Redes sociais na América Latina: entre a cruz e a espada

Protesto na Plaza Baquedano, em Santiago, capital do Chile, em 8 de novembro de 2019. Crédito: usuário da Wikimedia B1mbo  (CC BY-SA 4.0)

Este artigo foi escrito por Agustina Del Campo, diretora do Centro para Estudos sobre a Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CELE) na Universidade de Palermo, Buenos Aires, e professora de internet, direitos humanos e de legislação internacional sobre direitos humanos.

Em janeiro de 2020, após relatos informais sobre problemas com conteúdo relacionado a protestos nas redes sociais, três organizações chilenas — Fundacion Datos Protegidos, a Universidade do Chile e o Observatorio de Derecho a la Comunicación — realizaram um estudo da investigação sobre a censura em redes sociais entre 18 de outubro e 22 de novembro de 2019. O estudo documentou 283 incidentes em que conteúdos relacionados a protestos haviam sido deletados ou bloqueados. Em alguns casos, as contas de usuários ativos nos movimentos de protestos no país haviam sido canceladas ou suspensas, sem a possiblidade de recorrer a tempo de reverter a decisão. De acordo com os autores e com outras organizações da sociedade civil, que acompanham o fenômeno, a automação, a falta de contexto e a falta de clareza acerca das regras das plataformas estavam entre as maiores causas disso.

Entender que regras governam o conteúdo nas redes sociais e como elas são aplicadas na América Latina é um constante desafio.

Apesar de as empresas terem adotado políticas internacionais, as abordagens variam de país para país e de região para região. Os últimos meses foram bastante informativos sobre tais práticas como, por exemplo, nos diferentes tratamentos dados a conteúdo enganoso nas maiores plataformas. Por exemplo, em março, enquanto o Twitter deletou tuítes sobre curas para a COVID-19 postados pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a empresa parece ter sido bem mais tolerante com tuítes similares feitos pelo presidente americano, Donald Trump. Da mesma forma, ao lidar com tuítes enganosos de Trump sobre fraude eleitoral, a empresa não os deletou, mas os identificou com um alerta de informações potencialmente enganosas.

Em 2017, o Centro para Estudos sobre a Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CELE) conduziu sua própria pesquisa sobre as medidas tomadas pelo Facebook, YouTube e Twitter para combater notícias falsas e desinformação. Nossa intenção era investigar comunicados relacionados à desinformação veiculados por empresas em todo o mundo, especialmente após eventos conhecidos como o referendo do Brexit, o escândalo da Cambridge Analytica e o referendo da Colômbia, e comparar as medidas anunciadas e implementadas geradas por estes eventos às que haviam sido aplicadas na América Latina.

Descobrimos que havia políticas sendo anunciadas, em alguns casos todo dia, e que novas ferramentas, políticas e programas geralmente se sobrepunham e se contradiziam, tornando difícil avaliar o que realmente estava sendo feito e onde. Era difícil encontrar dados desagregados sobre a implementação local e os procedimentos e políticas nem sempre eram traduzidos para as línguas locais, fazendo com que fosse difícil para que os usuários entendessem como o conteúdo que produziam estava sendo avaliado e que recursos estavam disponíveis para eles. Às vezes, tais iniciativas eram empregadas em diferentes países com níveis de recursos variados, levando a disparidades em sua aplicação. Como pesquisadores, é muito difícil saber como, ou mesmo se, anúncios globais de grande relevância estão realmente afetando usuários na América Latina. O CELE está finalizando um estudo para atualizar sua pesquisa de 2017 sobre as respostas das plataformas à desinformação e sobre as 61 ações mais relevantes identificadas e analisadas no documento — em ao menos 28 delas, os pesquisadores não conseguiram verificar sua implementação na América Latina. 

Tudo isso indica um desafio mais amplo em relação à transparência, responsabilização e acesso à informação nas operações das maiores plataformas da internet. Apesar de reconhecermos que têm havido esforços para melhorar a divulgação sobre transparência nos últimos anos, ainda é difícil encontrar dados desagregados para nossa região. Isso inclui informações básicas sobre que políticas estão sendo aplicadas aqui, bem como dados sobre os impactos regionais e locais da moderação de conteúdo e como o contexto local difere do contexto global. Facebook e Twitter, por exemplo, recentemente começaram a divulgar mais informações sobre suas práticas de moderação de conteúdo, mas essas ainda não são desagregadas geograficamente. Isso prejudica de forma grave a habilidade, por parte de grupos públicos e privados, de avaliar as implicações sociais da moderação de conteúdo feita por empresas em contextos locais.

A falta de compreensão sobre como a moderação de conteúdo é realizada na América Latina, associada às falhas na sua aplicação, devido à desconsideração do contexto local, levaram a um maior clamor pela regulação das maiores plataformas da internet, tanto pelos governos quanto pela sociedade civil. Enquanto as intenções talvez sejam boas, os governos nessa região estão menos preocupados com o espaço cada vez menor para a livre expressão quanto com o desenvolvimento de novas restrições, devido à percepção de que o ambiente virtual ainda é pouco regulado. A propagação de leis ou propostas legais europeias e norte-americanas que são igualmente hostis à liberdade de expressão também não ajuda, assim como campanhas feitas por algumas das democracias mais antigas do mundo, inclusive na Europa e no Reino Unido, para pressionar as plataformas a usar seus termos de serviço de forma mais agressiva para atacar conteúdo prejudicial, mas legalmente permitido. Apesar de bem-intencionadas, essas iniciativas promovem restrições vagas e amplas demais à liberdade de expressão em plataformas on-line. Além disso, no contexto de uma região com uma longa história de censura do Estado, estas propostas podem conferir proteção política para que os governos adotem uma abordagem igualmente agressiva na repressão à liberdade de expressão em redes sociais.

Usuários da internet na América Latina, em especial aqueles envolvidos com ativismo ou movimentos sociais, encontram-se entre a cruz e a espada. Neste contexto, a participação de membros da sociedade civil e ativistas na América Latina em debates globais sobre moderação de conteúdo e liberdade de expressão se faz mais necessária do que nunca.


Este artigo foi desenvolvido como parte de uma série da Wikimedia e da Escola de Direito Yale sobre Intermediários e Informação para registrar perspectivas sobre os impactos globais das decisões de plataformas on-line sobre moderação de conteúdo. Você pode ler todos os artigos desta série no blog ou no Twitter @YaleISP_WIII.

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