Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 favoreceu plataformas globais de streaming, uma vez que o lockdown, na maioria dos países, fechou os cinemas e as pessoas foram forçadas a ficar em casa e criar seus próprios programas de entretenimento. A Netflix, uma das plataformas de streaming mais bem-sucedidas, ganhou o número recorde de 37 milhões de espectadores em 2020 e não só está exibindo como também produzindo suas próprias séries, filmes e documentários.
Mas, apesar de a Netflix estar vivenciando uma expansão global de espectadores (assim como suas concorrentes HBO, Amazon Prime Video, Apple TV entre outras), a rede de streaming permaneceu centrada no Ocidente e, predominantemente, na língua inglesa durante a maior parte de sua história. Até que uma mudança ocorreu e atualmente a plataforma, assim como outras, oferece uma enorme variedade de conteúdos em outras línguas, produzidos ou dirigidos fora do mundo ocidental.
Uma região que presenciou representação crescente e com mais nuances foi o Sul da Ásia. E, apesar de continuar produzindo e exibindo estereótipos ocidentais do sul da Ásia como no filme de ação Resgate, a Netflix se abriu para uma grande quantidade de filmes que são diferentes da indústria típica de Bollywood e contemplam uma diversidade de idiomas, narrativas e gêneros sem precedentes.
Para compreender essa tendência, a Global Voices conversou com Shumona Sinha, autora bengali-francesa que ganhou notoriedade internacional com seu romance Assommons les pauvres. Sinha, como muitos cidadãos afetados pelo rigoroso lockdown em sua casa na França, pode novamente conectar-se com sua juventude em bengala por meio de novas séries e filmes indianos que ela vê como uma mudança muito bem-vinda na produção cinematográfica do subcontinente. Como ela mesma admiti, sendo uma pessoa que não tem televisão em casa, realmente passou muito mais tempo assistindo Netflix do que antes da pandemia começar e explica a diferença do que é oferecido na TV francesa:
Netflix investit dans les productions cinématographiques qui déjouent l’eurocentrisme ou l’occident-centrisme, explorent les cultures diverses peu représentées. Ces productions sont des collaborations entre les pays occidentaux et orientaux, africains, asiatiques, sud-asiatiques… Puis aussi il y a des films, des docus et des séries déjà produits par des pays divers et désormais disponibles sur Netflix. En tout cas, il y a une vraie diversité ethnoculturelle qui est totalement absente à la télé classique, française ou autre.
A Netflix está investindo em produções cinematográficas que deixam a atitude eurocêntrica ou centrada no Ocidente para explorar culturas diversas sub-representadas. Essas produções são colaborações entre países ocidentais e orientais, países africanos, asiáticos, sul-asiáticos… há também filmes, documentários e séries já produzidos por vários países e agora disponíveis na Netflix. Existe uma verdadeira diversidade etnocultural que está completamente ausente na televisão regular, tanto na França como em outros lugares.
Ao ser perguntada sobre seu programa sul-asiático favorito na plataforma de streaming, respondeu:
Taj Mahal 1989! La production me semble presque artisanale : peu de moyens et beaucoup de rêve. Elle ressemble davantage au théâtre engagé qu’à une série. Dès la première scène on entend le nom de Safdar Hashmi, dramaturge-poète-comédien communiste assassiné en janvier 1989 lors de sa performance de théâtre de rue par les suppôts du parti de droite Congress-I. C’est inédit dans une série ou un film indien. L’histoire de la série évolue autour de cet axe : l’assassinat de Safdar Hashmi et sa perception chez les protagonistes. Deux clans se dessinent : les politiquement engagés et les apolitiques, égoïstes, considérés comme peu cultivés ou de la culture commerciale massive et capitaliste. Le décor de la série est le milieu des universitaires, on y découvre le militantisme communiste et la politique de droite quasi féodale. Tous ces éléments me rappellent mon adolescence et ma jeunesse militante communiste à Calcutta: j’avais écrit un poème en hommage à Safdar Hashmi quand j’avais quatorze ans ; plus récemment dans mon dernier roman “Le testament russe” j’ai évoqué l’assassinat de Safdar Hashmi. Autant de raisons d’aimer cette série !
Taj Mahal 1989! A produção parece quase artesanal: poucos recursos e grandes sonhos. Parece mais teatro politicamente engajado do que uma série. Desde a primeira cena, ouvimos o nome de Safdar Hashmi, um dramaturgo comunista, poeta e ator que foi assassinado em janeiro de 1989 durante uma de suas peças de teatro de rua por seguidores do partido de direita Congresso-I. É inédito em um filme ou série indiana. A história da série se desenrola em torno deste eixo: o assassinato de Safdar Hashmi e como esse fato é percebido pelos personagens principais. Dois lados emergem: os politicamente ativos e os que evitam a política, são egoístas, considerados pouco cultos ou mais atraídos pela cultura de massa. O pano de fundo da série é o mundo acadêmico. Descobre-se a militância comunista e a ideologia política de direita quase feudal. Todos esses elementos lembram minha adolescência e juventude como ativista comunista em Calcutá. Aos 14 anos, escrevi um poema sobre Safdar Hashmi e em meu último romance, Le testament russe, eu menciono o assassinato de Hashmi. Por isso tenho muitas razões para gostar dessa série!
Como pode ser visto no trailer de Taj Mahal 1989, a série possui um toque vintage:
Mas além da nostalgia, Sinha menciona que há uma nova geração de séries e filmes indianos que ela atribui, em parte, a três nomes: o produtor Anurag Kashyap, que criou a primeira série indiana da Netflix, uma adaptação do romance Jogos Sagrados de Vikram Chandra, e que começou sua carreira como ator no elenco de Safdar Hashmi. Recomenda também Vishal Bhardwaj, outro produtor de filmes que atuará como o principal produtor da série da Netflix Os Filhos da Meia-Noite, uma adaptação do romance de Salman Rushdie.
Para Sinha, esse cinema indiano New Wave é uma verdadeira alternativa às narrativas de Bollywood:
Regardez les séries comme Le seigneur de Bombay, Pataal Lok, Leila, Delhi Crime ; les films comme Pink, Talvar, Haider… qui explorent l’Inde réelle de façon néoréaliste, la violence et les discriminations de la société indienne, le fondamentalisme religieux hindouiste mêlé de sale politique nationaliste, sanguinaire. Puis il y aussi des films et séries néo-réalistes plus agréables, qui se détachent de Bollywood sans être complètement des films ou des séries d’auteur, comme A suitable boy, Dil dikhane do.
Veja séries como Jogos Sagrados, Pataal Lok, Leila, Crimes em Déli ou os filmes Pink, Talvar e Haider, que exploram a verdadeira Índia de uma maneira neorrealista, a violência e discriminação existentes na sociedade indiana e o fundamentalismo religioso Hindu misturado com política nacionalista suja, sanguinária. Há também filmes e séries neorrealistas mais descontraídos e que se diferem da narrativa de Bollywood sem serem cinema arthouse, como Um rapaz Adequado e Cruzeiro em Família.
A típica narrativa de Bollywood, explica Sinha, é tradicionalmente construída com uma nítida oposição entre o bem e o mal. Possui histórias de amor filmadas em lindos cenários na Índia ou em outros países, com músicas e danças que aparecem em intervalos regulares. Esse tipo de filme é melhor representado pelo ator cult Amitabh Bachchan, que tem dominado Bollywood desde os anos 1970.
Mas apesar das diferenças entre Bollywood e o cinema de arte, o que está claro para a Netflix é que a Índia se tornou uma fonte crescente de conteúdo e um mercado em expansão: a plataforma acaba de anunciar 41 novos títulos indianos para 2021.