COVID-19, direitos digitais e o crescente estado de alerta na Nigéria

Cidadão realiza pesquisa no celular em Lagos, na Nigéria, setembro de 2016. Foto de ARipstra (WMF) por meio da Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0).

Durante a pandemia da COVID-19, os governos adotaram medidas extraordinárias para impulsionar a tecnologia no combate ao vírus. Além dos confinamentos, muitos países africanos, como a Nigéria, seguiram a tendência global de aplicar medidas de rastreamento de contatos para monitorar aqueles que tiveram contato com um infectado.

Aplicativos de rastreio de contato — tanto públicos como privados — que, à primeira vista, parecem inofensivos e confiáveis, se multiplicam. Porém, a história de espionagem da Nigéria levanta sérios questionamentos acerca de como o Estado poderia aumentar sua capacidade para rastrear e controlar os cidadãos por meio destas tecnologias durante a pandemia.

Em julho de 2020, a Corporação Nacional Nigeriana de Petróleo (Nigerian National Petroleum Corporation, NNPC) desenvolveu um aplicativo de rastreio de contato para ser implementado de maneira imediata em todas as suas locações na Nigéria.

Outros dois aplicativos, Stay-Safe e Rapid Trace, foram criados pela iniciativa privada.  A Global Voices não conseguiu obter nenhuma informação atualizada sobre a eficácia destes aplicativos, nem sobre como coletam ou armazenam os dados.

Para compreender melhor o motivo pelo qual os ativistas de direitos digitais estão tão preocupados com os últimos aplicativos de rastreio de contato, é necessário evidenciar o contexto histórico de espionagem da Nigéria.

Uma história de espionagem

O governo nigeriano nunca admitiu abertamente suas aptidões para a espionagem, mas em agosto de 2019, aprovou e promulgou a Lei Federal de Assistência Mútua em Assuntos Penais que permite que o estado atue em representação de outros  países para monitorar os cidadãos que estejam sob investigação penal.

Um relatório da Paradign Initiative sobre direitos digitais e privacidade na Nigéria detalha como o governo nigeriano destinou enormes quantias de dinheiro para atividades de espionagem de maneira consistente, desde 2013 até agora.

Apenas em 2020, o governo da Nigéria destinou fundos para gastos estimados em 9 bilhões de nairas (US$ 22,8 milhões) em assuntos relacionados à espionagem ou equipamentos. Em 2017, gastou em torno de 46 bilhões de nairas (US$ 127,6 milhões) em insumos para vigilância, segundo documento do orçamento nacional.

Um frágil sistema de responsabilidades que controla as forças policiais e de segurança no que diz respeito ao uso desta tecnologia permite frequentes abusos de poder.

Uma pesquisa de 2015 realizada pelo Premium Times descobriu de que maneira governantes nigerianos obtiveram dispositivos de espionagem avançada, supostamente para combater a criminalidade. Porém, tais tecnologias foram usadas como uma espécie de “Big Brother” para monitorar os habitantes dos seus respectivos estados, especialmente seus adversários políticos ativos.

Em dezembro de 2016, o ex-governador do estado de Ekit, Ayodele Fayose, acusou o Serviço de Segurança do Estado de grampear seu telefone e vazar escutas de uma conversa particular com um colega. Além disso, o acusou de gravar conversas telefônicas de nigerianos considerados opositores ao presidente Mahummadu Buhari e seu governo, representado pelo partido All Progressives Congress (Congresso de Todos os Progressistas).

Em 2018, houve denúncias em diversas reportagens sobre intervenções em massa a telefones celulares em Abuja, capital do país. As suspeitas de que o governo detém capacidade para implantar estes métodos foram acentuadas após a inclusão de equipamentos de vigilância nas alocações orçamentárias.

Em outubro de 2019, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas informou que as forças militares nigerianas utilizam tecnologias de vigilância para espionar civis e jornalistas. Segundo o relatório, o exército nigeriano adquiriu tecnologia forense projetada para obter informações de telefones e computadores. O relatório também menciona o fato de o governo nigeriano ter gastado pelo menos 127 bilhões de nairas (US$ 322 milhões) em equipamentos de vigilância e segurança.

Além das medidas já mencionadas, o Fórum de Governadores da Nigéria contribuiu com a MTN, uma das empresas de telecomunicações líderes da Nigéria, “para mitigar os efeitos da pandemia da COVID-19 extraindo dados de seus usuários para obter um perfil da vulnerabilidade dos estados em decorrência da propagação do coronavírus”.

Falta de interesse político

Apesar do aumento da capacidade de vigilância, a Nigéria não possui uma legislação integral de privacidade e proteção de dados, e depende do interesse político para conquistá-lo a curto prazo.

Em setembro de 2020, o governo anunciou um anteprojeto de lei que visa a proteção de dados e convocou as partes interessadas para participarem. No entanto, a Nigéria falhou ao aprovar projetos de lei similares ao da proteção de dados desde a sétima e oitava Assembleias Nacionais, em 2011-2015 e 2015-2019, respectivamente.

A oitava Assembleia Nacional aprovou a lei de liberdade e direitos digitais que objetiva a garantia dos direitos humanos on-line ou off-line, e oferece proteção contra o abuso e oportunidades de reparação. No entanto, esta não foi assinada pelo presidente Buhari.

Os legisladores esperam conseguir aprová-la na nona Assembleia de 2019-2023, mas existem compreensíveis suspeitas de que Buhari possa reprová-la novamente, uma vez que a tentativa anterior fracassou. A lei de liberdade e direitos digitais busca assegurar o direito à privacidade no ambiente virtual e atribuir ao Poder Judiciário o marco necessário para proteger os direitos humanos on-line.

Em janeiro de 2019, a Agência Nacional de Desenvolvimento de Tecnologia da Informação da Nigéria (Nigerian Information Technology Development, NITDA), publicou um regulamento de proteção de dados, mas carece de informações sobre sua implantação. O órgão já emitiu três marcos de implementação para o mesmo regulamento desde que foi publicado.

O deficiente marco regulatório em torno da proteção da privacidade é a brecha legal que o governo nigeriano tem utilizado constantemente para violar os direitos de privacidade dos cidadãos, da sociedade e dos meios de comunicação.

A Resolução A/HRC/RES/34/7 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o direito à privacidade na era digital foi adotada em março de 2017, e insta todos os estados a “revisar seus procedimentos, práticas e legislação de vigilância das comunicações…” a fim de fazer valer os direitos de privacidade protegidos pela legislação internacional.

O desenvolvimento de aplicativos de rastreio de contato e outras medidas, tais como o colaboracionismo com empresas de telecomunicações, causa a legitima preocupação de que o governo obtenha vantagens para implantar medidas drásticas contra os direitos digitais dos cidadãos, mesmo após o fim da pandemia.

Efeitos da COVID-19 — muito além do total de vítimas

Na Nigéria, o emprego de restrições por conta da COVID-19 foi marcado pela terrível repressão e outras violações aos direitos humanos. Na segunda semana de confinamento, as forças de segurança haviam matado mais nigerianos do que a COVID-19, segundo uma reportagem da BBC.

Em um dos incidentes relatados, o jornalista nigeriano Kufre Carter foi preso por um mês sob a acusação de difamação e conspiração por suas críticas sobre a condução da crise gerada pela COVID-19 no estado de Akwa Ibom, no sul do país.

Os jornalistas que registraram as evidências da violência policial durante o confinamento foram punidos. Um tribunal de magistrados de Abuja condenou a jornalista Emma Bricks Oko a pagar três horas de trabalho voluntário mais uma multa de 5.000 nairas (cerca de $ 12 dólares) por filmar a crueldade de um policial durante a execução da ordem de quarentena.

Quando os intensos protestos contra a violência policial coincidiram com a pandemia, em outubro de 2020, a vigilância seletiva foi estendida a membros do movimento social descentralizado conhecido como #EndSARS (fim ao SARS), que reivindica a dissolução do violento Esquadrão Especial Antirroubo (SARS).

O governo negou oficialmente ter incluído ativistas do #EndSARS em uma lista de exclusão, mas outras versões confirmaram o papel do governo em atacar os manifestantes com táticas de espionagem, como o rastreio de manifestações por meio de seus contatos telefônicos. O militante Eromosele Adene enfrenta atualmente um processo depois de ter sido rastreado, preso e acusado pela participação nos protestos.

Um relatório da Comissão Nacional de Direitos Humanos sobre as violações aos direitos das pessoas durante o confinamento em virtude da COVID-19 mostra que foram registradas um total de 105 denúncias recebidas de 24 estados nigerianos, incluindo a capital federal. O relatório documentou 14 violações ao direito à liberdade de locomoção, prisões e detenções ilegais, 11 incidentes de apreensão e confisco de bens, 19 casos de extorsão, entre outros.

O verdadeiro impacto da pandemia da COVID-19 vai muito além do número de vítimas. Com esse pretexto, o governo tem incrementado e fortalecido suas ações de espionagem. Ativistas, meios de comunicação e a oposição ficaram mais vulneráveis aos ataques das autoridades. As perdas reais só poderão ser contabilizadas após o fim da pandemia, e quando as consequências visíveis possam ser estimadas.

Uma legislação eficaz que assegure os direitos digitais bem como a privacidade e proteção de dados fortalecerá os sistemas de responsabilidade e transparência.

Será que algum dia a Nigéria conseguirá aprovar uma legislação necessária para amenizar as ameaças de um Estado de espionagem absoluto?


Este artigo faz parte de uma série de publicações que analisam a vulnerabilidade dos direitos digitais no contexto da quarentena e outros aspectos nos tempos da pandemia da COVID-19 em nove países africanos: Uganda, Zimbábue, Moçambique, Argélia, Nigéria, Namíbia, Tunísia, Tanzânia e Etiópia. O projeto conta com recursos do Fundo de Direitos Digitais da África da Colaboração sobre Políticas Internacionais da TIC para a África Oriental e Austral (CIPESA).

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