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Enrique Rodríguez Galindo: COVID-19 desenterra fantasmas da “guerra suja” na Espanha

Categorias: Espanha, História, Mídia Cidadã, Política, The Bridge

Enrique Rodríguez Galindo. Captura de tela de vídeo do canal de TV LaSexta no YouTube [1].

No dia 13 de fevereiro morreu, aos 82 anos, Enrique Rodríguez, vítima da COVID-19.

Rodríguez Galindo, antigo general da Guarda Civil [2], a gendarmaria espanhola, dirigiu o quartel de Intxaurrondo, na cidade vasca de Donostia-San Sebastián durante as décadas de 1980 e 1990. Naquela época, os membros das forças de segurança eram alvos frequentes do ETA [3], grupo armado separatista basco, que extorquiu e ameaçou milhões de pessoas, além de matar cerca de outras 850 ao longo dos seus cinquenta anos de existência, que perdurou até 2011, quando foi obrigado a deixar suas práticas terroristas. A impopularidade e a efetividade das forças de segurança espanhola foram fundamentais para o fim do ETA.

Rodríguez Galindo foi responsável por ações antiterroristas em circunstâncias bastante difíceis. No entanto, ele mesmo foi um sequestrador e assassino.

Essa foi a conclusão [4] da Audiência Nacional espanhola em 2000, confirmada um ano depois pelo Tribunal Supremo da Espanha. Rodríguez Galindo foi condenado a 75 anos de prisão [5] por ordenar o sequestro e assassinato de José Antônio Lasa e José Ignacio Zabala. Ambos foram torturados e executados em 1983 pelo esquadrão da morte conhecido como GAL [6] – Grupos Antiterroristas de Libertação – e enterrados com cal virgem, com a falsa ideia [7] de que a química fosse decompor completamente os restos mortais. Os corpos foram encontrados em 1985, mas os peritos forenses só conseguiram identificá-los em 1995.

Do total de 75 anos de condenação, Rodríguez Galindo cumpriu apenas cinco [8] na prisão. Em 2005, foi beneficiado com o terceiro grau penitenciário e, em 2013, com a liberdade condicional (Nota do Editor.: terceiro grau penitenciário é a classificação dos detentos [9] que beneficia o condenado com mais liberdade, além da liberdade condicional. Salvo algumas exceções, é o benefício que permite a um detento sair da prisão durante o dia e retornar à noite para dormir).

Em 2021, a morte de Rodríguez Galindo despertou fantasmas do passado na Espanha.

O GAL foi secretamente financiado pelo governo espanhol e responsável por pelo menos 27 execuções extrajudiciais entre 1983 e 1987, o que ficou conhecido como a “guerra suja”. Algumas das vítimas, como Lasa e Zabala, eram supostos membros do ETA e outras foram pessoas que simplesmente estavam no lugar errado, na hora errada. Em 1998, José Barrionuevo, ministro espanhol do Interior, e seu subsecretário Rafael Vera foram presos por envolvimento com o GAL. Na ocasião, Felipe González, então presidente do governo, foi fotografado na porta da prisão despedindo-se deles com um abraço [10]. Durante  uma entrevista exibida em 2010, González declarou [11] de forma enigmática: “Precisei decidir se faria a cúpula do ETA desaparecer. Disse não. E não sei se fiz o certo”. São muitas as especulações acerca do envolvimento de González com o GAL, mas até o momento não foram encontradas provas conclusivas.

Como afirmou [12] o especialista Omar Encarnación, o GAL “foi mais uma continuidade do que o princípio das estratégias antiterroristas do Estado” depois da ditadura de Franco, que terminou em 1975. O GAL foi o resultado de uma falha transição à democracia, um processo no qual as instituições não estavam depuradas, o que resultou em uma falta de controle democrático sobre a polícia, a militarizada Guarda Civil e a inteligência militar. A existência do GAL também incitou o ETA dando ao grupo munição dialética para questionar a natureza democrática da Espanha, e possibilidade de apresentar seus membros como vítimas de uma repressão patrocinada pelo Estado.

Reações à morte de Rodríguez Galindo comprovam que alguns segmentos da sociedade espanhola ainda precisam enfrentar muitos demônios.

Em seu obituário, o jornal de grande circulação El País mencionou [13] a “impressionante folha de serviços” manchada apenas pela “sombra” de uma “suposta participação na chamada guerra suja”. Vale pensar que a palavra “suposta” seria desnecessária se a sentença judicial de Rodríguez fosse levada em consideração.

Macarena Olona, deputada do partido de estrema direita Vox, o terceiro de maior representação no parlamento da Espanha, escreveu no Twitter:

Que a terra seja leve para você, meu General. Hoje, mais que nunca, Intxaurrondo está em nossos corações. Descanse em paz.

Na mesma plataforma, seu companheiro de partido, o deputado do Parlamento Europeu Jorge Buxadé, desejou que “a luz ilumine eternamente seu caminho”:

O falecimento do general Rodriguez Galindo é outra oportunidade que as redes sociais nos oferecem para bloquear, denunciar e identificar as contas dos que vivem e promovem o ódio na Espanha e suas leis.

Descanse em paz. E que a luz ilumine eternamente seu caminho. ??

A irmã de uma das vítimas confirmadas de Rodríguez Galindo, Pili Zabala, disse [17] na televisão, no dia 14 de fevereiro, que tentou entrar em contato com o general para exigir que ele se responsabilizasse pela dor que causou à sua família. Ela queria que ele confessasse estar arrependido, mas ele nunca respondeu. Agora, Zabala quer encontrar o principal responsável: Rodríguez Galindo “era militar, obedecia a ordens e tenho certeza de que as ordens vinham de seus superiores, que eram políticos”. Zabala espera que o ex-presidente Felipe González acabe no banco dos réus.

Em 2000, o ex-governador civil da província de Guipúzcoa, Juan María Jáuregi, testemunhou em juízo sobre o envolvimento de Rodríguez Galindo no assassinato de Lasa e Zabala. Vinte anos depois, diante da enxurrada de elogios ao general no Twitter, horas após o anúncio da sua morte, a filha de Jáuregi publicou:

Me vem à cabeça as palavras de meu pai, as quais jamais esquecerei: “Não sei quem me matará, se o ETA ou o próprio Galindo”.

No fim das contas foi o ETA, em 2000. A viúva de Jáuregi, Maixabel Lasa, e sua filha Maria tornaram-se as duas vozes mais potentes na luta contra o ódio e a favor da justiça e reparação a todas as vítimas de abusos aos direitos humanos em Euskadi.

Hoje vale à pena lembrar das palavras de Pablo de Greiff [9], antigo relator especial das Nações Unidas para a Verdade, Justiça e Reparação, após sua missão na Espanha, em 2014:

“The strength of democratic institutions must be measured not by their ability to ignore certain issues, especially those that refer to fundamental rights, but rather by their ability to manage them effectively, however complex and awkward they may be”.

A força das instituições democráticas deve ser medida não por sua capacidade de ignorar certos problemas, especialmente os que se referem aos direitos fundamentais, e sim por sua capacidade de tratá-los de forma efetiva, independentemente do quão incômodos e complexos sejam eles”.