O consumo de produtos agrícolas brasileiros por parte da China cresceu fortemente em 2020, reacendendo o debate a respeito dos impactos ambientais de bens produzidos para o mercado chinês e sobre quem é o culpado e quem se beneficia.
A China tornou-se o maior comprador [1] de produtos brasileiros na última década. Esse crescimento nas exportações tem sido acompanhado pela retórica nacionalista brasileira que acusa a China de “comprar” o Brasil e destruir o seu ecossistema. Ainda assim, órgãos governamentais brasileiros são responsáveis pelo uso e proteção de terras. Críticos dizem que as acusações de destruição do meio ambiente do Brasil feitas pelo governo brasileiro contra a China são uma forma de alinhamento com políticas populistas, mesmo que o setor agrícola brasileiro lucre bastante com o comércio [2] com a China.
O The Guardian [3] relata um crescimento de 76% nas exportações de carne bovina do Brasil para China em 2020 se comparado ao ano anterior. A carne bovina brasileira representou 43% de toda a carne importada pela China no ano passado.
Com o aumento das exportações, a demanda por terra para agricultura e criação de gado também aumentou, particularmente em áreas nas regiões da Amazônia e do Cerrado [4] que foram responsáveis por quase 70% [5] da carne bovina exportada para a China, acendendo um novo ciclo de desmatamento e degradação ambiental.
No entanto, o consumo de recursos naturais brasileiros por parte da China não é o problema central, segundo Evandro Menezes de Carvalho, especialista em direito chinês e comércio internacional da Fundação Getúlio Vargas [6].
Carvalho aponta que todas as exportações dependem do controle de agências federais, tais como a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimento, e são reguladas pela lei brasileira que determina especificamente quais áreas estão sob proteção.
O crescente desmatamento no Brasil [7], ele afirma, é em primeiro lugar de responsabilidade do governo brasileiro, não de outros países. “O problema não é a China. O problema é o atual modelo de desenvolvimento do Brasil que o torna uma grande fazenda”, disse à Global Voices em uma entrevista por telefone.
Desde 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil, tem ocorrido um crescimento gradual da devastação da Amazônia. O índice anual de desmatamento em 2020 foi de 11.088 quilômetros quadrados, mais de três vezes o tamanho do Central Park em Nova York, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) [8]. Esse índice cresceu mais de 70% se comparado à média dos dez últimos anos.
O Brasil precisa investir mais em tecnologia e em formas de produção sustentáveis, tais como agricultura familiar, de acordo com Carvalho. “Porém, externamente, a China também tem uma função a desempenhar”, disse. Como consumidor, a China poderia ser mais rigorosa no que diz respeito ao cumprimento de resoluções e tratados internacionais por parte do Brasil, como o Tratado de Paris do qual os dois países são participantes.
“Dominando” o Brasil
Em 31 de março de 2021, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um estudo [9] que examina a posição do Brasil como um dos maiores fornecedores de commodities agrícolas do mundo.
A desvalorização [10] do real em relação ao dólar e a guerra comercial [11] entre os Estados Unidos e a China contribuíram para a liderança do Brasil no setor.
O estudo também mostra que a China recebeu 33,7% do total de exportações agrícolas do Brasil em 2020. A China é o maior consumidor de soja do mundo, produto chave nas exportações do Brasil.
Conforme apontado pelo Ipea, a função da China como principal importador de produtos brasileiros vai além da guerra comercial com os Estados Unidos. A demanda chinesa por várias commodities brasileiras supera a oferta, para benefício das empresas agrícolas brasileiras. Essa demanda também prejudica os recursos naturais do país, já que a busca por ampliação de mercado instiga o desmatamento.
Nas redes sociais, a narrativa de que a China está apoderando-se dos recursos naturais do Brasil tem repercutido desde 2020, no mínimo, conforme documentado pela Global Voices por meio do Observatório Civil de Imprensa [2].
Todo dia tem um animal no ônibus dizendo que a China vai dominar o Brasil, que a vacina tá matando as pessoas, que o vírus não existe… e termina dizendo: “acabei de receber pelo Whatsapp”.
??— clayton silvestre (@clayton_History) March 19, 2021 [12]
Ambos os países são membros do bloco econômico constituído por cinco países conhecido como BRIC, e as suas economias estão profundamente conectadas. “Eles não deveriam desperdiçar tempo culpando um ao outro”, afirmou o economista brasileiro Roberto Dumas, um especialista em economia chinesa, em uma chamada com a Global Voices. Para Dumas, tal conflito apenas atrasa o que poderia resolver o problema: uma parceria mais engajada entre China e Brasil, que poderia abordar necessidades ambientais, bem como econômicas.
“O Brasil não é uma força industrial, nesse sentido. Ele precisa da China assim como a China precisa do Brasil para alimentar a sua população”, afirmou. “Para que isso aconteça de uma forma sustentável, tanto para o meio ambiente quanto para o futuro das relações internacionais, a diplomacia brasileira precisa abandonar ideias que não têm base em fatos”.
Nacionalismo crescente: “A China está comprando o Brasil”
O economista aponta para duas narrativas específicas que estão sendo difundidas por membros do governo Bolsonaro, e se espalhando rapidamente pelas redes sociais.
A primeira ocorreu em outubro de 2018. Bolsonaro, que naquela época ainda era um deputado concorrendo à presidência, virou manchete mundial ao dizer: “A China não compra do Brasil. A China está comprando o Brasil. [13]“
A segunda aconteceu cinco meses depois, com Bolsonaro já como presidente. Em uma Aula Magna com trainees para o Ministério das Relações Exteriores, quando Ernesto Araújo, chanceler naquele tempo e aliado de Bolsonaro, disse a diplomatas [14] que o Brasil não venderia a sua alma para exportar minério de ferro e soja [15] especificamente para o Partido Comunista da China. Araújo deixou o governo [16] no fim de março.
Para Dumas, essas ideias enraizaram na imaginação coletiva dos brasileiros. A ideia de se opor a um país que quer roubar recursos naturais do Brasil está agora fixada dentro de um sentimento crescente de nacionalismo.
“Estas são ideias falsas que apenas bloqueiam o que poderia ser uma relação muito mais abrangente e autônoma para o Brasil”, disse.
Por que membros do governo promovem essa narrativa? Carvalho explica que o governo Bolsonaro começou a sua presidência abraçando uma narrativa carregada de vários estereótipos em relação à Ásia para esconder uma crise na democracia do Brasil. O país saiu de uma ditadura há 36 anos, regime que o presidente atual é conhecido por defender.
A economia brasileira
A economia do Brasil depende tanto de commodities que o país se tornou dependente de grandes compradores, explicou Menezes de Carvalho. Em 2020, a China gastou US$ 67 bilhões [17] em importações de produtos brasileiros, três vezes mais do que o segundo maior parceiro comercial do Brasil, os Estados Unidos, que gastou US$ 21 bilhões.
Em 2020, o Brasil recebeu [18] mais de US$ 29 bilhões provenientes da venda de soja para a China, o que equivale a 60.601 milhões de toneladas do grão.
A soja tornou-se a commodity agrícola mais procurada do mundo e talvez seja a mais polêmica por conta da sua utilização em forragem para alimentar gado. De acordo com o grupo de monitoramento Transparência para Economias Sustentáveis (Trase) [19], as importações de soja brasileira por parte da China estão relacionadas a 223.000 hectares de desmatamento ocorrido entre 2013 e 2017.
O ex-presidente da Associação da Indústria de Soja da China, Liu Denggao, argumenta em um artigo publicado pelo China Dialogue [20] que a indústria mundial de soja precisa mudar drasticamente para ser sustentável.
“Proteger as florestas tropicais e a biodiversidade, e combater o aquecimento global são fatores cruciais para o futuro da humanidade. Nós precisamos começar a trabalhar juntos agora. Nenhum indivíduo, nenhuma empresa, nenhum país pode ser deixado para trás”, escreveu.
Dumas e Carvalho também concordam que o caminho daqui em diante deveria incluir esforços conjuntos em futuras negociações, especialmente no futuro após a pandemia.
Para Dumas, os objetivos ambientais só podem ser alcançados “com a prevalência de leis rígidas que responsabilizem os autores de crescimento insustentável”.
Mesmo assim, os dois especialistas concordam que, com o crescimento do desmatamento [21] e da hostilidade [22] entre Brasil e China, o governo Bolsonaro parece ser um obstáculo no caminho para alcançar tais objetivos.