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Proposta de senador ressuscita ideias restritivas à lei do aborto

Categorias: América Latina, Brasil, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Política, Saúde

Protesto de mulheres em Brasília pelo aborto seguro e legal no país, em 2018, usando figurinos de O Conto da Aia | Imagem: Mídia Ninja/CC 2.0

Um projeto de lei [1] no Senado brasileiro tenta dificultar o acesso [2] ao aborto legal e seguro, mesmo em casos que já são garantidos por lei.

A proposta inicial [3] diz que a lei irá “salvaguardar a vida do nascituro desde a concepção” e propõe a criação de um fundo social de ajuda financeira para os filhos das vítimas de estupro se a mulher der continuidade à gravidez. Ainda, o projeto de lei diz que a mulher deve informar o pai sobre a criança, mesmo se ele for um agressor sexual.

O aborto é atualmente legalizado no Brasil em apenas três situações [4]: quando a gravidez apresenta risco de vida para a mulher, se o feto for anencéfalo (quando o cérebro não foi totalmente formado), ou quando a gravidez é resultado de estupro.

Fora desses contextos, a prática do aborto é considerada crime [5], com sentença de prisão de um a três anos para a mulher, e de um a quatro anos para aqueles que executarem o procedimento.

Uma manifestante, em 2017, com um cartaz que diz: “É pela vida das mulheres. Estuprador não é pai. Não à PEC 181 (lei que poderia afetar direitos ao abortamento legal) | Imagem: Mídia Ninja/CC 2.0

O projeto de lei não é exatamente uma ideia nova — alguns anos atrás [6], um projeto similar [7] foi apresentado no Congresso Nacional, conhecido como Estatuto do Nascituro [8], pretendia proibir o aborto em qualquer circunstância no país. Um outro fez parte dos protestos de 2017 [9]. Um abaixo-assinado [10] online contra a bolsa-estupro obteve mais de 192.000 assinaturas desde 2018 [11], quando foi lançado como protesto contra o Estatuto do Nascituro.

Para os críticos, o novo projeto de lei é uma imitação da proposta anterior [12].

O projeto de lei foi apresentado pelo senador Eduardo Girão, do partido de centro-direta Podemos [13], em dezembro de 2020. Girão propôs o que ele chama de “Estatuto da Gestante [14]“, que, segundo ele, considera um avanço “do ponto de vista humanitário [15]“, ao proteger mulheres grávidas e responsabilizar os homens.

Movimentos feministas, por outro lado, veem a ajuda financeira como uma desculpa para evitar o direito ao aborto seguro, e chamaram a ideia de “bolsa estupro [16]“.

Como em breve o projeto será votado no Senado Nacional, ativistas dos direitos reprodutivos começaram a usar as hashtags #GravidezForcadaÉTortura [17] e #BolsaEstupro [18] no Twitter como forma de protesto.

Após críticas, a relatora do projeto, senadora Simone Tebet, do partido de centro-direita MDB, declarou que fará mudanças no texto original [11]. O próprio senador Girão afirmou, em março, que ele retiraria a proposta do auxílio financeiro do projeto, segundo a Revista Crescer [19].

A Global Voices tentou entrar em contato com o gabinete da senadora Tebet, mas não recebeu resposta até a publicação deste artigo.

Global Doctors for Choice [20] (Rede Médica pelo Direito de Decidir), uma rede internacional de médicos que defende o amplo acesso a cuidados de saúde reprodutiva,  publicou uma declaração [21] considerando a proposta “um verdadeiro retrocesso dos direitos humanos fundamentais no país”.

“Não resolve apenas retirar alguns tópicos desse estatuto. No movimento de mulheres, estamos lutando para que ele seja arquivado”, disse [22] a médica Maria José de Oliveira Araújo, integrante do grupo, ao jornal Brasil de Fato, em abril.

Jolúzia Batista, que trabalha no Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), uma ONG feminista e antirracista, também disse, ao mesmo jornal [22], que o projeto é uma armadilha conservadora para retirar a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos.

“O Estatuto elimina a possibilidade de que uma mulher decida sobre seu próprio corpo, sua própria vida e os projetos que deseja para si. Entendemos que para conquistarmos um verdadeira democracia, um dos pontos centrais é que as mulheres possam decidir sobre seus próprios corpos”, ela disse.

“Como se as mulheres não tivessem nenhum direito”

Apesar de ser chamado “Estatuto da Gestante [23]“, o projeto de lei não inclui realmente políticas públicas ou elementos direcionados aos direitos das gestantes, segundo as ativistas.

Por exemplo, no 8º Artigo [23], consta um trecho que tem sido fortemente repudiado por organizações de direitos da mulher, que proíbe qualquer dano causado à “criança por nascer” devido a “ato ou decisão de qualquer de seus genitores”, o que poderia penalizar médicos que realizam abortos legais [19].

Organizações de direitos das mulheres também criticam o 10º Artigo [24], pois proíbe à gestante “negar ou omitir” informações sobre a paternidade para o pai biológico. Isso significa que ela seria obrigada a fornecer informações para o pai — em alguns casos, um estuprador — sobre a criança, “sob pena de responsabilidade”.

“Essa obrigação de informar o pai sobre a criança — um estuprador — “sob pena de responsabilidade”, é muito violenta. É como se a mulher não tivesse nenhum direito, e o nascituro e o homem tivessem todos os direitos”, disse Luciana Boiteux, professora de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de moções no Superior Tribunal Federal para a descriminalização do aborto no país, na página Congresso em Foco [25].

Aborto na América Latina

O aborto é considerado crime, em algumas ou todas as circunstâncias, na maioria dos países da América Latina, segundo um estudo do Centro para Direitos Reprodutivos [26]. No Brasil, há 40 projetos [27] na Câmara propondo algum tipo de restrição à legislação atual, segundo o site UOL.

Mesmo onde é permitido, interromper uma gravidez nem sempre é fácil devido à criminalização social e ao estigma, falta de clínicas e profissionais qualificados, e ausência de planejamento familiar e políticas de educação sexual.

Existe ainda o conceito de “objeção de consciência” — quando médicos se recusam a realizar abortos por razões pessoais. Para a pesquisadora e antropóloga Debora Diniz, isso tem sido utilizado como um instrumento de poder e abuso [28], como ela argumentou no evento “Quebrando o tabu sobre aborto [29]“, no dia 7 de abril 2021.

“Quando perguntamos se alguém é a favor ou contra o aborto, o que recebemos como resposta não é o que as pessoas pensam, mas mentiras. O que domina é a moralidade baseada em opiniões públicas, que não representam necessidades, direitos ou escolhas das mulheres. Elas representam o patriarcado e a hegemonia sobre como responder essa pergunta corretamente”, ela disse durante o evento.

A América Latina e o Caribe têm um dos maiores índices de aborto do mundo e as leis mais severas, que colocam as mulheres na prisão por suspeita de aborto, segundo Diniz.

O Insituto Guttmacher [30] demonstra que os índices de gravidez indesejada são maiores nos países com acesso restrito ao aborto, e menores nos países onde o procedimento é legalizado.

“Em algum momento da vida, as mulheres brasileiras vão cruzar a linha entre a legalidade e a clandestinidade porque uma em cada cinco mulheres aborta até os 40 anos”, disse Diniz.

Em 30 de dezembro de 2020, a Argentina se tornou um dos poucos países da América Latina, junto com Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Porto Rico, onde o aborto é legalizado em qualquer situação, se for realizado nas primeiras semanas de gravidez e estiver de acordo com as diretrizes legais.

O aborto também é legalizado na Cidade do México e no estado Mexicano de Oaxaca [31]. Alguns estados Mexicanos, porém, ainda consideram a interrupção da gravidez punível com até 30 anos de reclusão [32].

O aborto é ilegal em qualquer circunstância em El Savador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Haiti. Outros países da região permitem o aborto em alguns casos.

Horas depois da legalização do aborto [33] na Argentina, o presidente Jair Bolsonaro publicou um tuíte [34] lamentando a decisão:

Uma pesquisa de 2017 [36] indicou que quase 60% dos brasileiros eram favoráveis à legalização do aborto em casos de estupro. Outra pesquisa, na página do Senado [3], mostra que 87% dos brasileiros se opõem ao projeto de lei de Girão, com mais de 291.000 votos contra a proposta e 42.560 votos a favor.

“A Lei Penal não é o melhor caminho para proteger as questões de saúde, e o aborto é uma questão de saúde”, disse Diniz.