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Dossiê entregue ao governo Biden pede compromisso com direitos humanos e democracia no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Estados Unidos, Direitos Humanos, Direitos LGBT, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã

Joe Biden, novo presidente dos EUA | Photo by Adam Schultz / Biden for President /CC BY-NC-SA 2.0 [1]

Quando o Brasil começava a atravessar a pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, um discurso do presidente Jair Bolsonaro em rede nacional de televisão ecoou as palavras [2] do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, minimizando a gravidade da doença que atingia o mundo e defendendo afrouxamento das medidas de distanciamento social recomendadas por cientistas.

Para integrantes da US Network for Democracy in Brazil [3] (USNDB), rede formada por brasileiros e norte-americanos baseados nos EUA, ali se consolidava a “cartilha Trump” do enfrentamento à Covid-19 no Brasil, o que resultou em número recorde de mortes [4], tensões com aliados comerciais na Ásia e na Europa [5] e deslegitimação da ciência [6]Quando o próprio Trump recuou na postura, Bolsonaro foi identificado pela revista The Atlantic [7] como líder do movimento negacionista do novo coronavírus.

Com a saída de Trump e o início do governo Joe Biden-Kamala Harris, a USNDB viu que a mudança  no plano de enfrentamento à pandemia nos EUA poderia influenciar também as ações adotadas pelo Brasil. Foi assim que surgiu a ideia de criar um estudo para informar o novo governo sobre o tema, segundo Juliana Moraes, Diretora Executiva do escritório de Washington da rede. O documento [8] evoluiu para algo mais amplo, com outros temas afetados pela relação do antigo governo com Bolsonaro.

“Nos EUA, os 100 primeiros dias de governo têm muito peso. O tom do governo é dado nesse período, por isso era fundamental que essas recomendações chegassem a Casa Branca neste momento”, explica Juliana. 

Composta por mais de 1500 membros e liderada por mais de 150 acadêmicos e ativistas das principais universidades americanas, como Harvard, Columbia, Georgetown e Brown, além de ONGs e entidades socioambientais como a Amazon Watch, a USNDB é uma rede de membros da sociedade civil, brasileiros e americanos, que atuam nos EUA. Criada em 2018, a organização tem como missão informar ao público norte-americano sobre o Brasil e defender avanços sociais, econômicos, políticos e culturais.

Segundo a BBC Brasil [9], as equipes de dois deputados próximos a Biden, Susan Wild e Raul Grijalava, revisaram o documento. A reportagem do veículo também contatou o governo brasileiro que disse que não iria comentar sobre o documento.

No início de fevereiro, o escritório da USNDB recebeu a notícia que o documento havia chegado a Casa Branca [10] por meio de Juan Gonzalez, nomeado por Joe Biden diretor sênior para o hemisfério ocidental do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Gonzalez é conselheiro do partido democrata para assuntos de desenvolvimento econômico e diplomacia com países da América Latina. Nos próximos quatro anos, ele irá orientar Biden em temas como cooperação bilateral, Estado de Direito e mudança climática [11].

Antes do resultado das eleições, no fim de outubro, Gonzales já havia comentado em seu Twitter sobre questões envolvendo o Brasil.

“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que pense em construir uma aliança forte com os Estados Unidos ignorando questões importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos, claramente não tem ouvido Joe Biden na campanha.”

O GV conversou com Juliana Moraes, via telefone e e-mail, sobre a coordenação do dossiê e a importância das relações Brasil-EUA agora:

GV: Como foi a articulação para que o documento chegasse ao gabinete de Biden? 

O Washington Brazil Office (WBO), a parte do USNDB que trabalha com advocacy em Washington, capital dos Estados Unidos, tem parcerias com inúmeras ONGs e think-tanks. Por nossa posição apartidária e descentralizada, consolidamos relações importantes dentro e fora do Congresso dos EUA, e foi a partir dessas relações que o documento chegou às mãos de Juan Gonzalez, recém-nomeado por Joe Biden para sua equipe. Gonzales foi grande crítico de Trump e é conselheiro democrata para a América Latina de longa data.  

A consolidação de nossas relações no Congresso dos EUA tem suas raízes em 2016.  Durante o processo de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, a Câmara do Congresso dos EUA enviou uma carta assinada por 43 parlamentares [14] ao então Secretário de Estado, John Kerry. Nesta carta, os parlamentares expressaram preocupação com a situação político-constitucional do Brasil. Foi a primeira carta em que o Congresso dos EUA expressava preocupação com o Brasil em mais de 20 anos.  

Nosso trabalho é colaborativo, dentro e fora da USNDB. Dentro, contamos com mais de 150 acadêmicos e líderes de organizações sociais globais, e entre eles estão pessoas que conhecem secretários e conselheiros nomeados pela nova administração. Biden e sua equipe têm demonstrado interesse em manter um diálogo próximo com pesquisadores, cientistas e movimentos sociais. 

GV: Como surgiu a ideia de enviar um documento ao governo Biden e por que agora? 

Sabíamos que se Joe Biden e Kamala Harris ganhassem as eleições dariam novo foco à gestão da pandemia nos EUA e, por consequência, poderiam influenciar o gerenciamento da crise no Brasil, e pensamos em desenhar um informe que colaborasse com esse tema. O documento evoluiu para algo mais amplo, com outros temas que sofreram grave impacto nos últimos dois anos com a relação entre Bolsonaro e Trump, então presidente norte-americano. 

Nos EUA, os 100 primeiros dias de governo têm muito peso. O tom do governo é dado nesse período, por isso era fundamental que essas recomendações chegassem a Casa Branca neste momento. Em 30 páginas, contamos com a participação de especialistas em dez áreas – democracia e estado democrático de direito; direitos indígenas, mudanças climáticas e desmatamento; economia política; base de Alcântara [15] e apoio militar dos EUA; direitos humanos; violência policial; saúde pública; coronavírus; liberdade religiosa e trabalho. 

GV: Quais os principais pontos destacados no dossiê? 

Os capítulos mais extensos, e eu diria mais complexos, são aqueles que tratam das questões ambientais e de direitos humanos. Não é real que para alcançar bons patamares econômicos seja preciso enfraquecer regulamentações socioambientais. Essa divisão é um desserviço para o Brasil. O documento conecta os dois [temas], e apresenta evidências de que existem caminhos para um desenvolvimento responsável e sustentável no Brasil. 

Trouxemos análises, historicamente contextualizadas, sobre aquecimento global e meio ambiente, crescimento econômico sustentável, fortalecimento de instituições e políticas democráticas, direitos dos trabalhadores, bem como a posição pública do atual governo brasileiro em temas como direitos dos povos indígenas, quilombolas [16], mulheres, comunidades LGBTQIA+, acesso a saúde e gestão da pandemia. 

Desmatamento e incêndios na Amazônia dispararam em 2020. Foto: Felipe Werneck/Ibama

O informe faz recomendações concretas, como rever o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado por Bolsonaro e Trump, que impacta diretamente famílias quilombolas [que vivem na área da base de] Alcântara, no estado do Maranhão; restringir importações de madeira, soja e carne do Brasil advindas de áreas ilegalmente desmatadas, o que ja é previsto pela legislação americana; divulgar documentos confidenciais sobre a ditadura no Brasil e esclarecer a suposta participação dos EUA na operação Lava Jato. 

De maneira geral, o informe recomenda que o atual governo dos EUA reveja as políticas externas da gestão de Donald Trump e sua influência no Brasil – o que impactou também outros países latino-americanos numa guinada perigosa à extrema direita. 

GV: Ainda que tenha um discurso de liberdade e democracia, os Estados Unidos têm um histórico de intervencionismo na América Latina. Por que o trabalho com o governo americano é importante? Como garantir que a relação entre os países não coloca em risco a soberania do Brasil? 

De modo geral, nos EUA, existe um desconhecimento grande sobre o Brasil, sua história, sua diversidade e suas complexidades. Com nossa rede de contatos, dentro e fora do governo, temos a responsabilidade de trazer questões que não são amplamente conhecidas no exterior e temos a oportunidade de apresentar os assuntos de maior peso no Brasil, que afetam o dia a dia da população. 

Através do nosso trabalho com o Congresso dos dois países, conseguimos abrir diálogos entre representantes políticos, movimentos sociais e sociedade civil. Aprendemos e exportamos conhecimento. Esse tipo de diálogo aberto e bem informado entre dois países é a base da construção de relações bilaterais mais equitativas. Sem isso, ficamos mais vulneráveis a crises internas e externas, sejam elas econômicas, políticas ou sociais. 

 *Isabela Carvalho, que coordenou essa entrevista, é parte do Conselho Consultivo do Washington Brazil Office, parte da USNDB responsável pelo trabalho de advocacy da organização.