Este texto é de autoria de Lucas Veloso. É publicado aqui via parceria de conteúdo entre o Global Voices e a Agência Mural.
Em uma casa de dois cômodos, em Guaianases, na periferia de São Paulo, vive a nigeriana Amaka Anele, 6, com dois irmãos e os pais. Estudante do primeiro ano do ensino fundamental na maior cidade do Brasil, com a pandemia do novo coronavírus, ela está há cerca de nove meses longe da escola. “É ruim ficar só aqui”, diz a menina, se referindo à casa.
Sem telefone celular ou computador para acompanhar as atividades online da escola, Amaka passa os dias em brincadeiras com os irmãos e sem nenhum contato com a escola em que estuda há três anos no bairro. Com a mudança na rotina, ela sente falta da sala de aula. “Lá eu tenho meus colegas. Cadê eles?”, questiona.
Segundo os pais, desde o dia 16 de março, quando as aulas de escolas públicas e particulares de São Paulo foram suspensas por decreto do governo do estado, devido à pandemia, a menina está sem acompanhamento da escola. Além de ficar sem aulas, a medida também a deixou sem a alimentação que recebia gratuitamente na escola.
No mesmo bairro de Amaka, outros relatos de pais e mães nascidos em outros países dão conta da ausência do poder público frente à população migrante em meio à pandemia.
Zuri Bintu, 7, aluna do segundo ano do ensino fundamental na rede municipal, também moradora da região, ficou sem aulas e sem acesso aos conteúdos, porque na casa dela não há computadores e os dois celulares ficam os pais angolanos, que precisam para trabalhar e falar com a família no país de origem. “Não tem a professora e nem lição com os meus amigos”, diz.
Desde o começo da pandemia, a situação das aulas nas periferias têm sido um problema por conta da falta de infraestrutura e dos problemas para conseguir acesso à internet.
Por enquanto, ainda não há previsão sobre como vai funcionar a educação em 2021. Em novembro, as aulas voltaram na rede estadual de forma optativa, mas, com a nova alta de casos de coronavírus, poucos compareceram. O governo do estado anunciou que o retorno será na primeira semana de fevereiro, mas há incertezas sobre a possibilidade de volta presencial.
Na zona leste de São Paulo, entre os imigrantes, 59% dos estudantes são bolivianos, 10% haitianos, 8% angolanos e 5% venezuelanos, segundo a Secretaria Estadual de Educação. No caso de Guaianases, bairro de maioria de migrantes negros, a situação tem outros agravantes e segue preocupante.
Desde maio, por exemplo, um decreto publicado pelo governo de São Paulo tornou obrigatório o uso geral e obrigatório das máscaras, mas a falta de dinheiro impede que essa parcela da população acesse o item básico de proteção nas ruas do bairro — o desemprego impede o acesso aos itens. As máscaras costumam custar R$ 5 (menos de US$ 1), o que parece pouco, mas é caro para quem vive com muito pouco.
Duas ruas depois da casa de Amaka mora o haitiano Ronal Joseph, 46. Ele trabalha com atendimento ao público na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no bairro da Luz, região central da cidade. Além disso, ele é estudante de direito e tenta fazer as aulas por meio do celular já que não tem computador para ajudar na tarefa, durante a pandemia.
Pai de três meninas, uma de 14, outra de 2 anos e uma com 10 meses, Ronal está em isolamento social desde março, saindo apenas para trabalhar, e relata que no primeiro momento ficou assustado com a pandemia.
Além do receio da saúde das pessoas ao seu redor, ele conta que tem medo da situação no Haiti, onde ainda vive parte da sua família, como a mãe e os irmãos. Oficialmente, 236 pessoas morreram no país da América Central, enquanto só na cidade de São Paulo, são cerca de 16 mil em 2020.
Outro desafio é a rotina das filhas. As meninas não conseguem acompanhar os estudos em casa, por só ter um computador, utilizado pelo pai, e pela qualidade da internet, e ficam tristes por não irem às escolas e nem à igreja.
Apesar disso, ele relata que a vida não parou para quem veio do Haiti e vive como imigrante. “Conversei com alguns haitianos que estão trabalhando. Muitos de nós, haitianos, são pedreiros, ajudantes de obras e da construção civil”, comenta ele, lembrando a atividade que foi considerada como serviço essencial e não parou.
Nas periferias, mesmo quando a restrição de atividades econômicas foi maior devido à curva de casos, boa parte da população seguiu nas ruas para manter alguma renda. É o caso de boa parte dos moradores do bairro de Ronal. A escolha de morar em Guaianases, que possui 54,6% da população composta por negros, teve muito a ver também com custo de vida.
O distrito é um pequeno retrato de São Paulo. Atualmente, o município possui cerca de 6.000 estudantes estrangeiros, sendo a maioria imigrantes bolivianos e haitianos. Os números tendem a ser maiores, pois há moradores que não estão regularizados.
Do Haiti, os imigrantes chegaram ao bairro depois do terremoto que devastou o país e deixou entre 220 mil e 300 mil mortos e mais de 300 mil feridos em janeiro de 2010.
No caso dos venezuelanos, eles cruzam as fronteiras dos dois países, partindo de Santa Elena de Uiarén para entrar em solo brasileiro em Pacaraima, cidade no norte de Roraima. Com algumas peças de roupas, documentos e poucos objetos pessoais, fugiam da crise política instaurada após a morte de Hugo Chávez, em março de 2013.
Esse novo contingente de moradores driblou dificuldades e conseguiu se manter por meio de apoio e também do trabalho informal. Porém, a situação piorou desde o começo da crise sanitária quando a economia foi impactada e moradores das periferias sentiram o agravamento do desemprego. O único apoio foi o auxílio emergencial, valor pago pelo governo brasileiro para autônomos e desempregados se mantivessem durante a pandemia, inferior a um salário mínimo.
“O fato de estarem menos inseridos na sociedade cria dificuldade para entender os acontecimentos. Por exemplo, entender o auxílio emergencial de R$ 600, desde a burocracia com os documentos”, afirma Sidarta Borges Martins, 44, diretor financeiro do Adus, Instituto de Reintegração do Refugiado, que oferece aos refugiados aulas de português, inserção no mercado de trabalho e orientação jurídica.
Para ele, a inclusão digital também não chegou para essa parcela da população, o que excluiu crianças e adolescentes das atividades remotas. “Muitos imigrantes têm celulares, mas não são de última geração. Outros nunca tiveram computador, sobretudo os que vieram da África”, acrescenta. “Essas crianças longe da escola vão ter impacto para o resto da vida”, relata.
A Lei 13.684, de junho de 2018, trata da assistência emergencial para imigrantes que vieram para o Brasil por conta de crise humanitária. Ela garante, entre outras coisas, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos para os imigrantes no país.
Na região de Itaquera e Guaianases, onde Reinaldo Andrade*, 45, dá aulas em duas escolas, as dificuldades dos alunos com a aprendizagem remota é vista no cotidiano, desde março. Há meses, o professor não mantém contato com os alunos que são imigrantes, por falta de estrutura. A maioria dos estudantes, diz ele, vive em ocupações, onde a internet não chega.
“As dificuldades encontradas por eles [imigrantes] se parecem com as dificuldades enfrentadas pelos estudantes pretos”, afirma o professor. “Esse é um fato que faz com que esses alunos não tenham contato com a gente e nem com aquelas atividades que nós estamos realizando na pandemia”.
Questionada sobre o número de acessos nas plataformas de ensino e quais os materiais disponibilizados para que crianças migrantes pudessem acompanhar as aulas, a Secretaria Municipal de Educação (SME), respondeu que traduziu parte dos cadernos pedagógicos para três idiomas: inglês, espanhol e francês, com o objetivo de atender os estudantes da rede municipal de ensino e suas famílias.
De acordo com a prefeitura, a iniciativa é voltada aos alunos que estão em processo de alfabetização na língua portuguesa. Ao todo, cerca de 150 professores se mobilizaram e fizeram as traduções de forma voluntária. Os cadernos estão disponíveis também no Portal SME para que as atividades sejam desenvolvidas em casa, deixando o material acessível durante o período de distanciamento social.