- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

A retórica anti-China de Bolsonaro estaria alimentando o ódio contra asiáticos no Brasil?

Categorias: América Latina, Desenvolvimento, Etnia e Raça, Mídia Cidadã, Política, Saúde

Joe não conseguia pegar um Uber com seu nome escrito em caracteres chineses em seu perfil. Enquanto isso, grupos no Telegram de apoio ao presidente Bolsonaro contribuíram para a difusão de narrativas anti-chinesas | Imagem: Giovana Fleck/Global Voices.

Por pelo menos dois meses em 2020, nenhum motorista aceitava as corridas de Joe em São Paulo (nome fictício).

Filho de um imigrante chinês e de uma brasileira, Joe tinha um perfil no aplicativo Uber vinculado à sua conta do Facebook, com seu nome escrito em caracteres chineses.

Antes de fazer uma reclamação com a empresa, um amigo, que também é descendente de chineses, sugeriu que ele alterasse o seu nome no aplicativo. Assim que fez isso – e acrescentou o sobrenome português da sua mãe  –  suas corridas logo começaram a serem aceitas.

Dado o histórico de injustiças e violência perpetrados contra povos negros e indígenas no Brasil, os asiáticos, que constituem menos de 1%  [1] da população do país — não são geralmente reconhecidos como alvos de racismo. 

A Global Voices conversou com outros quatro descendentes de chineses no Brasil, e todos reportaram casos de racismo e xenofobia em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Todos disseram que a intolerância aumentou com a pandemia de COVID-19.

Neste cenário está o presidente Jair Bolsonaro, que já culpou Pequim diversas vezes pela pandemia, seu filho Eduardo Bolsonaro, um parlamentar e o Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo revezando-se nos ataques à China.

Em outubro de 2020, o presidente declarou que o governo federal não compraria a Coronavac, a vacina produzida pelo laboratório chinês Sinovac e até mesmo suspendeu, temporariamente, o seu processo de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária; o presidente disse [2] que a vacina não era segura “por conta de sua origem”. E existem brasileiros que concordam com ele.

“Os brasileiros que eu entrevistei salientaram que votaram em Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 e que concordam com os comentários que a equipe presidencial lançou nas redes sociais”, diz Edivan Costa, um antropólogo e cientista social que pesquisa a migração chinesa para o Brasil, além de também conduzir pesquisas etnográficas em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Imigração chinesa no Brasil

Os imigrantes chineses foram trazidos para o Brasil no início do século 19 para trabalhar, quando o rei português, que se encontrava exilado naquela época, buscou maneiras de contornar a ascensão das diretrizes antiescravagistas britânicas.

Muitos vieram de Macau, território chinês que esteve sob o domínio de Portugal p [3]or mais de 400 anos, e deram início ao cultivo experimental de chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e na Fazenda Imperial de Santa Cruz, retiro campestre da família imperial do Brasil.

Costa diz que esses imigrantes eram com frequência desumanizados: “Cerca de 20 anos depois dessa primeira onda, o príncipe dom Miguel foi acusado de participar de uma caçada [4] de imigrantes chineses que haviam sido deixados nas periferias do Rio de Janeiro para serem caçados com fins de entretenimento”.

Depois disso, houve ao menos ainda outras três ondas de migração da China continental, a maior delas na década de 1950 [5]. Os acontecimentos políticos que estavam ocorrendo na China (a guerra civil, a ocupação japonesa, a Segunda Guerra Mundial e a Revolução Cultural) forçaram muitos a ir embora. Desde 2018, o dia 15 de agosto se tornou o Dia Nacional da Imigração Chinesa no Brasil. [6]

Atualmente, segundo [7] dados de 2012 da Associação Chinesa do Brasil, a maioria da população de descendentes de chineses no Brasil, estimada em 250.000 pessoas, trabalha na agricultura e no comércio. Muitos estão estabelecidos na cidade de São Paulo, onde bairros inteiros são conhecidos pela presença de chineses, japoneses e coreanos.

O bairro da Liberdade, tido como o epicentro da cultura do leste asiático em São Paulo, é o cerne da pesquisa de Costa. Durante o trabalho de campo, ele testemunhou a hostilidade direcionada à trabalhadores de origem chinesa. “Em 2020, enquanto entrevistava a comunidade, ouvi gritos. Corri para ver do que se tratava e vi dois garotos gritando para vendedores chineses, ‘Voltem para a China!’, ‘Cuidado com o vírus!’ e ‘Caiam fora, chineses!'”.

Uma crise de narrativa 

Dieqing tirou sua máscara para tomar um copo d'água enquanto esperava por sua hemodiálise em uma clínica no Rio de Janeiro, quando um homem o agrediu verbalmente com insultos racistas | Imagem: Giovana Fleck/Global Voices

“Coloque a droga da máscara de volta, seu merda. Estas pestes vêm para o nosso país para nos matar. Volte para o seu país, animal”. Estes são alguns dos insultos que Dieqing Chen diz ter ouvido quando tirou a máscara para tomar água em uma clínica no Rio de Janeiro no fim de 2020.

Dieqing, que mora no Brasil há mais de uma década, entende português mas não fala, então, sua ex-mulher, Rosana Stofel, atuou como intérprete para ele, quando foi entrevistado pela Global Voices via Facebook. Devido aos seus problemas de saúde, ele vai com frequência a hospitais e clínicas fazer hemodiálise. Com a pandemia, começou a sofrer hostilidade nestes ambientes. 

“Em geral, eu sou um dos únicos pacientes que está usando máscara, e percebo que também sou o que mais chama a atenção”, diz. Dieqing, que veio para o Brasil para trabalhar no setor alimentício, mantém sua família na província de Guangdong. Ele afirma que quer voltar para a China o mais breve possível por conta do clima de ódio. 

Enquanto isso, Bolsonaro parece estar abrandando sua hostilidade contra a China. Em janeiro, o regulador de medicamentos garantiu uma aprovação de emergência para a vacina Sinovac e o governo federal acabou comprando [8] 100 milhões de doses. Em um discurso público no dia 23 de março [9], dia em que o Brasil bateu o recorde com mais de 3.000 mortes por COVID-19, o presidente tentou mostrar uma imagem a favor da vacina, mas distorceu os dados da vacinação e omitiu o seu desdém inicial pela Sinovac.

Muitas questões estão em jogo, incluindo a queda na popularidade do presidente, de 39% em outubro de 2020 para 30% em fevereiro de 2021 [10], e a crise do oxigênio e dos leitos hospitalares  [11]na região norte. O Brasil também depende da China [12] para obter os suprimentos para a fabricação da vacina Sinovac no país.

“Atualmente, o Brasil e a China dependem economicamente um do outro, sendo a China uma potência mundial que não deve ser menosprezada”, afirma Costa. 

“Também precisamos levar em conta que o governo chinês não pensa a curto prazo. O Brasil é um país chave na implementação de redes 5G, por exemplo. O desenrolar dos próximos capítulos dessa história vai depender de como o Brasil fará para deter a disseminação da COVID-19. Enquanto isso, as consequências de seu discurso destrutivo são sentidas pelos cidadãos comuns”, analisa Costa.