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COVID-19, direitos digitais e o crescente estado de alerta na Nigéria

Categorias: África Subsaariana, Nigéria, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Governança, Mídia Cidadã, Protesto, Tecnologia, COVID-19, GV Advocacy

Cidadão realiza pesquisa no celular em Lagos, na Nigéria, setembro de 2016. Foto de ARipstra [1] (WMF) por meio da Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0 [2]).

Durante a pandemia da COVID-19, os governos adotaram medidas extraordinárias para impulsionar a tecnologia no combate ao vírus. Além dos confinamentos, muitos países africanos, como a Nigéria, seguiram a tendência global de aplicar medidas de rastreamento de contatos para monitorar aqueles que tiveram contato com um infectado.

Aplicativos de rastreio de contato — tanto públicos como privados — que, à primeira vista, parecem inofensivos e confiáveis, se multiplicam. Porém, a história de espionagem da Nigéria levanta sérios questionamentos acerca de como o Estado poderia aumentar sua capacidade para rastrear e controlar os cidadãos por meio destas tecnologias durante a pandemia.

Em julho de 2020, a Corporação Nacional Nigeriana de Petróleo (Nigerian National Petroleum Corporation, NNPC) desenvolveu [4] um aplicativo de rastreio de contato para ser implementado de maneira imediata em todas as suas locações na Nigéria.

Outros dois aplicativos, Stay-Safe [5] e Rapid Trace [6], foram criados pela iniciativa privada.  A Global Voices não conseguiu obter nenhuma informação atualizada sobre a eficácia destes aplicativos, nem sobre como coletam ou armazenam os dados.

Para compreender melhor o motivo pelo qual os ativistas de direitos digitais estão tão preocupados com os últimos aplicativos de rastreio de contato, é necessário evidenciar o contexto histórico de espionagem da Nigéria.

Uma história de espionagem

O governo nigeriano nunca admitiu abertamente suas aptidões para a espionagem, mas em agosto de 2019, aprovou e promulgou [7] a Lei Federal de Assistência Mútua em Assuntos Penais que permite que o estado atue em representação de outros  países para monitorar os cidadãos que estejam sob investigação penal.

Um relatório [8] da Paradign Initiative sobre direitos digitais e privacidade na Nigéria detalha como o governo nigeriano destinou enormes quantias de dinheiro para atividades de espionagem de maneira consistente, desde 2013 até agora.

Apenas em 2020, o governo da Nigéria destinou fundos para gastos estimados em 9 bilhões de nairas (US$ 22,8 milhões) em assuntos relacionados à espionagem ou equipamentos. Em 2017, gastou em torno de 46 bilhões de nairas (US$ 127,6 milhões) em insumos para vigilância, segundo documento do orçamento nacional [9].

Um frágil sistema de responsabilidades que controla as forças policiais e de segurança no que diz respeito ao uso desta tecnologia permite frequentes abusos de poder.

Uma pesquisa de 2015 [10] realizada pelo Premium Times descobriu de que maneira governantes nigerianos obtiveram dispositivos de espionagem avançada, supostamente para combater a criminalidade. Porém, tais tecnologias foram usadas como uma espécie de “Big Brother” para monitorar os habitantes dos seus respectivos estados, especialmente seus adversários políticos ativos.

Em dezembro de 2016, o ex-governador do estado de Ekit, Ayodele Fayose, acusou o Serviço de Segurança do Estado de grampear seu telefone e vazar escutas de uma conversa particular [11] com um colega. Além disso, o acusou de gravar conversas telefônicas de nigerianos considerados opositores ao presidente Mahummadu Buhari e seu governo, representado pelo partido All Progressives Congress (Congresso de Todos os Progressistas).

Em 2018, houve denúncias em diversas reportagens sobre intervenções em massa a telefones celulares em Abuja [12], capital do país. As suspeitas de que o governo detém capacidade para implantar estes métodos foram acentuadas após a inclusão de equipamentos de vigilância nas alocações orçamentárias.

Em outubro de 2019, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas informou [13] que as forças militares nigerianas utilizam tecnologias de vigilância para espionar civis e jornalistas. Segundo o relatório, o exército nigeriano adquiriu tecnologia forense projetada para obter informações de telefones e computadores. O relatório também menciona o fato de o governo nigeriano ter gastado pelo menos 127 bilhões de nairas (US$ 322 milhões) em equipamentos de vigilância e segurança.

Além das medidas já mencionadas, o Fórum de Governadores da Nigéria contribuiu com a MTN [14], uma das empresas de telecomunicações líderes da Nigéria, “para mitigar os efeitos da pandemia da COVID-19 extraindo dados de seus usuários para obter um perfil da vulnerabilidade dos estados em decorrência da propagação do coronavírus”.

Falta de interesse político

Apesar do aumento da capacidade de vigilância, a Nigéria não possui uma legislação integral de privacidade e proteção de dados, e depende do interesse político para conquistá-lo a curto prazo.

Em setembro de 2020, o governo anunciou um anteprojeto de lei que visa a proteção de dados e convocou as partes interessadas para participarem. No entanto, a Nigéria falhou ao aprovar projetos de lei similares ao da proteção de dados desde a sétima e oitava Assembleias Nacionais, em 2011-2015 e 2015-2019, respectivamente.

A oitava Assembleia Nacional aprovou a lei de liberdade e direitos digitais [16] que objetiva a garantia dos direitos humanos on-line ou off-line, e oferece proteção contra o abuso e oportunidades de reparação. No entanto, esta não foi assinada pelo presidente Buhari.

Os legisladores esperam conseguir aprová-la na nona Assembleia de 2019-2023, mas existem compreensíveis suspeitas de que Buhari possa reprová-la novamente, uma vez que a tentativa anterior fracassou. A lei de liberdade e direitos digitais busca assegurar o direito à privacidade no ambiente virtual e atribuir ao Poder Judiciário o marco necessário para proteger os direitos humanos on-line.

Em janeiro de 2019, a Agência Nacional de Desenvolvimento de Tecnologia da Informação da Nigéria (Nigerian Information Technology Development, NITDA), publicou um regulamento de proteção de dados [17], mas carece de informações sobre sua implantação. O órgão já emitiu três marcos de implementação para o mesmo regulamento desde que foi publicado.

O deficiente marco regulatório em torno da proteção da privacidade é a brecha legal que o governo nigeriano tem utilizado constantemente para violar os direitos de privacidade dos cidadãos, da sociedade e dos meios de comunicação.

A Resolução A/HRC/RES/34/7 [18] do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o direito à privacidade na era digital foi adotada em março de 2017, e insta todos os estados a “revisar seus procedimentos, práticas e legislação de vigilância das comunicações…” a fim de fazer valer os direitos de privacidade protegidos pela legislação internacional.

O desenvolvimento de aplicativos de rastreio de contato e outras medidas, tais como o colaboracionismo com empresas de telecomunicações, causa a legitima preocupação de que o governo obtenha vantagens para implantar medidas drásticas contra os direitos digitais dos cidadãos, mesmo após o fim da pandemia.

Efeitos da COVID-19 — muito além do total de vítimas

Na Nigéria, o emprego de restrições por conta da COVID-19 foi marcado pela terrível repressão e outras violações aos direitos humanos. Na segunda semana de confinamento, as forças de segurança haviam matado mais nigerianos do que a COVID-19, segundo [19] uma reportagem da BBC.

Em um dos incidentes relatados, o jornalista nigeriano Kufre Carter foi preso por um mês [20] sob a acusação de difamação e conspiração por suas críticas sobre a condução da crise gerada pela COVID-19 no estado de Akwa Ibom, no sul do país.

Os jornalistas que registraram as evidências da violência policial durante o confinamento foram punidos. Um tribunal de magistrados de Abuja condenou a jornalista [21] Emma Bricks Oko a pagar três horas de trabalho voluntário mais uma multa de 5.000 nairas (cerca de $ 12 dólares) por filmar a crueldade de um policial durante a execução da ordem de quarentena.

Quando os intensos protestos contra a violência policial coincidiram com a pandemia, em outubro de 2020, a vigilância seletiva foi estendida a membros do movimento social descentralizado conhecido como #EndSARS (fim ao SARS), que reivindica a dissolução do violento Esquadrão Especial Antirroubo (SARS).

O governo negou [23] oficialmente ter incluído ativistas do #EndSARS em uma lista de exclusão, mas outras versões [24] confirmaram o papel do governo em atacar os manifestantes com táticas de espionagem, como o rastreio de manifestações por meio de seus contatos telefônicos. O militante Eromosele Adene enfrenta atualmente um processo [25] depois de ter sido rastreado, preso e acusado pela participação nos protestos.

Um relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos [26] sobre as violações aos direitos das pessoas durante o confinamento em virtude da COVID-19 mostra que foram registradas um total de 105 denúncias recebidas de 24 estados nigerianos, incluindo a capital federal. O relatório documentou 14 violações ao direito à liberdade de locomoção, prisões e detenções ilegais, 11 incidentes de apreensão e confisco de bens, 19 casos de extorsão, entre outros.

O verdadeiro impacto da pandemia da COVID-19 vai muito além do número de vítimas. Com esse pretexto, o governo tem incrementado e fortalecido suas ações de espionagem. Ativistas, meios de comunicação e a oposição ficaram mais vulneráveis aos ataques das autoridades. As perdas reais só poderão ser contabilizadas após o fim da pandemia, e quando as consequências visíveis possam ser estimadas.

Uma legislação eficaz que assegure os direitos digitais bem como a privacidade e proteção de dados fortalecerá os sistemas de responsabilidade e transparência.

Será que algum dia a Nigéria conseguirá aprovar uma legislação necessária para amenizar as ameaças de um Estado de espionagem absoluto?


Este artigo faz parte de uma série de publicações que analisam a vulnerabilidade dos direitos digitais no contexto da quarentena e outros aspectos nos tempos da pandemia da COVID-19 em nove países africanos: Uganda, Zimbábue, Moçambique, Argélia, Nigéria, Namíbia, Tunísia, Tanzânia e Etiópia. O projeto conta com recursos do Fundo de Direitos Digitais da África da Colaboração sobre Políticas Internacionais da TIC para a África Oriental e Austral [27] (CIPESA).