguém, mas salvará no caso da Covid”, completou ele.

Pazuello está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF)  [17]por suposta omissão na crise sanitária do Amazonas e a questão da recomendação do tratamento, com medidos sem eficácia comprovada, é uma das pautas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado [18], que analisa a condução dada pelo governo Bolsonaro à pandemia no Brasil.

A reportagem da Amazônia Real procurou a Secretaria Municipal de Saúde de Humaitá, responsável pelo Hospital Sentinela e a Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, para que os órgãos comentassem sobre o “tratamento precoce” prescrito no atendimento a Aruká Juma e não teve resposta.

A Sesai emitiu uma nota de pesar, por meio do Distrito Sanitário Especial Indígena de Porto Velho. “O Dsei tomou todas as providências possíveis para atender o paciente e permanece prestando assistência à família. (…) A Sesai e o Dsei Porto Velho manifestam profundo pesar pelo falecimento desse grande guerreiro e cacique”, diz o texto.

Luto por Amoim (avô)

A historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, da organização Kanindé, atua como aliada dos Uru-Eu-Wau-Wau e Juma, disse que o momento é crítico para a saúde indígena dos povos da Amazônia.

Ela soube da morte de Aruká Juma no momento em que estava acompanhando a vacinação contra Covid-19 dos povos Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia.

“Vocês precisam entender a situação de saúde que está vivendo o povo indígena do Brasil e da Amazônia de intensa pressão, intensa invasão de suas terras, e o atendimento de saúde que é precário”, diz ela.

O Ministério Público Federal de Rondônia divulgou uma nota lamentando a morte de Aruká Juma. “Na metade da década de 1960, o povo Juma quase foi extinto devido aos massacres que os demais parentes sofreram nas décadas anteriores por parte de seringueiros, madeireiros e pescadores no território, que fica margeado no rio Assuã, em Canutama, Amazonas. Aruká era um dos sobreviventes da sua etnia”, diz o texto.

Funeral de um guerreiro Juma

O funeral de Aruká aconteceu no dia 18 de fevereiro, na aldeia Juma, no município de Canutama, sul do Amazonas. Várias lideranças foram convidadas para fazer uma homenagem ao líder em uma ponte, antes do cortejo fúnebre seguir para o território indígena Juma.

À reportagem, Mandeí Juma, uma das filhas, contou que todos os adornos e adereços que pertenciam ao guerreiro seriam enterrados com ele.

A filha mais velha do líder, Borehá Juma, disse que daqui para frente pretende seguir os passos do pai. “Eu quero virar igual ele agora para lutar igual ao meu pai. Meu pai era um guerreiro mesmo. Ele era cacique, eu fui cacique e agora a linhagem acabou”, afirma ela.

Além das três filhas Juma, Aruká deixou 14 netos, bisnetos, e uma filha de um relacionamento com uma indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Os netos de Aruká são filhos de indígenas Uru-Eu-Wau-Wau (cujo território fica em Rondônia, que faz divisa com o Amazonas), com quem Borehá, Maitá e Mandeí se casaram. Pelo sistema patrilinear destes povos, os netos e os filhos passaram a ser Uru-Eu também. Aruká foi o último de seu povo.